Public Service Broadcasting

Public Service Broadcasting informam, educam e entretêm o Lisboa ao Vivo

Mesmo com alguns solavancos pelo caminho, os Public Service Broadcasting abraçam os erros e tornam-nos num festival de pura música que nos transporta além da Lua.

Uma das ideias centrais de “Crime e Castigo” de Fyodor Dostoevsky é que uma sociedade na qual não pode haver crime é também uma sociedade onde não pode haver liberdade. Numa TED Talk, J. Willgoose, Esq. usa esta ideia para definir a sua filosofia musical: a música deve ter o potencial de correr mal. É isso que define um concerto ao vivo: o erro humano. Posso dizer que esta temática se aplicou à noite de 2 de Dezembro no Lisboa ao Vivo.

Chego às 20h30, o concerto é às 21h. As ruas em redor estão quase vazias. Será daqueles concertos com meia dúzia de melros que dão pena pelos artistas? Faz frio, muito frio. Levanto o meu bilhete e entro. Parece que vai correr mal. Há pouca gente, mesmo quando entro na zona principal do Lisboa ao Vivo. Observo o público. A maioria é estrangeira, sobretudo ingleses, e a idade média deve estar na casa dos trinta. Devo ser o mais novo na plateia. Noto que estou a tremer. De nervos, mas o frio também não ajuda. Uma luz azul invade a sala que, finalmente, se começa a compor. Começo a reparar no elemento visual do concerto. É um aspeto central dos concertos dos Public Service Broadcasting.

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Um quarto de hora depois das 21h. Estão atrasados ou será que faz tudo parte do plano? Finalmente, entram. Três homens sorridentes assumem as suas posições. A mais recente adição ao grupo, J. F. Abraham, vestido mais casualmente que os seus companheiros fica de pé junto a um sintetizador e trompete. Pega no baixo e afina. Wrigglesworth, de barba e vestido de fato e gravata, senta-se à bateria. Por fim, o criador da banda, J. Willgoose, Esq. aproxima-se de um sintetizador e pega na guitarra, afinando-a. Usa fato com laço. Uma versão mais cool de Bill Nigh. Sem esperar, “The Unsinkable Ship” entra em força e despertamos. Esta primeira música aquece-nos para a seguinte. De imediato, ouvimos “It was time to go”. Êxtase percorre a sala e “The White Star Liner” invade-nos. As guitarras cantam esperançosamente enquanto a bateria marca o nosso ritmo. Willgoose canta com voz distorcida pelos seus pedais o título da canção. O Titanic, tema do EP que a banda promove com este concerto, surge em todo o seu esplendor no ecrã. Abraham, brincalhão, move-se inquieto pelo palco.

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J. F. Abrahams, dos Public Service Broadcasting (© Carlos Mendes, Echo Boomer)

“Obrigado”, diz num sotaque inglês o fundador dos Public Service Broadcasting quando a música acaba. “Good evening. This is our first show in Portugal (em nome próprio). We hope you like it.” Nós aplaudimos e uma voz grave com um certo filtro vintage anuncia: “The importance of ideas and information”. Repete algumas vezes e entram os sintetizadores de Abraham e o banjo de J. Willgoose que começam a tocar o tema da banda, “Theme from PSB”, e, de imediato, a sala entra em ebulição. Cada instrumento brilha enquanto os membros da banda trocam sorrisos. O banjo sobressai-se, seguido da bateria de Wrigglesworth, terminando com Abraham, agora na guitarra. No ecrã, grupos de pessoas, famílias, amigos juntos ao rádio e à televisão a ouvir e assistir ao milagre do século, um novo serviço que promete servir a humanidade: Public. Service. Broadcasting. Se tivesse de descrever o que vejo numa pequena expressão: apenas três tipos a divertirem-se enquanto tocam música juntos.

Sem pausa, “Sputnik” invade a sala com os seus sintetizadores baixo e os elementos eletrónicos tomam conta do concerto. A melodia principal é tocada enquanto são projetadas imagens da humanidade maravilhada com o primeiro grande avanço na corrida ao espaço. O lançamento do primeiro satélite, o soviético Sputnik. Os sorrisos de Abraham e os movimentos soltos da banda enquanto toca reforçam a alegria encontrada no discurso. A maneira de Public Service Broadcasting tocar ao vivo é capaz de ser intrigante na sua simplicidade. A dependência em instrumentação eletrónica podia levar a que os seus concertos fossem padronizados. No entanto, graças aos loops e à proporção de instrumentos por músico, eles fazem o seu trabalho mais difícil e permitem variedade, brincando dentro das suas limitações.

