©The Stone and the Plot

A Lua Ascendeu, em análise

O ciclo de The Stone and the Plot dedicado à cineasta Kinuyo Tanaka conclui a sua primeira parte com a exibição de “A Lua Ascendeu”!

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Em 1955, a segunda longa-metragem dirigida pela já então veterana actriz Kinuyo Tanaka, TSUKI WA NORINU (A LUA ASCENDEU), produzida pelos Estúdios NIKKATSU num contexto de maior desafogo económico e artístico, permitiu-lhe consolidar a sua opção pela realização e abriu-lhe as portas a uma preciosa colaboração com um dos grandes mestres do cinema japonês, para muitos, o mestre dos mestres, um senhor chamado Yasujiro Ozu. Na verdade, podíamos esperar ser absolutamente natural que a realizadora, ainda jovem nesta profissão habitualmente dominada por homens, e que nesta época já era uma elegante quarentona, só podia beneficiar da experiência adquirida com aquele que muitas e excelentes vezes lhe deu a oportunidade de ser musa e personalidade maior na arte da representação, ou seja, Kenji Mizoguchi. Homem que seguramente a via como uma mulher capaz de partilhar os mais difíceis e arrojados desafios. Mas se aprendeu algo com ele, que sem dúvida a amava num sentido plural da palavra, foi com Yasujiro Ozu que Kinuyo Tanaka se cruzou para burilar a planificação e o guião da sua primeira obra-prima. Precisamente, o filme que de seguida me proponho analisar, mesmo que brevemente, porque o que me vai na alma depois do segundo visionamento (e não será o último) preencheria muitas páginas de uma crónica ensaio que, aqui e agora, não faria imediato sentido. Faz sentido, isso sim, recomendar desde já as suas evidentes qualidades, onde destaco a superlativa Direcção de Fotografia, saliente na exuberância de uma magnífica versão restaurada em 4K que constitui a melhor homenagem ao seu responsável, Shigeyoshi Mine, que nos legou um milagre de composição feita de luz e sombras que, arrisco dizer, nem na altura da sua estreia mundial foi visionado com a exibição do seu mais amplo esplendor.

TRÊS IRMÃS E OS LABIRINTOS DO AMOR NA NOITE TRANSFIGURADA

A Lua Ascendeu
©The Stone and the Plot

De igual modo, destaco a sublime Direcção Artística de Takeo Kimura, irrepreensível nos mais ínfimos pormenores e onde se observa um jogo permanente entre os décors concebidos para os primeiros planos numa conjugação perfeita com os planos recuados. Espaços interiores que se multiplicam numa profusão de ângulos, divididos por paredes de madeira e papel de arroz, onde discretamente flutuam cortinas através dos quais observamos a luz filtrada do exterior, incluindo a da Lua, esse satélite da Terra que convida ao fulgor do amor e aos encontros e reencontros dos homens e mulheres apaixonados. Lua que ilumina a noite dos amantes e os mistérios mais prováveis e improváveis. Lua que inspira os que procuram viver e sobreviver naqueles anos cinquenta num mundo novo que ainda guardava cicatrizes dos anos de guerra e das privações que a reconstrução levou anos a sarar. E, para acrescentar uma nota singular a este quadro de valores perenes, há a música de Takanobu Saitô que nos empurra para os meandros das obras de Yasujiro Ozu e nos leva suavemente por quartos e corredores, por campos bordejados de paisagens montanhosas, por labirintos onde nos queremos perder para melhor usufruir do singular despertar dos sentidos.

INTEGRAL KINUYO TANAKA (Primeira Parte)

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1955: TSUKI WA NORINU (A LUA ASCENDEU)

Escrito por Yasujiro Ozu e Saito Ryosuke, o argumento deste filme situa a acção em Nara, na calma e pacífica paisagem daquela que foi a antiga capital do Japão e que uma das personagens descreve, para fazer o contraste com Tóquio, através de uma analogia musical: “O tempo de Nara é lento como o do Teatro Nô. O de Tóquio é allegro”. Mas quem assim fala ainda não sabe ou, pelo menos, não sentiu a vertigem das coisas quando elas se precipitam mesmo quando parecem imóveis. Como Yasujiro Ozu, a realizadora sabe bem que as variações de velocidade não passam necessariamente pela pura e dura mecânica do movimento, mas sim pela dinâmica dos sentimentos e pelo pulsar das emoções que nos determinam o caminho a seguir ou a evitar. Dinamismo que nos faz acreditar, mesmo sem sermos crentes, no mistério incorporado num belo cântico coral ouvido num Templo Budista.

