"Fortuna" | © MOTELX

MOTELX ’21 | Fortuna, em análise

Inspirado numa tragédia real, “Fortuna” é uma invulgar meditação sobre o terror visto de uma perspetiva infantil. O filme de Nicolangelo Gelormini está na competição de longas-metragens europeias do MOTELX 2021.

A 24 de julho de 2014, uma menina chamada Fortuna Loffredo caiu do telhado do prédio onde vivia. A rapariga napolitana tinha somente seis anos quando morreu. Ao autopsiar o corpo, médicos legistas descobriram indícios de abusos sexuais e outras pistas sugestivas do homicídio. Três anos depois, um vizinho do mesmo bairro, o Parco Verde em Caivano, foi condenado à prisão perpétua pela morte de Fortuna. Veio-se a descobrir que ele era um abusador regular, tanto de Fortuna como das filhas da namorada, outra habitante do complexo de apartamentos em Nápoles. Essa senhora foi também ela condenada pelo encobrimento dos abusos e seu auxílio no crime.

Esta investigação permitiu a reabertura de outro caso, aquele de Antonio Giglio. O menino de quatro anos tinha morrido de forma semelhante à de Fortuna e suas ligações familiares puseram em questão a conclusão inicial de acidente. Antonio era filho da namorada do homicida. Novas descobertas levaram à acusação da mãe por filicídio, além de uma revelação mais sinistra. Vários casos de abuso infantil foram encontrados na comunidade de Parco Verde, desvendando-se como vizinhos tinham mantido uma política de silêncio sistemático, escondendo os crimes coletivos e tentando desviar as atenções da polícia.

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No fim, foram os testemunhos das crianças que ajudaram a abrir avenidas de investigação e a eventual descoberta de todos os horrores de Parco Verde. Enquanto os graúdos tudo escondiam por detrás de um véu de segredos, a candura dúbia, a inocência violada, dos mais pequenos pôs a verdade a descoberto. Ler a cobertura do caso, tão polémico que até suscitou declarações papais, é sentir o terror desses meninos infetar a mente, criar pesadelos. A descrição do ataque final a Fortuna é especialmente aterradora, especialmente quando imaginamos que tudo foi visto pelos olhos da infância.

É exatamente essa inquietação que o realizador Nicolangelo Gelormini explora na sua primeira longa-metragem, “Fortuna”. Indo contra os desejos dos sobreviventes, pais enlutados que pedem o direito ao esquecimento, o cineasta propôs-se a ilustrar o modo como os meninos poderiam interpretar as realidades horrendas dessas vidas maltratadas. A via da abstração evita o sensacionalismo barato, encontrando hediondas fantasias e quiçá mostrando como é que alguém se adapta a uma vivência delineada por constante sofrimento. Nunca se vê nada muito gráfico em “Fortuna”, mas sente-se a pressão psicológica, a fracturação da mente que tenta sobreviver ao suplício.

Essa fratura divide o filme, bifurca-o. Primeiro temos uma sequência mais transfigurada pela subjetividade infantil. Depois segue-se uma repetição das mesmas cenas, só que vistas com um toque de objetividade crua. Conhecemos uma menina que se chama Fortuna, ou quiçá Nancy. Conhecemos um ambiente doméstico idílico, ocasionalmente cortado pela intromissão de uma psicóloga apática, quase cruel na negligência assumida. Não tarda muito até nos apercebermos que, apesar da filmagem em localizações reais, há uma pátina de artifício a bloquear-nos a vista. Os figurinos parecem demasiado perfeitos, modas teatrais que fogem à confusão sartorial do mundano.

Também o edifício se afigura como um objeto de fantasia arquitetónica, suas paredes disformes criando proscénios brutalistas, enfaticamente limpos apesar do degredo apontado pelo texto. Através da composição cuidada, Gelormino desfaz os apartamentos em rasgos de Expressionismo contemporâneo, um mecanismo que espicaça os nervos. Quando a morte chega, pela primeira vez, aparece como um poema de medos rarefeitos, angústias materializadas pela aparição de monstros amorfos. No fim, chega-se a um plano de medo sintetizado, a câmara que avança para Fortuna no telhado, pronta a atirá-la.

