MOTELX ’21 | The Amusement Park, em análise
Uma obra perdida de George A. Romero foi finalmente descoberta e restaurada. “The Amusement Park” tem sua estreia portuguesa neste 15º MOTELX, uma perfeita honra para o filme de um dos grandes titãs do terror.
No final da década de 60, George A. Romero veio revolucionar o cinema de terror com a sua “Noite dos Mortos-Vivos”. Não só a obra consolidou a ideia moderna do zombie, como também veio evidenciar uma possível e muito notória intersecção desse género típico do cinema B e uma grande carga política e cultural. Em termos históricos, é difícil explicar quão importante esse trabalho de Romero acabou por ser, mas o triunfo não se registou imediatamente. Passados uns anos e o jovem cineasta já se encontrava em dificuldades para financiar novos projetos.
Foi assim que o realizador noviço se viu emaranhado num trabalho por encomenda. Em 1973, a Sociedade Luterana contratou Romero para que este criasse uma obra sensibilizadora sobre o abuso a idosos e assuntos de negligência sistémica aos mais velhos. Ele assim fez, mas o produto final foge à ideia provincial de uma lição moral, usando o choque do terror para transmitir seu apelo. Não sabemos como é que os dirigentes luteranos esperavam outra coisa, considerando a para filmografia de Romero até então, mas não ficaram nada felizes com o que viram.
Os produtores descontentes, assim mantiveram a fita de Romero fechada a sete chaves, condenado a nunca ser distribuído. O passar das décadas trouxe mais prestígio ao realizador, elevando-o ao panteão dos grandes autores, artistas consagrados que mudaram para sempre a História do Cinema. Esse estatuto trouxe novo interesse em desvendar as gemas ocultas do seu currículo, incluindo esse filme moralista para a Sociedade Luterana. Finalmente, em 2018, depois de muitos anos a ganhar fama de Santo Graal perdido, “The Amusement Park” foi achado, restaurado e, por fim, dado a ver ao público.
Será que valeu a pena todo este esforço, toda esta espera? Claro que sim – independentemente das qualidades ou defeitos do filme, trata-se de uma obra no percurso de um realizador sem igual. Além disso, “The Amusement Park” representa um trabalho quase único na esfera do cinema sobre pânico moral. Dizemos isto pois unifica uma das expressões mais puritanas e reacionárias com um género definido pela transgressão, o choque, a amoralidade sanguinária. É esse cocktail tonal enlouquecido que dá valor à fita, eletrificando-a até nos momentos mais mortiços.
A história que Romero orquestrou começa depois da introdução explicativa, uma espécie de prólogo à moda do “Henrique V” de Shakespeare. Nosso guia é a estrela do filme, Lincoln Maazel e conta-nos sobre o propósito da obra e sua feitura, como muitos dos atores em cena são voluntários sem experiência passada. No fim do monólogo, ele deixa-nos com a imagem do idoso espancado, sangue manchando sua cara empalidecida, pensos rápidos fechando feridas demasiado grandes. Também nos deixa com palavras a matutar na cabeça.
São fortes afirmações sobre quanto a sociedade negligencia seus anciãos, tratando-os como crianças incapazes e submetendo-os a inúmeras humilhações, violências casuais que se vão acumulando até sufocarem o indivíduo. É com estas ideias e esta imagem que “The Amusement Park” parte para sua narrativa principal, um pesadelo carnavalesco passado no parque de diversões titular. Como que num passar do estandarte, vemos duas versões de Maazel, o espancado e aquele que ainda está incólume. Eles cruzam-se, mas não se veem. O senhor não pressente o sinal do futuro horrendo que o espera.
De fato branco e cabelos grisalhos, com um sorriso ligeiro na cara enrugada, o nosso protagonista aventura-se pelo recinto, em busca de algum divertimento, uma distração num dia suado de Verão. Contudo, à medida que o senhor visita uma e outra atração, agressões horrendas começam a manifestar-se. Às vezes é algo abstrato, quase metafórico, como o assalto sonoro de efeitos estridentes, o descambar de uma montanha-russa num pranto de gritaria metálica. O celuloide gangrenoso não ajuda, dando a cada fotograma uma pátina de ferrugem, sangue coagulado e a luz de um sol queimado, de uma película sobre-exposta.
O pior é que ninguém se parece importar com o senhor em aflição. Quando alguém o ataca ou quando ele cai derrotado no chão, só se veem risos ou olhares desviados. Se possível, a apatia piora o abraço asfixiante deste pesadelo. O desencadear de impossibilidades quase mágicas já não surpreende, tanto estamos presos na subjetividade angustiada do herói massacrado. No meio dos avisos e agoiros, desta retórica do sensacionalismo grotesco, fica a voz de Maazel a ecoar nos miolos da audiência. Um dia seremos todos velhos, um dia todos passaremos pelo mesmo. Não é um “se”, mas um “quando”, inevitável e imparável. Talvez esse seja o horror mais essencial em “The Amusement Park”, seu máximo susto.
The Amusement Park, em análise
Movie title: The Amusement Park
Date published: 11 de September de 2021
Director(s): George A. Romero
Actor(s): Lincoln Maazel, Harry Albacker, Phyllis Casterwiller, Pete Chovan, Marion Cook, Sally Erwin, Michael Gornick, Jack Gottlob
Genre: Drama, Terror, Thriller, 1975, 56 min
-
Cláudio Alves - 65
CONCLUSÃO:
Entre o serviço comunitário e o horror psicadélico de uma má ‘trip’, “The Amusement Park” cruza moralismos com o desejo lúrido do sangue, da carne desfeita e do medo. Não se trata de nenhuma joia perdida no cinema de George A. Romero, mas estamos felizes que esta estranha experiência já esteja disponível, aberta ao público depois de cinco décadas escondida.
O MELHOR: A brevidade do filme jamais trai o seu impacto. Com menos de uma hora, “The Amusement Park” é como uma punhalada no ventre ou quiçá um banho de ácido fétido sobre a nossa vista. Isto é cinema que dói.
O PIOR: Por muito que Romero contrarie o modelo tradicional do filme-polémica, a estrutura basilar desse género mantém-se. Rasgos de horror modulam o espetáculo, mas continua a ser um desfile de moralismos expressos sem nuance.
CA