"Primeiro Amor" | © Cinema Bold

MOTELx ’20 | Primeiro Amor, em análise

Entre o romance e a carnificina, “Primeiro Amor”, também conhecido como “First Love” e “Hatsukoi”, é um dos últimos trabalhos do grande Takashi Miike. O filme encontra-se programado na secção Serviço de Quarto do 14º MOTELx. Em Portugal, a obra será distribuída pela Cinema BOLD.

Ao longo da sua longa carreira, o cineasta japonês Takashi Miike já assinou mais de uma centena de filmes e a sua produtividade não mostra sinais de abrandamento. “Primeiro Amor”, um dos seus mais recentes trabalhos, é uma boa montra para as sensibilidades deste irreverente autor, seu estranho sentido de humor e amor pelo cinema frenético. Trata-se de um testemunho da genialidade do realizador, mesmo que não chegue ao patamar das suas melhores obras. Ao fim de tanto filme, Miike ainda sabe como deliciar o espetador e encontrar novas permutações para o seu estilo muito pessoal. De facto, esta obra transcende o cinema de excesso do realizador e, numa particular cena, a loucura é tão grande que a ação se torna animada.

Em certa medida, “Primeiro Amor” é uma comédia romântica filtrada pela sanguinidade do cineasta, seu gosto pela violência fílmica e pela narrativa pulp. É também um puzzle, ou quiçá uma tapeçaria, onde variadas histórias e personagens coloridas se mesclam em caótica desarmonia, culminando na carnificina do clímax. Não obstante as muitas linhas narrativas, o cerne da questão é constante assim como seu tom, que está sempre pronto a encontrar o ridículo no obsceno. Logo na primeira montagem do filme, Miike mostra-nos que tipo de história ele está a contar. Aí, um combate no ringue de boxe é bruscamente entrecortado com a imagem, quase cómica, de uma cabeça decapitada a rolar pela rua.

primeiro amor critica motelx
© Cinema Bold

Tais epítetos de brutalidade macabra são comuns no trabalho de Miike e “Primeiro Amor” não foge à regra, mantendo a mesma sede de sangue desse primeiro instante até ao seu final. Acontece que um dos jovens lutadores, o bem-parecido Leo, é diagnosticado com um tumor no cérebro em fase terminal. Apesar de ser desportista e estar na flor da idade, a foice do Anjo da Morte já se encontra sobre a cabeça dele. Com o sabor do fim nos lábios, Leo vê-se desamparado, em busca de sentido na vida ou de uma chance para se provar herói antes da cova. Essa chance materializa-se sob a forma de Monica.

Ela, a segunda protagonista de “Primeiro Amor”, é uma das figuras mais estranhas do filme. Viciada em cocaína e condenada a prostituir-se pela divida à yakuza, Monica não só é uma donzela em necessidade de salvação como uma pessoa cuja mente foi estilhaçada pelo trauma e pela culpa. Entre suas muitas psicoses, ela alucina com o fantasma do pai que lhe aparece sempre em roupa interior e coberto com um lençol branco. Certa noite, ela vê-se emaranhada nos esquemas de um mafioso, Kase, e seu cúmplice, um polícia corrupto chamado Otomo.

Pouco tempo depois do seu início meio humilde, a história já se converteu num jogo de gato e rato com uma dúzia de diferentes personagens umas atrás das outras. Monica e Leo, que se cruzam por mero acaso, fogem de Kase e Otomo, enquanto estes são perseguidos por dois gangues da yakuza, a namorada de um dos criminosos vitimados por Kase e um esquadrão da polícia em busca de resolver as teias de corrupção. É uma espiral desenfreada de loucura, onde também há espaço para videntes meio incompetentes, médicos irresponsáveis, e muito homicídio. Chegado o fim da noite, já as ruas da cidade viram muito sangue derramado.

No meio de tal cenário, como é possível que a paixão não floresça? Brincamos, mas é impressionante quanto Miike consegue que o universo do seu cinema seja regido por uma racionalidade psicótica que, no fim de tudo, realmente tem lógica interna. Parte da proeza parte dos atores que o cineasta aqui dirige, sendo que todos eles sabem como dominar as cambalhotas tonais que o argumento lhes exige. Ao início de uma cena, alguém pode estar a desempenhar um grande espetáculo de tragédia romântica, mas, chegado o fim do momento, já tudo descambou na paródia. Nem todo o intérprete sabe como representar a paixão entre balas e espadas, mas o elenco de “Primeiro Amor” faz disso uma arte própria.

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© Cinema Bold

Shota Sometani é especialmente impressionante como Kase, oscilando entre histeria homicida e o humor maníaco de um comediante sem juízo. Chegado o glorioso clímax numa labiríntica loja de ferragens, ele interpreta Kase no píncaro da loucura, com feridas abertas por todo o corpo e o sangue tão cheio de cocaína que não sente uma ponta de dor. De forma semelhante, a atriz simplesmente conhecida como Becky, desempenha aqui uma rapsódia de raiva e demência, sempre com os olhos esbugalhados e a garganta a rebentar em gritaria. Quando ela está em cena, “Primeiro Amor” torna-se uma comédia de vingança muito mais empolgante que o romance que o guião insiste em priorizar. Oxalá todo o filme fosse sobre esses dois psicopatas.

Primeiro Amor, em análise
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Movie title: Cosmogonie

Date published: 11 de September de 2020

Director(s): Takashi Miike

Actor(s): Masataka Kubota, Sakurako Konishi, Shota Sometani, Nao Ohmori, Becky, Chun-hao Tuan, Mami Fujioka

Genre: Ação, Comédia, Crime, 2019, 108 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

Montado com o fervor de um génio demente e escrito com a inspiração do demónio, “Primeiro Amor” é uma comédia romântica a resvalar para a ação sangrenta. O filme de Takashi Miike é formalmente aprumado e seus atores, se possível, são ainda mais sublimes que o realizador. Trata-se de uma joia de entretenimento nipónico.

O MELHOR: O trabalho inspirado de Sometani e da fabulosa Becky. Isso e a perseguição automóvel que se torna numa alucinação animada.

O PIOR: O romance é relativamente sensabor quando comparado com tudo o que se passa à sua volta. Também não ajuda que, apesar de suas idiossincrasias, Leo e Monica são as figuras mais “realistas” desta aventura.

CA

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