E corta, acaba a primeira parte e passamos a reviver todas as mesmas ações. A simetria estrutural revela as diferenças, revela-nos como as idiossincrasias da primeira parte eram ilustração das estratégias de alienação psicológica pela qual os meninos salvaguardaram a sanidade. Logo nos apercebemos disso quando vemos que duas atrizes trocaram de papel. A psicóloga é agora uma mãe negligente, e a matriarca amorosa passou a ser doutora que nada consegue fazer para evitar o inevitável. Outrora, ouvimos falar de alienígenas, criaturas que protagonizam os jogos do faz-de-conta que Fortuna e seus amigos fazem na privacidade do terraço.

Até então, o filme sugeriu a existência desses monstros, pondo-lhes as culpas do horror que se abateu sobre os meninos. Nesta metade mais realista, vemos o quotidiano diabólico desses seres. Agora são só vizinhos, homens com sorrisos lascivos, pais maus e mães que viram a cara para não ver o que se passa debaixo do nariz. A transfiguração da mãe de Fortuna é especialmente curiosa. Apesar dos abusos sugeridos por imagens de telemóvel e o contexto jornalístico, é a instabilidade materna que mais fere a protagonista e enfurece o espetador. Na tentativa de proteger a filha, ela só suscita mais ansiedades, gritando em fúria quando a menina se afasta dela.

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O som praticamente reverbera pela trilha sonora, ecos que se misturam com músicas eletrónicas, rugidos virtuais. Sabemos que o afastamento se deve ao trauma sexual, à vontade de esconder as marcas no corpo, mas a mãe disso desconhece. O gesto mercurial vira o paraíso doméstico num inferno, e rouba a Fortuna o seu último local de refúgio. O resto do edifício certamente não tem nenhuma bondade ou conforto, texturas esquálidas e manchas de humidade por todo o lado. Reconfigurando a câmara e a iluminação, Gelormino regista os mesmos espaços enquanto labirinto do terror ao invés de abstrações arquitetónicas. É um truque sublime e subtil, aquele tipo de mecanismo que nos deixa irrequietos, trabalhando a um nível do subconsciente, do puro paradigma sensorial.

Nestas interseções do real e do irreal, da fantasia inicial e do pesadelo consequente, o realizador cria um filme de terror que trabalha unicamente num plano de sugestão, uma estratégia do apontar sem nada mostrar. Só há paralelo explícito com o caso real chegado o fim, quando uma descrição do fado de Fortuna Loffredo se materializa no ecrã escuro. Tendo essa informação, partimos para uma coda final, o gesto mais arriscado e também mais mágico de Gelormino. Trata-se de uma queda invertida, um milagre que o cinema concede a uma menina que não teve tanta sorte no mundo fora do ecrã. Questionamos o bom gosto da decisão, mas louvamos a intenção. Depois de tanto nos afundar na perspetiva da protagonista, o filme concede-lhe a ela e a nós, uma misericórdia final – uma expiação dos pecados reais no engenho fictício.

Fortuna, em análise
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Movie title: Fortuna

Date published: 11 de September de 2021

Director(s): Nicolangelo Gelormini

Actor(s): Cristina Magnotti, Valeria Golino, Pina Turco, Libero De Rienzo, Giovanni Ludeno, Marcello Romolo, Anna Patierno, Luciano Saltarelli, Denise Aisler, Leonardo Russo

Genre: Drama, Terror, Thriller, 2020, 108 min

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Entre o sonho bifurcado de “Mulholland Drive” e a fantasmagoria de crianças em “Nas Costas do Diabo”, “Fortuna” apresenta uma visão onírica da tragédia autêntica, tentando encontrar a essência do real através da irrealidade cinematográfica.

O MELHOR: A misericórdia expiatória daquela imagem final, uma queda invertida na direção dos reinos celestiais.

O PIOR: O potencial lúrido daquele gesto derradeiro ainda nos inquieta. É tanto o melhor do filme, como seu pior momento. Um paradoxo tão poderoso como todo o “Fortuna”, verdade seja dita.

CA

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