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O Relatório Auschwitz, em análise

Peter Bebjak traz a história de dois sobreviventes do holocausto até aos cinemas portugueses com “O Relatório Auschwitz”!

DOIS HOMENS EM FUGA PARA ALCANÇAR… A VERDADE…!

Logo a abrir esta co-produção entre a Eslováquia, a República Checa e a Alemanha, intitulada no original SPRÁVA (O RELATÓRIO AUSCHWITZ), 2021, realizada por Peter Bebjak, podemos ler a frase atribuída ao escritor e filósofo George Santayana, inscrita em modo de introdução ou reflexão ao que a seguir iremos assistir: “Os que não recordam o passado estão condenados a repeti-lo”. Neste caso, o que iremos ver ao longo de uma parte significativa do filme não será apenas o relato circunstancial da fuga de dois prisioneiros do campo de concentração Auschwitz-Birkenau, composto na verdade por dois complexos prisionais de campos separados por escassos quilómetros e construídos em solo polaco ocupado pela Alemanha nazi; iremos assistir igualmente ao castigo infligido sobre os desgraçados que pertenciam ao barracão onde foi detectada a ausência dos fugitivos. Para melhor situar a acção em Abril de 1944, os argumentistas (Jozef Pasteka, Tomas Bobbik e o próprio Peter Bebjak) ressuscitaram um episódio particularmente importante que ocorreu nesse mês e nesse ano, ou seja, a referida fuga que acabou por ser o primeiro passo para dois evadidos escreverem um relatório que seria uma corajosa denúncia pública daquilo que se passava no interior dos campos e que era mantido em segredo, mesmo dos alemães submetidos a um regime que não olhava a meios para alcançar os seus pérfidos objectivos. E isto numa altura em que a actividade de extermínio levada a cabo pelos mentores do III Reich, defensores de uma alegada superioridade da raça ariana, se praticava há já alguns anos com desmesurada amplitude e miserável sistemática, sobre os judeus e não só, nos chamados campos da morte de que o campo de Auschwitz e o campo satélite de Birkenau constituíam um dos mais activos e, no mau sentido da palavra, imponentes exemplos daquilo que os nazis apelidavam de “solução final”. De igual modo, para a construção das personagens protagonistas, os autores do argumento socorreram-se da história real de dois homens que realmente existiram, os eslovacos Rudolf Vrba (1924-2006) e Alfréd Wetzler (1918-1988). O primeiro era bioquímico, judeu, e fora deportado para o campo de Auschwitz em 1942. No filme será batizado de Freddy. O segundo era escritor e fora enviado para Birkenau, no mesmo ano do seu futuro companheiro, digamos assim, não só de destino mas de luta e combate pela verdade dos factos. Recebeu este o nome ficcional de Valer.

O Relatório Auschwitz
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Na estrutura do filme O RELATÓRIO AUSCHWITZ começamos por dar conta da repressão exercida sobre quem ousava fugir ou simplesmente sobre aqueles que ousavam qualquer resistência, por mais frágil que fosse, a um sem número de brutalidades exercidas pelos nazis e seus cúmplices. Mas logo que a situação fica clara a realização muda rapidamente a agulha para situações mais particulares, concentrando a atenção do espectador nos pormenores que nos fazem perceber melhor quem são e quem vão ser verdadeiramente os homens que arriscam a vida para levar ao conhecimento do mundo a macabra mas necessária contabilidade do chamado Holocausto: depoimento de dentro para fora que incluísse o relato das escolhas arbitrárias que os oficiais nazis faziam relativamente a quem devia viver ou morrer logo que os deportados chegavam aos campos, a imposição aos homens e mulheres mais robustos de uma lógica laboral que em nada diferia da escravatura, assim como a prova da utilização de um pesticida, o Zyklon-B, na produção do gás letal para uso nas câmaras para onde milhares eram empurrados para uma morte certa, depois de espoliados e humilhados. Finalmente, o uso contínuo de fornos crematórios para fazer desaparecer os vestígios do horror.

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Durante alguns minutos que se prolongam propositadamente para nos fazer sentir o clima de opressão constante sobre os prisioneiros, enquanto os dois homens em fuga se escondem num buraco coberto por umas pranchas de madeira, veremos os seus companheiros obrigados a permanecer de pé e ao frio durante horas e horas. Procuravam assim os nazis quebrar o silêncio e a resistência daqueles que podiam saber onde estavam os prisioneiros ausentes. Mas para os que ali ficaram essa fuga significava uma espécie de redenção da sua condição e dos seus sofrimentos. Como posteriormente se ouvirá, os prisioneiros de Auschwitz-Birkenau chegaram a perfilar o desejo que a denúncia das violências que lá sofriam fosse razão suficiente para os aliados bombardearem os campos. Estavam prontos para o sacrifício. Esta longa sequência, durante a qual serão intercaladas imagens e sons que nos fazem sentir a noção do espaço claustrofóbico que Freddy e Valer ocupam, antes de ultrapassarem com sucesso os perigos e antes de alcançarem o exterior e de se esconderem na floresta, possui o ritmo e a duração adequados. Depois, concretizada a fuga, esta irá durar até ao ponto em que os obstáculos se sucedem. Estamos no domínio da incerteza, e os evadidos atravessam agora a linha sempre complicada de gerir entre quem pode ser o amigo ou o inimigo. Na verdade, aqui o argumento e a realização acabam por preferir salientar os aspectos da solidariedade, patentes nos apoios que acabam por ser decisivos no caminho vitorioso ao encontro das autoridades que, atravessada a fronteira e na Eslováquia, acolheram numa relativa segurança Freddy e Valer, leia-se, Rudolf Vrba e Alfréd Wetzler. Será ali que a resistência lhes pede para redigir o documento que ficou conhecido por Relatório Vrba-Wetzler que, numa primeira fase, será recebido com alguma cautela por parte de um representante da Cruz Vermelha, denunciando este um comportamento que quase induzia alguma ambiguidade na apreciação de factos que deveriam por aqueles anos ser já mais do que simples suspeitas. Mas por fim, passados longos, neste caso, muito longos sete meses sobre a sua conclusão, o relatório lá foi publicado nos meios de comunicação aliados, mesmo assim submetido a cortes porque os editores julgavam ser difícil acreditar nas atrocidades relatadas. Seja como for, mesmo incompleto, o relatório ajudou a salvar a vida de cento e vinte mil judeus de Budapeste que aguardavam deportação para Auschwitz-Birkenau, onde se estima que dois milhões e quinhentos mil seres humanos foram encerrados e um milhão e cem mil foram assassinados. Entre eles, um milhão de judeus, setenta mil polacos, vinte e cinco mil ciganos (Roma e Sinti) e quinze mil prisioneiros de guerra da União Soviética. O complexo foi libertado pelo Exército Vermelho a 27 de Janeiro de 1945.

