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Mia Hansen-Løve em conversa exclusiva sobre A Ilha de Bergman

O inimaginável aconteceu e falámos com uma das melhores realizadoras francesas da atualidade: Mia Hansen-Løve de A Ilha de Bergman.

Mia Hansen Løve é um dos nomes emergentes do cinema francês da última década. Apesar de ter dado as suas primeiras cartas como atriz – no filme “Late August, Early September” (1998), de Olivier Assayas com quem viveu vários anos e tem uma filha -, Mia Hansen-Løve prova ser uma realizadora e argumentista de sucesso, com 7 longas metragens já feitas, embora poucos espectadores a conheçam.

Depois de ter conquistado a crítica como o semi-musical “Éden” (2014), conseguiu atingir um maior status com a obra-prima “O Que Está Por Vir” (2016), uma vez que fazia de Isabelle Huppert a sua musa, filmando-o numa referência à própria progenitora.

Mia Hansen-Love
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Curiosamente, nesses filmes separados apenas por dois anos em termos de distribuição, tínhamos personagens que pouco sabiam como agir ou como pensar perante algumas mudanças no seu ambiente familiar e/ou social. Tantas vezes, nos filmes de Mia Hansen-Løve somos confrontados com momentos inesperados, com pessoas que são deixadas sem chão, sem saber muito bem o que fazer. Ora, Mia Hansen-Løve não se tem afastado desse sentido, muito embora as suas personagens deixem de ser somente franceses pela França – quem diria que até já rodou na Índia no introspectivo “Maya” (2018).

maya critica
© Alambique

À primeira vista, os filmes desta realizadora podem parecer reservados, mas o mais interessante é a forma como a sua câmara respira fundo e deixa as coisas fluírem, deixa as coisas acontecerem. Um pequeno gesto entre dois seres apaixonados ou com um profundo laço de amizade pode ser a imagem mais forte a preencher o ecrã. As dores físicas e sentimentais dos homens e sobretudo mulheres que filma podem ser silenciosas, mas subtilmente são capazes de agarrar-nos. O cinema de Mia Hansen-Løve permite-nos familiarizar-nos com contextos alternativos ao nosso, mas por serem pausadamente descodificados, parecem-se com algo que já vivemos ou que gostaríamos de viver. A obra de Mia Hansen-Løve é essencialmente sobre esperança, sobre um cinema com perspetiva de futuro.

Para a realizadora e colaboradora da icónica revista “Cahiers du Cinéma”, nascida a 5 de fevereiro de 1981 em Paris e com descendência dinamarquesa, um filme não é um espaço único e, portanto, as suas personagens continuam a ter vida no minuto pós-projeção em sala. Somos nós espectadores que fazemos do objeto cinematográfico um lugar vivo, e para Hansen-Løve não vale a pena limitá-lo. Ao discutirmos sobre o filme depois da sessão, geramos as nossas próprias conclusões para os seus enredos tão banais.

o que está por vir rotten tomatoes“O Que Está Por Vir” | ©Alambique Destilaria de Ideias

É novamente isso que mostra no seu novo filme “A Ilha de Bergman” e a melhor forma de celebrar mais um trabalho desta cineasta que estreia nas salas é falar sobre ele. Como tal, entrevistámos Mia Hansen-Løve no âmbito da retrospetiva a que teve direito na 22ª Festa do Cinema Francês em Lisboa e onde “A Ilha de Bergman”, nomeado à Palma de Ouro no Festival de Cannes 2021, teve antestreia nacional.

O drama é o primeiro filme de Hansen-Løve totalmente falado em inglês, tratando-se de uma produção entre a França, a Alemanha e a Suécia, com os direitos de distribuição em solo norte-americano da IFC Films. Nesta história seguimos Chris (Vicky Krieps de “Linha Fantasma” [Paul Thomas Anderson, 2017]) e Tony (Tim Roth, célebre ator britânico que é um dos favoritos de Quentin Tarantino), um casal de realizadores que busca inspiração e calma na mítica ilha de Fårö, na Suécia. Na verdade, ambos vivem fascinados pela ilha, que serviu de casa e também de inspiração para Ingmar Bergman (1918 – 2007), um dos maiores nomes da cinematografia nórdica. O fascínio pela ilha e as recordações de Chris começam a misturar-se e aquilo que vem ao de cima é um cruzamento entre ficção e realidade que fará esta mulher questionar o seu quotidiano e o seu trabalho. Inesperadamente, este filme não é uma cópia das obras de Ingmar Bergman, mas uma espécie de carta de amor, onde a cineasta francesa que quer manter a sua voz e a sua sensibilidade, puxando as questões abordadas no cinema bergmaniano aos dias de hoje.

