©The Stone and the Plot

A Princesa Errante, em análise

“A Princesa Errante”, de Kinuyo Tanaka, regressa ao grande ecrã no ciclo cinematográfico dedicado à carreira da cineasta!

Para melhor compreendermos a acção proposta em RUTEN NO HI (A PRINCESA ERRANTE), 1960, quarta longa-metragem da actriz, aqui no papel de realizadora, Kinuyo Tanaka, convém dar uma vista de olhos pela História do Japão, sobretudo no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial.

MANCHÚRIA, DESTINO ASSOMBRADO DE UMA MULHER!

Estamos em plena Era de Showa. No poder, o Imperador Hirohito, que muitos súbditos preferem designar, precisamente, por Imperador Showa. No país vive uma população dispersa por um vasto arquipélago, com mais de 64 450 000 habitantes, número que aumentara para o dobro em menos de um século. No início dos anos 30, as condições económicas e sociais degradam-se e o desemprego aumenta. Nas zonas rurais a situação piora substancialmente. Em 1931, dá-se o início da agressão militar na Manchúria. Em 1932, os militaristas, cada vez mais activos e poderosos, impõem um governo fantoche no Estado da Manchúria, o Manchukuo. Nesse mesmo ano será assassinado o primeiro-ministro japonês, Inukai Tsuyoshi, na sequência de uma rebelião militar que ficou conhecido por Incidente de 15 de Maio. Em 1937, será prolongada e de certa forma confirmada a grande ofensiva imperialista com a intervenção militar e invasão da China. De forma sucinta e muito breve, ficam aqui as linhas identificadoras do pano de fundo que serviu de base ao enquadramento das coordenadas gerais do argumento de A PRINCESA ERRANTE. Matérias de natureza política e militar, a que se devem associar no plano da componente ideológica da narrativa as contradições que dizem respeito a uma série de diferenças de carácter cultural, particularmente visíveis e sentidas no seio das mais prosaicas ou cerimoniosas relações sino-japonesas que o filme encena e que de forma significativa pontuam este melodrama histórico. Percurso ficcionado de uma mulher lançada como peão de interesses que lhe são alheios no antigo Estado da Manchúria, que em 1934 passara de república a monarquia com o nome Império da Manchúria, monarquia constitucional cujo poder e autonomia eram mais do que fictícios.

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A Princesa Errante
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Mais uma vez, prosseguindo um ponto de vista que desde a primeira hora defendeu, a realizadora polariza a sua e a nossa atenção para o específico do universo feminino e, neste caso, para a figura de uma mulher arrastada por acontecimentos que a ultrapassavam e não podia controlar. Estamos a falar de Ryuko (excelente desempenho da actriz Machiko Kyo), nascida no seio de uma grande família da aristocracia japonesa que, por diversas circunstâncias e pressões, se vê aconselhada, ou melhor, obrigada a casar com o irmão mais novo do monarca fantoche do Manchukuo (Aisin-Gioro Puyio, proclamado Imperador sob o nome de Kangde). Na verdade, o homem que a escolhera para casar, Futetsu (interpretado por Eiji Funakoshi), não obstante a sua proximidade familiar ao alegado detentor do poder, não beneficiava de um estatuto que lhe permitisse uma existência mais confortável do que a de qualquer outro cidadão situado no mesmo patamar social. Do ponto de vista financeiro, os seus rendimentos permitiam-lhe apenas uma vida com alguma dignidade, mas sempre no limite das necessidades básicas. Nada de grandes luxos, como se pressentia ainda ser o caso nos corredores da corte que, por diversas concessões, mais diplomáticas do que sinceras, o casal frequentava.

