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A Romancista e o seu Filme, a Crítica

A Midas Filmes deu a conhecer “A Romancista e o seu Filme”, a obra vencedora do Urso de Prata do Festival de Berlim, que conta com a realização de Hong Sang-soo.

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Hong Sang-soo, realizador sul-coreano nascido em Seoul a 25 de Outubro de 1960, não será propriamente um desconhecido do público cinéfilo português. De uma forma ou de outra, no pequeno ou no grande ecrã, os seus filmes por aqui estreados permitiram acompanhar uma parcela importante da obra do cineasta. Personalidade multifacetada, há muito que insiste numa via singular que passa por manter viva uma invulgar coerência no interior de um modelo de produção: orçamentos reduzidos, argumentos capazes de espoletar junto dos actores diálogos naturais e incisivos, imagens e sons sem grandes artifícios, efeitos visuais rebuscados, nada de sonoplastias desgarradas dos fins que pretende atingir.

A Romancista e o seu Filme
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Em suma, mecanismos de criação no quadro da construção narrativa que defende com economia e convicção, assumindo obra após obra a sua metodologia, que integra sem esforço numa ideia precisa de cinema. Facto que constitui uma consistente imagem de marca na evolução da sua carreira e no reconhecimento e valorização internacional do seu estatuto enquanto autor.

NO CINEMA DE HONG SANG-sOO, O CAMINHO FAZ-SE CAMINHANDO…!

Pela mão da Midas Filmes, os dois filmes que de uma assentada vão agora estrear em sala, “So-seol-ga-ui yeong-hwa” (“A Romancista e o seu Filme”) e “Tab” (“Lá em cima“), ambos de 2022, não fogem ao seu estilo habitual que corresponde em grande medida a um conjunto de sequências articuladas cronologicamente e nas quais vemos uma série de personagens, a maioria das vezes sentadas a uma mesa, seja numa casa particular seja num lugar público, restaurantes, parques, praias, ruas e segmentos urbanos de uma qualquer cidade. Personagens que não param de comer, de beber (por vezes, muito) e sobretudo de conversar.




Diálogos que acompanhamos como se fizéssemos parte daquele círculo íntimo de actores e actrizes que ali estão a desempenhar, com maior ou menor liberdade, os papéis que lhes foram atribuídos. Diálogos cuja matéria acaba por nos interessar, mesmo quando em algumas ocasiões nos questionamos: mas o que estamos aqui a fazer? Será que devemos penetrar nesta intimidade sem alertar os nossos sentidos para o facto de estarmos a ouvir algo que se calhar não devíamos saber? Faz lembrar aquelas vezes em que, sentados ao lado de um grupo de desconhecidos, não conseguimos deixar de ouvir, apesar do peso da má-consciência, o que eles dizem em voz alta, passando nós a partilhar, com vontade ou sem ela, o que supostamente são assuntos que só dizem respeito ao quadro existencial daquelas vidas alheias.

Lá em Cima
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Na verdade, Hong Sang-soo usa no modo como planifica os argumentos e como põe os actores a representar, habitualmente enquadrados por planos médios e fixos (onde pode surgir por breves segundos um ou outro reenquadramento), um expediente dramático mais velho do que a História da Humanidade, o puro e simples prazer do voyeurismo. Dito de outra maneira, numa versão mais suave e aceitável do ponto de vista ético, a natural e compulsiva curiosidade de quem observa e ouve sem ser observado ou ouvido. No fundo, no campo da fruição da linguagem cinematográfica, o desejo de participar e acreditar na história que nos está a ser contada, por mais inverosímil que ela seja.




No caso da filmografia de Hong Sang-soo nem será difícil atingir essa dialéctica criador/espectador, porque a maioria das suas longas-metragens possui uma boa dose de identificação com o real e uma meticulosa relação dinâmica com o quotidiano que circunda a rodagem, mesmo quando a outra realidade assim construída acaba subvertida. Realismo aparente que só absorvendo o ritmo imposto na montagem e munido de um pensamento livre se pode compreender plenamente. Em suma, no cinema deste realizador o caminho faz-se caminhando e, para os devidos efeitos, ou apanhamos o comboio e nos sentamos na carruagem (não na locomotiva) onde ele costuma dirigir as operações, ou então o melhor será comprar um bilhete para outro destino. Enfim, na pior das hipóteses há sempre a alternativa do exercício subjectivo de ficarmos por ali com ele a ver a vida passar diante dos nossos olhos, e seguramente a comer, a beber e a discutir projectos passados, presentes e futuros no contexto do cinema de arte e ensaio.