No elenco de “A Ilha de Bergman” estão também Mia Wasikowska (naquele que é provavelmente um dos maiores desempenhos da carreira desta estrela australiana e que num mundo perfeito lhe valeria a nomeação ao Óscar de Melhor Atriz Secundária) e Anders Danielsen Lie, um jovem norueguês célebre pelos filmes “Oslo, 31 de Agosto” (Joachim Trier, 2011), “22 de Julho” (Paul Greengrass, 2018) e que em breve poderá ser visto em “The Worst Person in the World” (Joachim Trier, 2021), outro sucesso de Cannes. As personagens de Vicky e Mia confundem-se, enquanto a personagem de Anders dá forma a um passado da protagonista que ficou por terminar.

Vejamos o que Mia Hansen-Løve tem a dizer sobre o seu filme e o que poderemos esperar dele. “A Ilha de Bergman” estreia hoje, dia 21 de outubro nos cinemas e conta também com exibição única nos Screenings Funchal no próximo sábado dia 23 de outubro (conhece a programação deste festival mensal da Madeira aqui).

A Ilha de Bergman, o novo filme de Mia Hansen-Løve

MHD: Provavelmente a pergunta mais óbvia: Como é que o cinema de Ingmar Bergman influenciou os seus filmes e “A Ilha de Bergman” em particular? Na verdade, ouvimos e vemos referências a Bergman ao longo do enredo, mas o seu filme nunca chega a ser uma cópia exata das longas-metragens deste cineasta.

Mia Hansen-Løve: Espero bem que o meu filme não seja uma cópia do trabalho de Ingmar Bergman. Eu nunca quis isso. Eu sei que pode parecer surpreendente, porque faço um filme intitulado “A Ilha de Bergman” com tantos diálogos sobre como foi o trabalho e a vida deste realizador, mas acho que não existem muitas referências a ele. Eu sou uma admiradora de inúmeros realizadores, como Ingmar Bergman ou Éric Rohmer, mas a minha intenção nunca foi copiá-los.

Acho que os valores estéticos ou éticos-morais dos realizadores e a forma como eles representam a modernidade, é algo que me foi transmitido. Mas essa mensagem nunca chegou a ser literal, nunca tentei imitar o estilo ou sequer o mundo criados por eles. Tenho um profundo respeito por eles e o meu objetivo foi sempre encontrar a minha própria linguagem.

A Ilha de Bergman
Poster português de “A Ilha de Bergman” © Alambique / Festa do Cinema Francês

A forma como encontrei inspiração para “A Ilha de Bergman” e depois a forma como remeti para o Ingmar Bergman fi-lo tudo da minha maneira. Este é um filme sobre um casal, dois realizadores de cinema, que por acaso encontram um tema de conversa semelhante ao discutir Bergman. Não quer dizer que não existem temas em comum,  porque, na verdade, um dos motivos pelos quais admiro tanto Bergman é pelos filmes darem uma enorme atenção às relações humanas, principalmente as relações entre um homem e uma mulher. Esse é o leitmotiv dos seus filmes e essa é uma das muitas razões pelas quais admiro tanto o seu trabalho.

De qualquer forma, não quero que os filmes que faço, sejam feitos numa filosofia contraditória. Para “A Ilha de Bergman” ficaria radiante se os espectadores conseguissem identificar alguma herança. Mesmo que o meu filme tivesse sido rodado em scope e pelo que eu sei, o Bergman nunca usou esse formato (risos).

MHD: O que a Mia tem a dizer sobre as relações modernas entre homens e mulheres e o que mudou perante a perspetiva de Ingmar Bergman? Os tempos são outros, isso é certo… 

Mia Hansen-Løve: Sim, os tempos são certamente diferentes, mas as pessoas também são diferentes. No meu filme tenho uma visão particular sobre as relações, mas que partem essencialmente da minha forma de estar na vida, de quem sou. Tenho os meus valores e, depois nasci numa época diferente à do Bergman.

Tenho uma visão sobre a família e sobre a maternidade e, portanto, “A Ilha de Bergman” foi feito para pensar nos relacionamentos entre homens e mulheres, e na filha que eles têm em comum. Aquela criança que poucas vezes vemos ao longo do filme, mas sobre quem ouvimos falar regularmente e que tem uma importância acrescida na forma como o casal pretende manter-se unido. A criança é ausente para nós, mas está presente nos pensamentos da Chris e do Tony.

