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ArteKino ’18 | Pin Cushion, em análise

Pin Cushion” é um bizarro conto de bullying na adolescência e na idade adulta que não tem piedade nem pelas suas personagens nem pelo espectador. O filme de estreia da realizadora Deborah Haywood é uma das obras disponibilizadas online pelo Festival ArteKino.

Tanto no patamar do discurso cinematográfico como da ideologia dominante na sociedade, o bullying é encarado como algo intrinsecamente ligado à juventude. Isto cria uma ideia errónea de que tais dinâmicas e seus efeitos são algo tão necessariamente efémero e passageiro como o caminho entre o nascimento e a idade adulta. Afinal, qual foi a última vez que um filme, série ou conversa sobre bullying na idade adulta não se evidenciou como um jogo de humor à custa daqueles afetados pelo fenómeno? Quer sejam os párias sociais de um escritório numa sitcom popular ou uma figura grotesca sentada no comboio, sozinha apesar da escassez de lugares, a nossa cultura tende a ver tais indivíduos como justos alvos de escárnio e não como os tristes humanos que uma vida de abuso e humilhação esculpiram com ferro e fogo.

Afinal, mesmo quando se fala de crianças ou do tema num contexto académico, há quem veja estas crueldades como um necessário elemento de crescimento, como uma ferramenta que nos ajuda a construir uma armadura necessária para enfrentar a vida adulta. Infelizmente, nem todos somos capazes de conjurar tal exosqueleto de proteção emocional. “Pin Cushion”, a primeira longa-metragem da realizadora inglesa Deborah Haywood, é o raro filme que se atreve a ver para além destas ideias pré-concebidas e socialmente aceites sobre a suposta natureza inofensiva do bullying. A cineasta faz isso através de um retrato duplo, como que a exemplificar as origens do horror e sua final consequência nas figuras de uma jovem adolescente e sua mãe.

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A história de duas párias sociais.

Elas são Lyn e a filha Iona e, quando as conhecemos no início da narrativa, estão a começar uma nova vida depois de se terem mudado para uma pequena cidade algures no Reino Unido. Seu passado é, na generalidade, uma incógnita, mas é fácil deduzir bastante da codependência meio doentia que caracteriza a vida das duas mulheres e sua paixão partilhada por decorações amorosas, rendas e tudo o que tenha em si a imagem de um gatinho inocente. Mãe e filha são a melhor amiga uma da outra e o mundo de berloques e fantasia em que vivem dentro de casa, mais do que um exemplo de gosto kitsch, é a manifestação de um abrigo psicológico em que elas se refugiam e procuram conforto.

Fora de tal Éden rendado, Lyn e Iona são duas pessoas a quem qualquer tipo de conforto é cruelmente negado por toda uma comunidade que parece formada por pessoas cronicamente insensíveis. Mesmo quem tenta ajudar acaba por só ferir com as suas palavras de untuosa falsa compaixão e até os aparentes amigos genuínos ou potenciais admiradores românticos são efémeros e estão sempre prontos a virar seus afetos para outras pessoas menos estranhas que a parelha de mãe e filha. Nada disso impede as duas protagonistas de proclamarem a sua popularidade a alto e bom som, inventando encontros noturnos e amizades chegadas que não são mais que sonhos jamais cumpridos ou a tentativa de apaziguarem a preocupação justificada da pessoa que mais amam neste mundo.

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No caso de Iona, pelo menos, existe uma convicção tão grande nestas mentiras e uma vontade obsessiva que elas sejam verdade que a jovem está disposta a sujeitar-se a variadas indignidades na esperança de conseguir amizade das raparigas populares da escola. Esses ídolos de adoração adolescente, por sua vez, são os mais venenosos monstros que a narrativa de “Pin Cushion” consegue conceber, seres que se divertem com o sofrimento alheio e vivem numa espiral de auto enganação convencidas que as suas ações são meros jogos infantis sem grande importância. Tais suposições são validadas pelo mundo em que vivemos de tal modo que estas raparigas tornadas em mestres da tortura não têm qualquer motivação para encararem as suas ações com olho crítico ou para mudarem.

