Nico, 1988 | © Vivo Film

11ª Festa do Cinema Italiano | Nico, 1988, em análise

“Nico, 1988”, exibido no âmbito da 11ª edição da Festa do Cinema Italiano, é uma poderosa fotografia dos últimos três anos de vida da superestrela de Andy Warhol e voz de um dos mais emblemáticos trabalhos discográficos de sempre: The Velvet Underground & Nico.

Há um determinado momento nesta surpreendente obra de Susanna Nicchiarelli, em que Nico pergunta ao seu manager, Richard, se está feia. A resposta taxativa de Richard é seguida por uma afirmação ainda mais inesperada da musa de Andy Warhol e ícone da música avant-garde dos anos 60: “Ainda bem, eu não era feliz quando era bonita”. É um momento de “Nico, 1988”, filme vencedor da secção Orizzonti da edição de 2017 do Festival de Veneza, que encapsula de forma singular o estado de espírito que flutuava sob os derradeiros anos de uma estrela desaparecida dos holofotes, dependente das drogas, entregue aos seus demónios pessoais e que se encontrava, àquela data, no sopé de uma imensa montanha que havia escalado ao longo da sua trágica e glamorosa vida.

Com uma estrutura narrativa única, o filme de Susanna Nicchiarelli debruça-se sobre os três últimos anos de Christa Päffgen, a Nico de Warhol, que nascera para a música a partir da colaboração com os Velvet Underground num dos álbuns-charneira da indústria discográfica dos anos 60 (e de sempre): The Velvet Underground & Nico. Curiosamente, Nico despreza essa sua colaboração com a banda de Lou Reed (com quem manteve uma relação amorosa), referindo que se limitou a oferecer a voz para três temas (“Femme Fatale”, “All Tomorrow’s Parties” e “I’ll Be Your Mirror”), e a tocar pandeireta no background das restantes composições que constituem esse álbum essencial. A sua carreira musical como artista a solo nasceu após esse projeto com os The Velvet Underground, quando Jim Morrison lhe pediu para escrever sobre os seus sonhos. Aí nascera a segunda vida de Nico, porventura menos acessível ao grande público, mas isso não era algo que a inquietasse, até porque se dizia “seletiva” quanto à audiência que pretendia atingir com as suas melodias.

Não haja dúvida que também esta cinebiografia,“Nico, 1988”, se assume como seletiva quanto à audiência que pretende comover. A “sacerdotisa das trevas”, como era chamada, era uma das mais proeminentes artistas da década de 70 e 80, mas Susanna Nicchiarelli filma aqui a decadência, a ausência de glamour, a voz arrastada, o álcool, as drogas, a depressão. Filma a mãe afastada que se tenta reconciliar com o filho esquecido, filma a artista que nega a nostalgia do passado, filma a musa feia e alheada, a Mulher por detrás do ícone, enquanto esta viaja pela Europa na sua derradeira tour.

Nicchiarelli emociona de imediato o espectador quando abre a sua câmara para um primeiro e glorioso plano numa Berlim a arder no fim da II Grande Guerra. Ouve-se o silêncio, o som da derrota, um som particular que Nico sempre tentou recuperar ao longo da sua vida, utilizando para isso um dispositivo de captação de som que trazia sempre consigo. Depois de nos sermos confrontados com o título do filme (que nos remete para uma pessoa – marcada por esse episódio traumático de ver Berlim a ser tomada pelas forças Aliadas – e para um ano específico), é a vez da atriz Trine Dyrholm nos emocionar, dando voz ao tema “These Days”, que toca no fundo de uma sequência alucinante de imagens de arquivo que intersectam a narrativa como se fossem arremessos de memórias perdidas (These days I seem to think a lot / About the things that I forgot to do / And all the times I had / A chance to). Não há dúvidas de que a atriz dinamarquesa imprime uma densidade dramática assinalável no olhar e nas expressões faciais, mas é a sua voz que convoca a femme fatale e traz à superfície todas as fragilidades evidenciadas nos seus últimos anos de vida. Uma composição admirável de um ícone, e talvez uma das melhores interpretações que poderão ser vistas este ano em circuito arthouse.

É claro que a cinematografia de Crystel Fournier é também ela essencial para congelar aquele tempo que hoje nos é tão estranho, as cores turvadas daqueles lugares e daquelas pessoas. A montagem Stefano Cravero, fazendo uma justaposição meticulosa de imagens de arquivo creditadas a Jonas Mekas com imagens do filme, atribui uma cadência requintada ao trabalho capturado por Fournier, contribuindo para a construção de um retrato místico, cruel, seco e autêntico da estrela Warholiana. Pena que a fluidez desse retrato esbarre num final anti-climático, que mostra Christa a sair para o seu fatal passeio de bicicleta em Ibiza.

Em benefício do poder dramático do seu filme, Susanna Nicchiarelli poderia ter recriado esse momento, ao invés de o deixar na imaginação daqueles que conhecem a sinistra despedida de Nico ou na ignorância daqueles que não a dominam. Não é, no entanto, um aspeto que diminua de forma significativa este fascinante biopic que mergulha a fundo na vida de uma trágica e notável lenda.

 

Nico, 1988, em análise

Movie title: Nico, 1988

Date published: 7 de April de 2018

Director(s): Susanna Nicchiarelli

Actor(s): Trine Dyrholm, John Gordon Sinclair Anamaria Marinca, Sandor Funtek

Genre: Drama, Biografia, Música, 123 min

  • Daniel Rodrigues - 72
  • José Vieira Mendes - 80
76

CONCLUSÃO

“Nico, 1988” é um biopic que resiste à tentação de ceder aos formalismos do género. Em vez de se focar na ascenção de Nico e todo o glamour que isso poderia inferir, Susanna Nicchiarelli, através do seu olhar clínico, concentra-se nos derradeiros momentos da queda profissional e pessoal de uma lenda.

O MELHOR: A performance da dinamarquesa Trine Dyrholm, que evoca Nico e todos os seus domónios. O filme é dela.

O PIOR: Um certo desiquilíbrio quanto ao número de cenas que são incluídas nos anos 1966, 1967 e 1968. O final abrupto e anti-climático.

DR

Sending
User Review
5 (1 vote)
Comments Rating 0 (0 reviews)

Leave a Reply

Sending