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O Pai Tirano, em análise

Considerado um dos melhores filmes do cinema português, “O Pai Tirano” ganhou uma nova versão pelas mãos de João Gomes.

Em 1941, António Lopes Ribeiro levava para as telas de cinema “O Pai Tirano”, uma ode aos costumes da capital dos anos 40. O argumento cheio de tiradas que satirizam a pequena burguesia portuguesa, bem como o elenco composto por primeiras figuras do Teatro de Revista conferiram a esta longa-metragem o estatuto de ‘Melhor Filme Português de Sempre’. Oito décadas depois, João Gomes arriscou tudo ao trazer de novo ao grande ecrã a obra de Lopes Ribeiro. Porém, as alterações ao guião feitas por Miguel Viterbo (Aqui Não Há Quem Viva) e Patrícia Müller (“Madre Paula”) fazem desta nova versão uma adaptação do original e não um remake.

Este não é o primeiro clássico a ganhar uma nova adaptação. A proeza já havia sido conseguida por Leonel Vieira que produziu a trilogia intitulada ‘Novos Clássicos’, da qual fazia parte “O Pátio das Cantigas” (2015), “O Leão da Estrela” (2015) e “A Canção de Lisboa (2016). Porém, nenhuma destas novas versões havia sido tão bem conseguida como “O Pai Tirano” de João Gomes. O mais espantoso é que esta é a primeira longa-metragem da autoria de João Gomes, uma vez que, até então, o realizador apenas tinha produzido curtas-metragens. Apesar de o risco ser acrescido dada a inexperiência, há que valorizar o (excelente) resultado final.

Chico (Miguel Raposo) trabalha na sapataria dos antigos Armazéns Grandella localizados no Chiado e está apaixonado por Tatão (Jessica Athayde), a empregada da perfumaria lá do sítio que, por sua vez, é cortejada por Artur (Diogo Amaral). Este último pertence à pequena burguesia, contrastando com o franzino Chico que ‘não tem onde cair morto’. Esta é a composição do trio amoroso que também pode ser visto como quarteto, uma vez que Gracinha (Carolina Loureiro) morre de amores por Chico. Porém, o desdém com que Tatão olha para o empregado da sapataria altera-se quando esta o ouve a ensaiar uma peça de teatro, achando que ele descende de condes. É esta a premissa de “O Pai Tirano” que nesta nova versão adquire novos contornos deliciosos e modernos.

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Primeiro que tudo, importa destacar o facto de, contrariamente ao que aconteceu com a trilogia ‘Novos Clássicos’, João Gomes ousou optar por manter o tempo cronológico do filme situado nos anos quarenta, à semelhança do original, não o transportando para o século XXI. Com esta proeza, a longa-metragem leva-nos para um cenário onde se vê uma Lisboa que é claramente atual, mas na qual se vislubra a utopia de uma cidade limpa em que as paredes não foram ainda violadas por grafites gatafunhados por todos os lados. Só por aí já o espectador é convidado a mergulhar no ambiente idílico construído propositadamente para este filme. Talvez não haja rigor nas vestes e penteados usados pelas personagens mas tudo isso se torna secundário quando a plateia se encontra fascinada com a atmosfera envolvente e nostálgica.

O segundo grande destaque vai para a escolha do elenco desta nova adaptação. É certo que jamais se conseguirá igualar a genealidade alcançada pelo grupo de atores presente no filme original, composto por Ribeirinho, Vasco Santana Leonor Maia, Graça Maria e tantos outros. Ainda assim, a lista de artistas que fazem parte da nova versão de “O Pai Tirano” mostra os grandes talentos que temos em Portugal. Dito isto, a grande surpresa vai para o desempenho de Miguel Raposo que fez um trabalho sublime neste filme, mostrando que filho de peixe sabe nadar (neste caso, representar). Ao dar vida a Chico, Miguel interpreta um homem franzino que olha para a modernidade como um perigo e o progresso como se fosse uma invenção do diabo. Também José Raposo, que neste projeto contracena com o próprio filho, mostra o quão bom ator e versátil é, não fosse ele um dos grandes nomes do teatro português da atualidade.