A Princesa Errante
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Desde cedo, fica muito claro que Kinuyo Tanaka quis dar relevo em A PRINCESA ERRANTE ao papel de uma mulher de quem se esperava uma dupla função, ser mãe e esposa de um nome prudentemente discreto mas não muito longe do poder controlado pela potência ocupante e, simultaneamente, servir de ponte entre a sua pátria de origem e a Manchúria, plataforma que muito em breve serviria de ataque ao coração da China. Nas vésperas da programada invasão, ela representava o elo de ligação que devia servir de instrumento e caução nacionalista aos desígnios da geoestratégia política dos militares imperialistas. Mas, nesse papel, a sua preocupação primordial deveria ser a de conjugar enquanto “embaixadora”, sem cargo directamente atribuído, as sensibilidades do povo manchu e japonês que naquele momento se deviam conjugar contra a vontade das populações de origem chinesa. No contexto pessoal da vida de Ryuko, o que veremos já não passa apenas pela afirmação da sua identidade nacional, mas Kinuyo Tanaka investe e bem na exposição das mais simples, singelas mas, por isso mesmo, complexas relações inerentes aos altos e baixos da condição humana que, mal ou bem, ainda acreditava ser capaz de controlar. Como, por exemplo, a simples, singela e complexa relação de amor com o marido. Neste contexto, iremos vê-la progredir até se adaptar com artes de sedução e subtileza ao modo de ser e estar das gentes da Manchúria. No modo como se veste. Na maneira como assume a aprendizagem da língua. Na maneira como aceita novas dietas alimentares e, nos meandros de uma certa fruição gastronómica e cerimonial, muito interessante será perceber como não deixou de lado gestos antigos e elegantes de etiqueta quando, sentada na mesa da corte, plena de iguarias, esconde a crítica que se vislumbra no seu olhar ao assistir ao modo pouco requintado como a mulher do Imperador se comporta. Em suma, na maioria dos hábitos comuns ao quotidiano, assim como no seu papel diplomático, Ryuko integra-se perfeitamente num espaço exterior ao seu núcleo matrimonial sem deixar de ser uma mulher como muitas outras e, a partir de certa altura, passa mesmo a contar com um novo desafio, criar a filha do seu casamento de conveniência.

A Princesa Errante
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No entanto, a História pula e avança, e os acontecimentos que ocupam a derradeira parte de A PRINCESA ERRANTE são como que a prova de que o destino dos homens, não apenas o das mulheres, depende de muitas variáveis e nada pode ser dado como certo.

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Tecnicamente, este filme perfila-se na filmografia de Kinuyo Tanaka como a primeira longa-metragem rodada a cores e em ecrã largo, produzido com um grande orçamento pela DAIEI. Era um salto quantitativo que a realizadora soube aproveitar para levar a bom porto um projecto pessoal mas de impacto global na memória colectiva dos japoneses, que seguramente ainda se lembravam dos acontecimentos reais que inspiraram a ficção, e uma oportunidade de ouro para dirigir um filme que, mantendo a marca intimista dos melodramas anteriores, pudesse agora ser contaminado, no bom sentido da palavra, por um fôlego épico e por valores de produção que até ali não conseguira reunir. Trabalhar para a DAIEI era de facto um salto que podia acrescentar não apenas quantidade mas igualmente qualidade se não perdesse o rumo certo daquilo que já na altura se podia apelidar de cinema com preocupações autorais. Nesse capítulo, o filme cumpre sem mácula o projecto que a cineasta decidiu abraçar. Para lembrar o prestígio adquirido pela DAIEI, um dos maiores estúdios do pós-guerra no Japão, recordo aqui alguns dos seus filmes mais emblemáticos: a pluralidade de pontos de vista de RASHOMON (AS PORTAS DO INFERNO), 1950, de Akira Kurosawa, a mestria da arte cinematográfica patente na belíssima obra-prima JIGOKUMON (AMORES DE SAMURAI), 1953, de Teinosuke Kinugasa, e o fantástico UGETSU MONOGATARI (OS CONTOS DA LUA VAGA), 1953, de Kenji Mizoguchi.




A Princesa Errante, em análise

Movie title: Ruten no ôhi

Director(s): Kinuyo Tanaka

Actor(s): Machiko Kyô, Eiji Funakoshi, Atsuko Kindaichi

Genre: Drama, 1960, 102min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Esta segunda e última parte da INTEGRAL KINUYO TANAKA, programação proposta pela produtora e distribuidora THE STONE AND THE PLOT, completa o ciclo de seis filmes que nos permitem, sejamos cinéfilos ou não, conhecer melhor uma obra que se ergueu desde sempre num plano de afirmação do universo feminino, nas suas mais diversas vertentes, mas sem nunca se inserir numa visão sectária e redutora da condição da mulher na sociedade e no mundo, nomeadamente no contexto específico da História do Japão. Que estes filmes estejam disponíveis e sejam estreias absolutas no circuito comercial, e não apenas nos circuitos especializados das cinematecas, cineclubes ou festivais de cinema, faz toda a diferença. Sobretudo quando pensamos na escassa presença, nesse mesmo circuito das salas, de clássicos indiscutíveis da História do Cinema Mundial, a começar pelos poucos mas bons da cinematografia portuguesa.

Finalmente, preciso será dizer que qualquer das seis cópias da INTEGRAL KINUYO TANAKA foi objecto de meticuloso restauro.

CONTRA: Nada.

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