"Pom Poko: A Grande Batalha dos Guaxinins" | © Studio Ghibli

MONSTRA ’23 | Pom Poko: A Grande Batalha dos Guaxinins, em análise

Em 1994, Isao Takahata estreou uma fantasia sobre temas ambientalistas, com animais falantes no protagonismo. “Pom Poko: A Grande Batalha dos Guaxinins” esteve em destaque na MONSTRA, com parte do programa focado em cinema de animação japonês. Trata-se de um clássico moderno do Estúdio Ghibli.

Em certa medida, é injusto quanto o célebre Estúdio Ghibli é, para muitos, sinónimo de Hayao Miyazaki. Mesmo que alguns dos seus mais célebres trabalhos representem os maiores clássicos do estúdio, o cineasta não é seu único fundador e está longe de ser a única força motriz da produção. Isao Takahata merece tanto louvor quanto o colega, especialmente quando consideramos o teor mais adulto que seus trabalhos iniciais apresentaram quando comparados diretamente com os filmes de Miyazaki. Pensemos no contraste extremo entre o adorável “Totoro” assinado pelo autor mais célebre e o agonizante realismo do “Túmulo dos Pirilampos” que Takahata levou aos cinemas no mesmo ano, 1988.

De facto, na justaposição dessas duas obras, inicialmente distribuídas em sessão dupla, encontramos a dinâmica que veio a definir a primeira era do Estúdio Ghibli na década de 80 e alvorada dos anos 90. Miyazaki abordava histórias mais juvenis, sempre marcadas pela fantasia ou estéticas derivadas da ficção-científica. Seus cofundadores tinham interesses mais próximos do realismo por vias do desenho-animado, encarando contos mais sóbrios e declaradamente mais maduros. Além disso, Isao Takahata, em particular, marcava o seu cinema com uma experimentação formal bem notória, algo que viria a chegar ao seu apogeu em trabalhos tardios como “A Família Yamada” e “O Conto da Princesa Kaguya.”

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© Studio Ghibli

No entanto, estamos aqui para analisar um ponto de contradição, quando estas dinâmicas se retorceram e emergiu aquela célebre exceção que prova a regra. “Pom Poko: A Grande Batalha dos Guaxinins” marca a abertura de Takahata à fantasia, assim como um dos seus trabalhos mais fiéis à estética Ghibli edificada por Miyazaki e companhia. Não que o filme represente uma capitulação estilística ou qualquer esbatimento da marca pessoal. Simplesmente representa uma divergência por onde elementos mais subtis no percurso do artista se evidenciam, entre eles um amor pela coletividade, a renegação da narrativa simplificada e a celebração da cultura nacional.

Esse último fator é visível principalmente na escolha e design das personagens. Como o título português indica, “Pom Poko” foca-se nas desventuras bélicas de guaxinins. Ou melhor, são tanuki, uma espécie de canídeo com aspeto de guaxinim normalmente representado no folclore nipónico com uma barriga redonda que serve de tambor e enormes testículos. Para uma audiência não-japonesa, o desenho é peculiar, talvez até obsceno, mas justifica-se o grotesco pela fidelidade à tradição ancestral. Não que a história se passe em tempos antigos, tão distantes que a magia perscruta a realidade na memória da comunidade. Esta é um conto contemporâneo, uma guerra dos nossos dias.

A premissa veio de Miyazaki, que queria um filme sobre tanuki no repertório do estúdio. Nomeadamente, a ideia terá evoluído para englobar causas ambientalistas e um entender que, face a inimigos maiores, há que se procurar a união de forças. Esse gesto define as duas horas deste épico guerrilheiro, quando uma comunidade de tanukis falantes vê o seu habitat ameaçado pela expansão urbanística de Tóquio. Desde os anos 60 até à atualidade dos cineastas e espetadores em 1994, a floresta tem vindo a ser dizimada, selvas de alcatrão crescendo onde outrora arvoredos se erguiam. A civilização animal, sempre dividida em clãs é assim forçada a renegar o tribalismo para que, juntos, possam enfrentar o inimigo comum – o Homem e seu progresso destrutivo.

Temos então um apelo político em forma de filme para miúdos, onde guaxinins mágicos aprendem a arte da guerra e da resistência. Através de poderes sobrenaturais, eles transformam-se e sabotam o avanço das máquinas, perdendo anos, quiçá décadas, nesta batalha que transcende gerações. Há muita diversão nos seus truques e partidas mirabolantes, mas o épico orienta-se em torno de tonalidades trágicas. Não há aqui a esperança inocente que Miyazaki trouxe a tantos dos seus trabalhos, mas sim a sobriedade de Takahata. Sob sua direção, a derrota parece inevitável, como uma verdade cósmica que levará o mundo ao degredo. Mas, mesmo assim, luta-se porque a luta continua e não se pode ceder.

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© Studio Ghibli

Também existe outra tensão subjacente à causa ecológica, à Natureza versus Humanidade. Preservar a floresta é salvar o costume antigo e perdurar esses animais quase divinos aos quais japoneses de outros tempos oravam. Transcendendo-se o lado prático da questão, entramos nas linhas filosóficas de um país cuja cultura nativa se encontra em rutura sob o peso de uma modernidade baseada nos costumes ocidentais. Perde-se tradição para dar espaço ao novo, outro tipo de destruição que ameaça os tanuki, mesmo que seja só numa dimensão mais meta-textual. Nesse sentido, o filme é a arma que Takahata emprega, e a animação em si representa a máxima articulação do seu discurso, seu protesto.

Acontece que as personagens são um coletivo com diferenças e detalhes individualistas, mas sempre encaradas enquanto massa, enquanto comunidade. Sua animação transmutável varia a forma dos tanuki, variando entre naturalismo e cartoon, entre estilização com toques de cinema ocidental e expressões mais aliadas à pintura japonesa. Também o mundo em seu redor se transforma, com Takahata a mostrar a expansão do seu instinto criativo em transições acima de tudo. Há um beijo do surreal, um sussurro do além expresso na colisão de pesadelos folclóricos com a arquitetura aborrecida dos humanos. Acima de tudo, estes jogos decifram um significado que não só inspira e faz pensar, mas também comove. “Pom Poko” é extraordinário na sua estranheza, um trabalho que só Takahata poderia ter criado e que, por isso, merece aplausos.




Pom Poko: A Grande Batalha dos Guaxinins, em análise
pom poko critica monstra

Movie title: Heisei tanuki gassen ponpoko

Date published: 29 de March de 2023

Director(s): Isao Takahata

Actor(s): Shinchô Kokontei, Makoto Nonomura, Yuriko Ishida, Norihei Miki, Nijiko Kiyokawa, Shigeru Izumiya, Gannosuke Ashiya, Takehiro Murata, Akira Kamiya, Tomokazu Seki, Minoru Yada, Megumi Hayashibara

Genre: Animação, Drama, Comédia, 1994, 119 min

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO:

“Pom Poko” é um épico sobre a guerra entre inúmeras forças, desde a tradição contra a modernidade, o humano contra a natureza, cultura nova contra cultura velha. Isao Takahata assim transforma o que poderia ter sido um conto otimista num poema desenhado que apela à reflexão, traços de melancolia temperando a loucura fantasiosa de guaxinins falantes com testículos inchados.

O MELHOR: Os contrastes concetuais e sua tradução no desenho-animado, na narrativa coletiva, no ímpeto do manifesto ambiental.

O PIOR: Há uma certa qualidade forçada, quase pregadora, no modo como “Pom Poko” promove suas ideias. Este tipo de cinema panfletário é raro no panorama animado e poderá irritar o espetador.

CA

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