Aplaudimos. “Thank you, very much” responde J. Willgoose com um sample. Riso percorre a sala enquanto começamos a ouvir o início de “E.V.A.” Há sorrisos de Abraham e Wrigglesworth para o fundador da banda. Ele sorri de volta, algo envergonhado. A música acalma e, sobre um leve solo de piano teclado, ouvimos intercomunicações impercetíveis. Woooo!! Grita um homem umas filas à frente. Abraham responde com um thumbs up, pelo qual recebe mais woooo’s.

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Wrigglesworth, dos Public Service Broadcasting (© Carlos Mendes, Echo Boomer)

“Tudo bem?” pergunta J. Willgoose num português muito inglesado. Ri-se. “We’re gonna play some songs from the album we released last year. Hope you like it.” Um coro começa a cantar, substituindo o sample de um anúncio de recrutamento para as minas do Sul de Gales que costuma dar início a “People Will Always Need Coal”, uma das peças mais icónicas do álbum de 2017, “Every Valley”. Tal como o título, as imagens projetadas reforçam a ironia desta canção. “It’s an industry of men. We need more men”. Rapazes adolescentes com caras cheias de carvão trabalham. Eis a sua realidade que contrasta com as imagens que surgem em seguida. Jovens a divertir-se com amigos. Nadam, conversam, riem. Eis o que eles fazem e o que deviam fazer. Há um certo tom mais pesado nas caras dos músicos, mas um aplauso nosso quando J. Willgoose começa a tocar címbalos não deixa de fazer sorrir Abraham que nos agradece com uma vénia. Os espíritos levantam-se de novo quando entra a voz de Tracyanne Campbell em “Progress”. Nós cantamos com ela. J. Willgoose canta também “I believe in progress” com uma voz distorcida eletronicamente. Um homem (acho que é o mesmo que tinha atirado um “Woooo!!”) grita eufórico.

Woooo!!! Grita uma mulher. “Yes” responde J. Willgoose com uma gravação monocórdica. Rimos. “The next song is about the mining strike of 1984-85”, diz ele. Alguns gritam de entusiasmo. “Yes” responde a gravação. “It’s called ‘They Gave Me a Lamp’ and it’s about feminism and worker’s rights. Hope you like it.” A guitarra dá o tom emocional da música à medida que uma mulher fala da luta dos mineiros e das mulheres. Abraham e J. Willgoose vagueiam pelo palco. As suas melodias extremamente rítmicas reforçam a ideia de marcha por um futuro. Depois, sirenes. Sirenes de um bombardeamento. A 2ª Guerra Mundial entra no concerto e “London Can Take It” entra em força. “The dusk is deepening” diz uma voz. Cada batida da bateria de Wrigglesworth parece o impacto de um explosivo ou o bater de um coração. “Workers by day. Heroes by night” ouço. Vejo voluntários que se ofereciam para ajudar na luta contra os bombardeamentos alemães. Há um sentimento pesado enquanto ouvimos esta sinfonia de guerra. À medida que termina a música, os londrinos voltam à vida, sem medo. Londres aguenta.

This is a song about a plane.” Mal J. WIllgoose diz isto, a sala explode de entusiasmo e começa “Spitfire”, uma favorita do público. Woooo!!! A guitarra assemelha-se ao rugido de um motor quando entra no seu solo. Escrevo freneticamente. A bateria passa depois a dominar o concerto e uma nova energia invade os Public Service Broadcasting que se junta de volta de Wrigglesworth. Há muitos aplausos.

J. Willgoose, Esq., dos Public Service Broadcasting (© Carlos Mendes, Echo Boomer)
J. Willgoose, Esq., dos Public Service Broadcasting (© Carlos Mendes, Echo Boomer)

Os sintetizadores entram delicadamente. Uma voz começa a falar e há um grande foco nela. Parece uma cerimónia, em que a música reforça o som e a imagem. “There’s uh certainly a great deal of anxiety at this moment.” J. Willgoose faz um loop com os teclados e começa a tocar na guitarra. Cada instrumento vai entrando suavemente. Atingem um ponto alto na música mal a gravação diz que perderam o sinal com o Apolo 8. Os instrumentos calam-se. Apenas voz. “They’re travelling over the backside of the Moon now.” Silêncio. “Now we are in our period of longest wait.” Os sintetizadores crescem novamente lembrando-me a banda-sonora de Dunkirk. Quando a comunicação entre Houston e o Apollo 8 regressa, a música explode em euforia total. Um homem na plateia grita. “Obrigado”, diz Abraham sorridente.

Depois, e subtilmente, começo a ouvir os primeiros acordes do maior êxito dos Public Service Broadcasting: “Go!” A bateria e o baixo entram. “This is Apollo Control at 102 hours into the flight of Apollo 11.” Luzes azuis invadem a sala. No refrão, a cada pergunta respondemos. Retro? GO! Fido? GO! Guidance? GO! J. Willgoose rasga na guitarra com um sorriso de orelha a orelha. Atingimos a apoteose do concerto. “We’ve had shutdown.” A música acalma ao vermos Apollo 11 a preparar-se para aterrar. “Houston, Tranquility Base here. The eagle has landed.” Aterrámos. Chegámos à Lua. A energia volta com a aterragem bem-sucedida. Abraham diz-nos para batermos palmas. O Homem dá os seus primeiros passos.