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Se o filme original já tendia a satirizar os costumes de uma época e de uma certa classe social, esta nova versão ousa criticar a política do passado, transpondo-a para a sociedade do presente. Na longa-metragem de João Gomes há uma clara presença de um movimento feminista proveniente da personagem de Tatão. Ao longo de várias cenas, vemos uma mulher que se quer emancipar, numa altura talvez precoce para a época vivida, questionando o porquês de só os homens poderem ir à guerra ou o porquê de as senhoras terem de usar determinadas roupas. Sempre que Jessica Athayde levanta estas questões na tela de cinema, o momento faz-se acompanhar pela presença da Polícia do Estado que faz questão de censurar o atrevimento de Tatão.

Mas o mais incrível é a maneira como previsões consideradas futuristas na época são inseridas no diálogo de forma subtil, fazendo assim uma desmistificação da contemporaneidade. Jorge Mourato dá vida ao refugiado russo Ciriloff que assume um papel de ‘vidente’. As previsões de Ciriloff incluem o casamento entre pessoas do mesmo género e a subida das mulheres a altos cargos políticos. Vê-se aqui a inserção de uma visão moderna da atualidade numa época que ficaria escandalizada com a liberdade.

O Pai Tirano
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Além de tudo o que já foi dito, importa salientar o quão relevante é o papel do teatro para esta história. O facto de parte do elenco ser composto por atores habituados a pisar o palco, as cenas em que os Grandelinhas se juntam para ensaiar a peça que dá nome ao filme estão genuinamente bem conseguidas. Nestas cenas, José Raposo, em especial, demonstra o carinho que tem pela arte de representação, vendo-se que as suas falas são ditas com alma. Estes são momentos que ilustram o companheirismo carcaterístico dos grupos de teatro, sejam eles amadores ou não, nomeadamente quando o grupo ensaiado por Santana ajuda Chico a enganar Tatão através de uma representação.

Em suma, estamos perante uma obra cinematográfica capaz de homenagear aquele que é o melhor filme português, sem ridicularizar o trabalho original. As cores fortes que nos são apresentadas são o contraste perfeito com o preto e branco da longa-metragem de 1941, mostrando num só projeto o quanto evoluiu a forma de se fazer cinema. Porém, João Gomes não deixou de manter presente esta característica típica dos filmes antigos, intercalando as cenas com imagens reais de arquivo da época dos anos 40. Resta deixar um grande ‘bravo!’ a toda a equipa envolvida na adaptação deste grande clássico.

TRAILER | O PAI TIRANO ESTREOU A 21 DE JULHO

 

Já assististe a “O Pai Tirano”? O que pensas desta adaptação do filme de 1941?

O Pai Tirano, em análise

Movie title: O Pai Tirano

Movie description: Chico ama Tatão, que é cortejada por Artur. Graça ama Chico mas não sabe que ele ama Tatão. Santana escreve uma peça para os Grandelinhas que servirá de guião à paixão de Chico e convencerá Tatão de que ele é um rico conde. A peça é depois encenada e acabam todos na prisão.

Date published: 30 de July de 2022

Country: Portugal

Duration: 110

Author: João Gomes

Director(s): João Gomes

Actor(s): Miguel Raposo;, Jessica Athayde;, Diogo Amaral;, José Raposo;, Carolina Loureiro;, Mafalda Vilhena;, Rita Blanco

Genre: Comédia romântica

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  • Jéssica Rodrigues - 85
85

CONCLUSÃO

Trata-se de uma arrojada adaptação de “O Pai Tirano” de 1941, que não exige o conhecimento prévio do filme original. Destinada a qualquer público, a longa-metragem é uma ode aos costumes de uma Lisboa antiga, havendo um contraste sublime com a atualidade.

Pros

  • O elenco selecionado é verdadeiramente bom, com destaque para o desempenho de Miguel Raposo.
  • O facto de a narrativa se manter na época dos anos 40 é uma mais valia.
  • As cores fortes usadas contrastam perfeitamente com o tom preto e branco do original.
  • O cruzamento de informações atuais com o argumento original foi verdadeiramente bem conseguido.

Cons

  • Nota-se algum descuido com o uso de elementos, como acessórios e perucas, que não são propriamente dos anos 40.
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