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Dito isto, o cinema de Hong Sang-soo exige da nossa parte a maior disponibilidade para melhor apreciarmos os pormenores, o que os actores verbalizam e o que deixam perceber numa espécie de limbo de meias palavras até que surja a confissão e exposição plena dos sentimentos, conflitos e contradições. Requisito número um para mergulharmos de cabeça na sua ficção e no fluxo e refluxo do que vamos vendo e ouvindo, podendo no processo descobrir a chave que abre as portas do que até ali se mantivera latente, quase como se a nossa atitude fosse a fórmula reveladora que desse vida e sentido ao que as personagens até ali assumiram como sendo as suas idiossincrasias. Precisamente, numa sequência capital de “A Romancista e o seu Filme”, Junhee (a excelente actriz Lee Hye-young), uma romancista em nítida crise de inspiração, entra numa livraria ao encontro de uma antiga amizade.




Para além da amiga, a escritora Sewan (Seo Young-hwa), a nossa protagonista encontra uma jovem, Yangjoo (Cho Yunhee), que partilha a actividade livreira com Sewan. Pouco depois, estas mulheres (como se pode calcular, e nem podia ser de outra maneira, sentadas numa mesa onde saboreiam desta vez um café) falam do passado e de mil e um assuntos, até que Junhee decide interrogar a mais nova, descobrindo que ela abandonara os estudos artísticos e se voltara para o estudo da linguagem gestual: “Deve ser divertido. Tens de me ensinar um dia”, diz-lhe Junhee, que acrescenta: “Consegues dizer isto em linguagem gestual?” Pensa um pouco e de uma só vez lança o desafio: “O dia ainda está radioso, mas não tarda escurece. Enquanto o dia dura, aproveitemos uma boa caminhada”. De seguida, não sem uma pequena hesitação, a rapariga desenha com as mãos a frase poética concebida pela romancista.

A Romancista e o seu Filme
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Como se visse o reflexo num espelho imaginário, Junhee procura imitar Yangjoo. Por diversas vezes ambas repetem os gestos. E nós, espectadores, sentimos igual desejo de as imitar. Não admira, nesta altura estamos já envolvidos pela rede lançada pelo realizador. Na imagem, um plano fixo, e não podia ser de outro modo. Neste caso, qualquer mudança de escala destruiria o efeito de atracção e o poder dramático que esta aparentemente simples sequência nos propõe.

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De facto, será aqui que iremos começar a nossa verdadeira caminhada até ao mais profundo da alma da escritora e da sua crise de identidade, confrontando a nossa percepção do dia real que ainda se perfila radioso, aliás, atmosfera dominante em que a acção decorre, com o caminho ainda por percorrer durante o qual encontraremos as restantes personagens: um realizador (Kwon Hae-hyo) e a sua interventiva mulher, mais uma conhecida actriz que com eles se cruza num parque próximo, e Kilsoo (Kim Min-hee, colaboradora de longa data e, digamos, musa de Hong Sang-soo), jovem de personalidade irrequieta e que Junhee, depois de longos e serpenteados diálogos, convida para integrar o elenco de uma curta-metragem que ela própria deseja realizar.




Filme que será concluído com o apoio de um familiar de Kilsoo e que graças a uma programadora de uma pequena sala de cinema será projectado para uma dupla de críticos e posteriormente para a actriz. No final, iremos ver um excerto desta obra experimental, onde a cor desponta por contraste com o “prateado” preto e branco que impera na restante e cuidada fotografia de “A Romancista e o seu Filme”.

A Romancista e o seu Filme
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E não se fica por aqui o contraste. De facto, a curta-metragem parece oriunda de um outro planeta. Na ambição de fazer algo de diferente, de experimentar outras linguagens, Junhee não demonstrou ser melhor cineasta do que romancista. Perfeita ironia, aquela com que Hong Sang-soo finaliza o seu filme, como se quisesse dizer que cada qual deve ocupar o lugar que lhe compete, apesar de ser perfeitamente legítimo o impulso de querer alcançar alguma dose de equilíbrio entre o que somos e o que num determinado momento podemos querer vir a ser.

A Romancista e o Seu Filme, a Crítica
Lá em Cima

Movie title: So-seol-ga-ui yeong-hwa

Director(s): Hong Sang-soo

Actor(s): Lee Hyeyoung, Kim Minhee, Seo Younghwa, Park Miso, Kwon Haehyo, Cho Yunhee, Ha Seongguk, Ki Joobong, Lee Eunmi, Kim Siha

Genre: Drama, 2022, 93min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Para além do que referi no artigo, não posso deixar de salientar que “A Romancista e o seu Filme” recebeu em 2022 o Urso de Prata – Grande Prémio do Júri – no Festival de Berlim.

No seio de um elenco onde cada actor encaixa como uma luva, destaque especial para a actriz protagonista, Lee Hye-young.

CONTRA: Nada.

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