“Obrigado, Lisboa! Muito obrigado!” diz J. Willgoose enquanto nos lança um ‘thumbs up’ tal como Abraham e Wrigglesworth. Eles saem do palco. Aplaudimos durante algum tempo. Queremos mais. E como não? Eventualmente, eles voltam, sorridentes, e assumem posições. “You all seem like very nice people, so… well done”, diz J. Willgoose. No ecrã começo a ver imagens de protestos à medida que a guitarra entra a gritar. Confrontos entre polícia e protestantes são projetados, reforçando o tema da música, “All Out”. Os subtis elementos de Industrial ajudam a sustentar a guitarra com esquema semelhante a Mogwai e uma batida urgente. A sua dissonância fá-la parecer que chora, grita, ruge e exclama.

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Thank you! There’s two more songs”, anuncia J. Willgoose. “This one is about Yuri Gagarin.” Há muitos aplausos e um vermelho soviético enche a sala. Completamente oposta à música anterior, “Gagarin” exulta celebração. Tanto que, como nós, Abraham dança pelo palco. “The world’s first cosmonaut. The first to open the door into the unknown.” Para surpresa nossa entra de rompante pelo palco um astronauta que dança e salta. Há risos, gritos e muitos aplausos. Ele vai-nos estimulando e nós respondemos à sua energia. Abraham aplaude-o e o astronauta sai.

Muito obrigado! This is our last song tonight. Thank you for being such a great crowd”, diz J. Willgoose, que passa a nomear os restantes membros da banda, cada um aplaudido entusiasticamente. J. F. Abraham no baixo e trompete. Wrigglesworth na bateria. Quando este recebe os seus aplausos, ouvimos Abraham tocar “Last Christmas” de George Michael no trompete. Todos rimos.

Public Service Broadcasting (© Carlos Mendes, Echo Boomer)
Public Service Broadcasting (© Carlos Mendes, Echo Boomer)

Por fim, começo a ouvir uma voz que me diz “Once there was a mountain called Peak 15. Nothing was known about it. But in 1852, the surveyors found it was the highest in the world. And they named it Everest.” O baixo entra e começa “Everest”. A montanha surge no ecrã e há gritos e aplausos. Algumas almas cantam (ou gritam) a melodia dos sintetizadores. Wrigglesworth faz um curto improviso na bateria e o público aprova com entusiasmo.

Thank you very, very, very, very, very, very, very, very much, Lisboa!” diz a gravação. Aplaudimos. “Muito obrigado! See you soon. Merry Christmas!” despede-se J. Willgoose enquanto saem todos acenando-nos. Leio um texto final projetado no ecrã. “We hope we’ve added to your life.” Só posso responder que sim. Saio do Lisboa ao Vivo.

The potential for the negative is actually part of what helps to define the positive”, diz J. Willgoose, Esq. na sua TED Talk. Ele aplica esta ideia à música ao vivo. “It needs to kind of contain within it the potential for things to go wrong. Audiences need to be able to come into a show and sort of to be able to say: «that was a good show» or «that was terrible». (…) I make a lot of mistakes. I mean, if you see any of the other guys smiling on stage, it’s because I’ve done something stupid and terrible and obvious. It happens nearly every song. (…) The response that came back to me so often was: «It’s alright. At least you know it’s live».” Os momentos em que os Public Service Broadcasting partilhavam sorrisos ganham uma dimensão peculiar, mas que não é de maneira nenhuma infeliz. Faz sobressair o bom que houve. À semelhança de “All Out” houve alguma dissonância na transição de música para música, com certos saltos temáticos que mereciam algum cuidado extra e o espetáculo visual não foi da mesma qualidade que o concerto no NOS Primavera Sound. Mas isso só fez com que a minha atenção se virasse mais para a música, para os músicos e para aquilo que a combinação de som e imagem me diziam. “Live music has to be able to go wrong. It has to be able to go off the rails. And you have to keep in it the potential for error.” Houve alguns erros. Mas ao menos temos a certeza que a música é ao vivo. Que apesar de todos os samples, a banda abraça o potencial para o pior de modo a transformá-lo e a enfatizar o melhor. O mundo precisa de mais gente que seja capaz de aceitar este aspeto da realidade. O mundo precisa dos Public Service Broadcasting. Ainda bem que eles cá estão.

Os nossos agradecimentos a Carlos Mendes e à Echo Boomer pela sua reportagem fotográfica do evento, da qual damos aqui a conhecer uma amostra.

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  • Francisco Antunes - 75
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