MHD: Em “A Ilha de Bergman” e “O Que Está Por Vir” as suas personagens são mulheres em profunda crise familiar. Poderá parecer-lhe um pouco estranha esta pergunta, mas será que na sua obra existe alguma vontade de referir o cinema  feminino de Hollywood da Era Dourada? Ou trata-se apenas de um olhar mais próximo às suas vivências? 

Mia Hansen-Løve: Bem, é uma pergunta curiosa. Eu admiro muito filmes de realizadores americanos desse período, estou a lembrar-me por exemplo do Douglas Sirk. Mesmo assim, os meus filmes em termos de personagens, dos retratos e dos seus caminhos têm sido muito influenciados pela minha vida pessoal. Se eu fui influenciada por esses filmes, acredito que tenha sido mais em termos da filosofia da própria arte cinematográfica e aquilo que expressam. Ou seja, quais são as crenças que tens no cinema, e o que é que defines como cinema. Por uma razão cultural eu diria que as minhas personagens são 100% influenciadas pelo contexto europeu, porque é a minha cultura.

Mia Hansen-Løve
Vicky Krieps e Tim Roth em “A Ilha de Bergman” © Alambique / Festa do Cinema Francês

De qualquer forma a pergunta continua a ser válida, porque para “O Que Está Por Vir” eu baseie-me bastante na figura da minha mãe.

Quis mostrar como a minha mãe realmente era, não que ela tivesse sido uma artista, mas parte da sua relação com o cinema foi feita através do cinema americano. As histórias que nos contava em miúdos surgiam exatamente disso. Ela era uma grande fã da Katharine Hepburn e venerava-a, por isso deveria querer mantê-la viva no seu quotidiano. A Katharine Hepburn tinha esse impacto nas mulheres. A personalidade da minha mãe, o seu tipo de humor é muito semelhante aos trabalhos dessa atriz nesse período.

MHD: A questão é que a Mia cria as suas personagens inspiradas na sua experiência. De qualquer forma, as suas personagens parecem manter segredos para com a audiência. Não sabemos bem quem são, quais as suas motivações. Porquê esta vontade de deixar algo por mostrar ao público? 

Mia Hansen-Løve: Sim, isso é interessante. Muitas vezes os meus filmes são sobre os sentimentos que amadurecem. As minhas personagens conseguem ser muito retraídas, porque essa é a minha experiência de vida, das pessoas que estão ou estiveram ao meu redor. Eu tenho uma certa “cultura do silêncio” e acho que o meu filme “A Ilha de Bergman” carrega toda essa energia.

De facto, outro ponto distinto de “A Ilha de Bergman” perante o cinema de Bergman é que as suas personagens falam muito, e falam muito sobre si mesmos. No meu filme, pelo contrário, há uma reflexão interior, as palavras não conseguem vir totalmente ao de cima. Numa época em que o cinema tende a ser tão explicativo e os filmes têm tanto diálogos, eu quis mostrar que há algo mais do que aquilo que vemos na superfície. Pensar no filme como um icebergue é algo que traz algum mistério ao enredo.

A Ilha de Bergman
Vicky Krieps em “A Ilha de Bergman” © Alambique / Festa do Cinema Francês

MHD: Claro, na nossa vida há sempre algo por dizer. Não precisamos de dizer aquilo que pensamos e sentimos todos os dias…

Mia Hansen-Løve: Exato. E nem tudo tem explicação na nossa vida. Atualmente, as coisas nos filmes parecem que precisam de ser completas, lógicas e completamente explicadas. Eu acho que isso é algo que tranquiliza muitos profissionais deste ramo, sobretudo quando pensamos que um filme precisa de encontrar financiamento e distribuição no mercado.

Portanto, a maneira como faço os meus filmes tem alguma coisa daquilo que procuro também enquanto espectadora. Eu prefiro ver um filme e ter a sensação que não terminou no exato momento em que as luzes se ligam na sala de cinema. Não quero pensar que tudo foi dito, e que já não há nada mais daí para a frente. Eu quero criar histórias onde não existam limites. A narrativa não precisa de ser concluída e fechada.

MHD: A certo ponto em “A Ilha de Bergman”, a personagem Amy dança ao som dos ABBA. Aí ela entende que a sua relação com o Joseph vive um momento de crise e transição. Porque razão a música tem um papel tão pertinente nos seus filmes? Porque razão afeta a realidade das suas personagens? 

Mia Hansen-Løve: A música é importante para a maioria das pessoas. Não sei se é mais importante nos meus filmes ou num filme de qualquer outra pessoa, mas talvez haja algo original na forma como uso a música. Eu nunca trabalhei com um compositor, alguém que fizesse a música propositadamente para um filme meu, porque para mim seria apoiar a história numa música criada para gerar a emoção, sem um passado.