Lyn depara-se com essas monstruosidades da escola secundária na sua versão adulta quando tenta ser generosa para uma vizinha e acaba por ter a sua propriedade roubada e qualquer tentativa de a recuperar respondida com ódio causado pela sua aparência. Com excesso de peso, cabelos quebradiços e uma corcunda proeminente, Lyn é uma mulher que passa os seus dias atormentada pelo seu reflexo no espelho e pelas inseguranças que tornam suas interações sociais um espetáculo de submissão total. Num dos poucos gestos que pressagiam as reviravoltas violentas da conclusão do filme, Lyn tenta serrar a sua corcunda na banheira, mas é salva pela filha antes de completar irreversivelmente a sua mutilação.

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Crueldade intolerável e imperdoável.

“Pin Cushion” tem a aparência de uma comédia com seus cenários saturados de detalhes kitsch, guarda-roupa adoravelmente feio e fotografia ocasionalmente tão colorida que parece pertencer a um filme experimental. Contudo, tal como as descrições das personagens e suas provações sugerem, a narrativa está muito mais próxima da tragédia que do humor. A fricção entre as afetações estéticas e o texto nem sempre resulta, abafando o valor caracterizante do design idiossincrático em prol de um deslumbramento que em nada beneficia este estudo de personagens em sofrimento. Felizmente, Haywood é melhor realizadora de atores do que é mestre formalista e seu trabalho com o elenco de “Pin Cushion” é a grande mais-valia do projeto.

Assim, a crueldade desumana de todo o elenco secundário nunca parece irreal ou implausível, mesmo nos momentos mais extremos. Por outro lado, até quando o horror das vidas de Lyn e Iona se desfragmenta em fantasias adocicadas e momentos de montagem abstrata, o espectador é ancorado pela causticidade de angústia que as atrizes principais conseguem conjurar. A jovem Lily Newmark muito faz com os seus olhares vítreos e sorrisos insinceros para sugerir uma jovem mentalmente derrotada pelas humilhações da história, enquanto Joanna Scanlan, que quase nunca tem direito a papéis de protagonismo, finca os dentes na personagem de Lyn e pinta aqui um retrato deliberadamente repelente de uma pessoa que quebrou face às pressões de uma vida infeliz. Tal é a maravilha desta performance que até nos desastrosos momentos finais de “Pin Cushion, Scanlan dá razão de ser a este projeto profundamente misantrópico.

Pin Cushion, em análise
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Movie title: Pin Cushion

Date published: 26 de December de 2018

Director(s): Deborah Haywood

Actor(s): Lily Newmark, Joanna Scanlan, Loris Scarpa, Sacha Cordy-Nice, Bethany Antonia, Saskia Paige Martin, Sophia Tuckey, John Henshaw, Lennon Bradley, Aury Wayne, Charlie Frances, Isy Suttie

Genre: Drama, 2017, 82 min

  • Cláudio Alves - 65
65

CONCLUSÃO

CONCLUSÃO: “Pin Cushion” é um retrato de personagem de intolerável crueldade que tem o aspeto de uma comédia, mas não tem piada nenhuma. Algumas escolhas estilísticas e as reviravoltas do terceiro ato ameaçam fazer descarrilar o filme, mas o bom trabalho do elenco muito faz para compensar tais passos em falso.

O MELHOR: Scanlan mostra-nos bem as consequências de uma vida que fez com que uma mulher encarasse a sua autovitimização como única arma para enfrentar as injustiças do mundo. Um desempenho que merece aplausos.

O PIOR: O teor sensacionalista do final, que atira borda fora qualquer noção de nuance ou contenção e faz o filme cair em clichés venenosos da representação de bullying em cinema até então bem subvertidos pela impiedosa narrativa.

CA

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