A Lua Ascendeu
©The Stone and the Plot

Mochiki (interpretado pelo veterano actor Chishu Ryu), pai de família reformado, vive com as suas filhas: Chizu, que saberemos ser viúva, Setsuko, a mais nova e irrequieta que ambiciona sair de Nara para abraçar a “modernidade e energia” de uma grande cidade como Tóquio, e Ayako, a que se apresenta mais reservada, fechada sobre si própria numa ambiguidade conservadora que na prática irá contrariar. Três mulheres iguais no plano familiar, mas um grupo de irmãs que perfila as suas vidas de forma diversa quando situadas nas margens de uma sociedade dominada pelo querer masculino. Também diferentes na afirmação da sua sexualidade, quando confrontadas com a perspectiva de um futuro que eventualmente pudesse prefigurar a ideia redutora de um casamento organizado. De facto, Setsuko ama Shoji, que vive num templo próximo da sua casa. Um dia vemos chegar outro homem, um amigo de Shoji. Trata-se de Amemiya. Traz com ele ideias de progresso, novidades da ciência como as micro-ondas que, segundo afirma, irão facilitar as comunicações entre diversas áreas geográficas do Japão, país que se queria moderno e empreendedor. Para Setsuko, este amigo vindo de fora daria um excelente namorado, quem sabe um bom marido, para a sua irmã Ayako. Para os devidos efeitos, irá fazer os possíveis e impossíveis para os juntar, e aqui entra em cena, literalmente, a luz da Lua, peça fulcral do filme A LUA ASCENDEU. Mas Ayako já conhecia Amemiya, e ambos vão encontrar-se independentemente dos esforços da rapariguinha e, num momento de renovado enlace, recordam o Verão em que, ao fim do dia, a estrela solar desaparecia gradualmente no horizonte para dar lugar ao planeta Lua que se erguia imenso e crepuscular. Como se fosse o fim e o princípio de um ciclo vital que assim envolvia o percurso dos amantes passageiros. Daqui para a frente o filme adquire a dimensão de um espaço fílmico que se multiplica por mil e um caminhos, cada qual peça constitutiva de um mosaico emocional onde se jogam os valores da família, a relação entre o pai e as suas filhas, o papel da religião (neste caso o Budismo) na definição espiritual das personagens e das suas motivações mais profundas. Todos estes aspectos circunstanciais são dominados e articulados com a mestria de alguém que nem parecia estar a realizar na sombra do gigante Yasujiro Ozu, porque se a marca do realizador está lá do princípio ao fim, a mão firme e o olhar próprio da cineasta Kinuyo Tanaka não esconde a especificidade do seu olhar, um olhar autónomo e feminino.

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A Lua Ascendeu
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Por último, os abençoados que virem o filme irão ficar deliciados com a prestação da actriz que interpreta aqui uma curiosa personagem como, aliás, fez nos outros filmes que realizou e que veremos nesta primeira parte da retrospectiva integral da sua obra. Em A LUA ASCENDEU decidiu representar uma empregada da casa do velho patriarca, e a inefável Setsuko quer que ela seja cúmplice de um estratagema por ela urdido e imite a voz da irmã. Para isso organiza um ensaio, com algum nervosismo, e a pobre mulher presta-se ao chamado papel de embrulho. Só que quem embrulha o papel sabe muito, e a sequência em causa é pura e simplesmente magnífica ao misturar uns pozinhos de arrogância na atitude classista de Setsuko, mais uma pitada de “normal” submissão da serviçal a uma estratégia meio maluca da filha do patrão, e o resultado final não podia ser mais cáustico e divertido. Só para ouvir Kinuyo Tanaka a papaguear e inventar as palavras que era suposto outra mulher dizer, usando um estilo peculiar para recriar uma vozinha que, sem rir, lança para o ar umas frases que denotam a fragilidade da pura, simples e doce vigarice, já valia a pena ir ver este filme. Nada como uma grande actriz nas suas sete quintas, o que aqui passa pelo aproveitamento que Kinuyo Tanaka faz das suas deixas num argumento que lhe dava pano para mangas e uma certa margem de manobra no modo como corporiza e vocaliza a deliciosa caricatura de uma atabalhoada direcção de actores por parte de Setsuko que, por fim e para mal dos seus pecados, assume estar satisfeita com pouca coisa ou coisa nenhuma. Repito, delicioso…!




A Lua Ascendeu, em análise

Movie title: Tsuki wa noborinu

Movie description: O Sr. Asai mora em Nara com as suas três filhas: a mais velha, Chizuru, que voltou para a casa da família após a morte do marido; a do meio, Ayako, em idade de casar, mas sem pressa de deixar o progenitor; e a mais nova, Setsuko, a mais exuberante das três irmãs que sonha em mudar-se para a capital. Esta última é muito próxima de Shôji, o jovem cunhado de Chizuru que mora num templo próximo da família Asai. Um dia, ele recebe a visita de um velho amigo, Amamiya, que lhe fala sobre Ayako. Setsuko está convencida de que Shôji ainda tem sentimentos pela sua irmã e fará de tudo para forçar o destino…

Date published: 6 de April de 2023

Director(s): Kinuyo Tanaka

Actor(s): Chishû Ryû, Shûji Sano, Hisako Yamane, Yôko Sugi, Mie Kitahara

Genre: Drama, 1955, 102min

  • João Garção Borges - 100
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