Sempre preferi apostar em músicas que já existam, músicas que têm a sua própria história e o seu próprio caminho traçado e que a partir daí entrelaçam-se com a trama que quero contar. Na verdade, quero que a relação com a música seja sentida pelas personagens. Quero que a música ganhe uma voz e esteja presente.

A Ilha de Bergman
Mia Wasikowska em “A Ilha de Bergman” © Alambique / Festa do Cinema Francês

E esta questão sobre a música relaciona-se perfeitamente com tudo aquilo que referi antes, de que nem tudo tem que estar na nossa frente e de que não cabe a mim realizadora e argumentista concluir um enredo, mas ao espectador. A forma como utilizo a música é uma forma das personagens refletirem, isoladas no seu silêncio e como é que a mesma poderá abrir as portas a novas dimensões, a novos mundos. As músicas que eu escolho são sempre músicas ouvidas pelas personagens, e a partir daí, a história delas também torna-se a história dos espectadores. Não quero manipular os sentimentos, mas quero que a audiência perceba quais as emoções que estão por detrás de um determinado som, de uma determinada letra de uma canção.

No caso da Amy, a personagem da Mia Wasikowska eu utilizo uma música que ela conhece perfeitamente. E só nós, espectadores, percebemos o que está a pensar enquanto dança. Portanto, é impossível não percebemos a música e aquilo que os ABBA referem e depois não estar a prestar atenção à dança da Amy. Assim, a música fica muito mais intrínseca à linguagem do filme e não serve apenas de um truque leviano.

ABBA | The Winner Takes It All

MHD: E como foi trabalhar com a Vicky Krieps, o Tim Roth, a Mia Wasikowska e o Anders Danielsen Lie, tendo em conta todos os problemas de produção decorridos?

Mia Hansen-Løve: A rodagem de “A Ilha de Bergman” foi realmente bastante complicada, porque inicialmente os papéis da Chris e do Tony foram entregues à Greta Gerwig e ao John Turturro e deveríamos filmar o filme durante os meses do verão de 2018. No entanto, a Greta desistiu do projeto por causa de “Mulherzinhas”. Claro que fiquei atrapalhada, mas decidi contactar a Vicky Krieps, que tinha feito “Linha Fantasma” e achei que o Tim Roth poderia ser um fantástico ator para o papel de Tony. Nós cineastas temos que estar preparados para estes tipos de imprevistos.

De qualquer forma, filmei primeiro a parte do filme em que apareceu a Mia e Anders e só um ano depois filmei com a Vicky e o Tim. Portanto, só consegui editar o filme dois anos após a produção. Foi um processo complicado, apesar de ter viajado por duas vezes a Fårö e de ter disfrutado da ilha na companhia nestes atores que souberam encarnar as suas personagens e mostrar o quanto estas personagens eram importantes para mim.

Mia Hansen-Løve
Mia Wasikowska e Anders Danielsen Lie em “A Ilha de Bergman” © Alambique / Festa do Cinema Francês

MHD: Por último, o que a Mia tem a dizer sobre a atmosfera da ilha de Fårö? Acredita que a ilha esteja assombrada ou para si serviu apenas como escape de verão? 

Mia Hansen-Løve: Gostei de estar lá e passar tempo a descobrir várias coisas sobre a ilha. Filmar é muito mais do que uma experiência técnica. Não há nada que se compare àquele local, e a energia que daí flui. A minha alegria e disposição de filmar naquele lugar remoto conseguiu estar imprimida no próprio filme. Mas ao mesmo tempo, Fårö é um lugar assombrado pela maneira como o Ingmar Bergman falava dela.

Eu tinha um certo medo durante a noite de estar sozinha naquele local. Eu nunca acreditei em fantasmas, mas quando estás num local tão isolado acabas por acreditar. O próprio Bergman acreditava e pensar nisso era um pouco assustador. O medo acabou por gerar em mim uma vontade de desvendar os segredos da ilha, serviu de ferramenta estimulante para abrir-me as portas, um convite para ir mais longe e para, explorar novos territórios na minha escrita. E eu acho que essa sensação de estar num lugar assombrado foi a experiência mais inspiradora para mim até agora. Espero que o último sinta isso durante o visionamento de “A Ilha de Bergman”.

MHD: Obrigado Mia, sucesso para os seus próximos trabalhos. 

A entrevista com Mia Hansen-Løve decorreu no âmbito da sua visita a Lisboa, para a 22ª Festa do Cinema Francês e onde teve direito a uma retrospetiva. A MHD gostaria de agradecer à direção do festival por nos ter organizado esta entrevista.

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