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Em O RELATÓRIO AUSCHWITZ, o destaque vai para a maioria dos actores que cumprem plenamente o papel que lhes foi confiado. Cada interpretação individual interage no colectivo sem que prevaleça a dicotomia redutora entre bons e maus que muitas vezes se observa neste género de ficção, mesmo a baseada em factos reais. Boa Direcção de Fotografia, sendo que a redução da paleta de cor ao essencial produz o efeito desejado de encapsulamento no espaço concentracionário, pela visão da arquitectura dos barracões cenografados, seguramente mais representativos do campo de Birkenau, o Auschwitz II, do que o de Auschwitz propriamente dito. Já que se fala dos locais de rodagem, a reconstituição das condições existentes nos dois campos foi concebida com a noção de credibilizar um local que ainda hoje pode ser reconhecido e visitado. E a este propósito recomendo sem sombra de dúvida essa autêntica lição de HISTÓRIA e de VIDA a quem se desloque à Polónia. Se passarem alguns dias na sublime e acolhedora Cracóvia, não faz mal nenhum dedicarem um dia inteiro ao agora memorial e museu, uma viagem absolutamente imprescindível pela memória do que aconteceu e nunca mais deveria acontecer. Há múltiplas hipóteses de visitar o complexo, podemos chegar em carro próprio ou então marcar no próprio hotel ou numa qualquer agência de viagens.

O Relatório Auschwitz
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E por fim fica aqui um derradeiro aviso aos espectadores que arrancam do lugar assim que entra o genérico final: façam o favor de ficar sentados e ouçam a extraordinária colagem de declarações, feitas na actualidade, por algumas pessoas, muitas delas sobejamente conhecidas de quem anda a par dos assuntos correntes, pessoas de diversos quadrantes com fraca ou venenosa memória e que destilam as maiores barbaridades, por vezes com pezinhos de lã. Esta sequência áudio, misturada com o visual dos créditos, convida-nos a voltar ao princípio do filme e a salientar de novo a frase de abertura: “Os que não recordam o passado estão condenados a repeti-lo”. Sobretudo quando, ostensiva e intencionalmente, não querem recordá-lo.

O Relatório Auschwitz, em análise
O Relatório Auschwitz

Movie title: The Auschwitz Report

Date published: 16 de June de 2022

Director(s): Peter Bebjak

Actor(s): Noel Czuczor, Peter Ondrejicka, John Hannah

Genre: Drama, 2021, 94min

  • João Garção Borges - 65
  • José Vieira Mendes - 60
63

Conclusão:

PRÓS: Memória de um feito histórico que resultou na fuga de dois prisioneiros do complexo de campos de concentração de Auschwitz-Birkenau com a posterior divulgação de um relatório que recebeu o nome dos seus autores, os protagonistas da referida fuga, dois judeus eslovacos, Rudolf Vrba e Alfréd Wetzler. Mesmo nos dias longos e luminosos da Primavera e Verão que apelam ao lazer, não devemos esquecer as sombras que ameaçaram e ameaçam a paz e a liberdade da Humanidade. Filmes como este são infelizmente necessários para manter viva a memória dos crimes do poder nazi, das atrocidades que aconteceram e nunca mais deveriam acontecer.

SPRÁVA (O RELATÓRIO AUSCHWITZ) foi a longa-metragem escolhida pela Eslováquia para representar aquele país na candidatura aos Óscares na Categoria de Melhor Filme Internacional. Como muitas outras, não chegou a ser nomeada.

CONTRA: O filme na sua componente ficcional, mas baseada em factos reais, podia porventura demorar mais alguns minutos na exploração das contradições geradas pelas interrogações do representante da Cruz Vermelha a quem os protagonistas entregam o relatório, e provavelmente outros membros de instituições que não aparecem, e ao percurso que este documento sofreu até ser publicado, situação que merece alguma reflexão sobre a eficácia de certas organizações, que nem sempre são capazes de ultrapassar um compreensivo mas demorado pensamento burocrático. Esta opção está praticamente ausente da narrativa, a não ser nas referências históricas, realmente esclarecedoras, mas inseridas apenas antes do genérico final.

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