Queer Lisboa ’22 | Ardente·x·s, em análise
Na Competição de Documentários do Queer Lisboa ’22 encontramos “Ardente·x·s”, a primeira longa-metragem realizada pelo suíço Patrick Muroni. A obra reflete acerca da indústria pornográfica a partir de uma perspetiva queer e construtiva, como uma potencial ferramenta de educação sexual e de quebra de barreiras.
“Ardente·x·s”, estreado mundialmente no aclamado festival Visions du Réel, é um documentário esteticamente cuidado, pautado por uma banda sonora imersiva e que aborda a história de um coletivo feminino oriundo de Lausanne, na Suíça. Trata-se de um grupo de jovens mulheres – embora nem todas se identifiquem como tal, uma temática que o filme não aprofunda, como é sua prerrogativa – composto por 5 a 6 membros que abraçaram o desafio de produzir filmes pornográficos dissidentes e éticos.
O ângulo narrativo apresentado é muito curioso, uma vez que que a Suíça é um local onde a produção de porno não abunda e onde os esforços deste coletivo feminino rapidamente começaram a dar nas vistas e a atrair atenção mediática. Inclusive, a jornada das nossas protagonistas passa também pela gestão pública da sua imagem e das ideias que, enquanto grupo, pretendem transmitir.
Quanto ao coletivo que acompanhamos, à medida que procura definir a orientação das suas obras, discutindo tanto orçamentos como processos de rodagem, este intitula-se “OIL Productions”. É uma produtora de cinema pornográfico feito apenas por mulheres mas orientado para qualquer público alvo. Com a inclusividade como luz orientadora, a Oil partilha no seu website alguns dos princípios essenciais do seu manifesto, sobre o quais as intervenientes vão falando amplamente ao longo de todo o filme.
Enquanto grandes objetivos, a ideia destas jovens, que primam pela liberdade sexual cativante, é promover o consentimento, a representação de todo o tipo de corpos e sexualidades, a criação de um espaço seguro durante o próprio processo de produção, bem como a edificação de condições de trabalho éticas. O que passa, nomeadamente, pela remuneração justa e respeito mútuo.
Nora Smith e Mélanie Boss, co-fundadoras da OIL Productions em 2018, acabam por tomar um lugar dianteiro na quantidade de tempo de ecrã dedicado deste documentário. Talvez porque elas próprias tiveram maior interesse e facilidade em expressar a sua intimidade e sentimentos, e também em parte porque foi a co-fundadora Nora Smith que trouxe Patrick para o projeto.
Como primeiro elogio ao jovem cineasta Patrick Muroni reforçamos a forma como o seu aparato cinematográfico, sempre lírico e focado, nunca parece aproximar-se nem distanciar-se demasiado do seu objeto. Muroni, que esteve presente no dia 18 de setembro, tendo apresentado o seu filme no Queer Lisboa e ficado para um Q&A, foi entusiasticamente recebido pela plateia por ter filmado com respeito o trabalho desenvolvido por estas mulheres.
O realizador reforçou, perante a plateia da Sala 3 do Cinema São Jorge, como a sua intenção fora distanciar-se de “visões masculinas”, embora a discussão tenha abordado o quanto uma visão neutra pode eventualmente ser problemática e uma ilusão. Para Patrick Muroni , com este “Ardente·x·s”, seria importante “filmar mulheres que se sexualizam sem as sexualizar”. Esta sua frase resume muito bem o espírito do filme, que em tudo respeita as intenções do manifesto das suas heroínas.
O olhar da câmara nunca se torna excessivamente intrusivo e retrata, com ampla sensibilidade, a experiência sexual destas jovens, a sua comovente fraternidade, o engenho criativo que define o seu trabalho e a tolerância exibida nas suas discussões profissionais. O coletivo procura instaurar uma nova visão sobre o que é a sexualidade e revitalizar a própria imagem da pornografia e as suas representações nos media.
Enquanto retrato, “Ardente·x·s” vence na demonstração de novas formas de obter prazer e pensar prazer. Todavia, a representação exibida neste filme, por muito inspiradora que possa ser (e é), parece mostrar uma realidade algo parcelar dos esforços do coletivo.
O filme pauta-se por um terceiro ato um pouco mais fraco do que os anteriores, no qual o coletivo parece estar a enfraquecer, com os seus membros a anunciarem uma divisão por vários pontos geográficos díspares. As protagonistas mencionam “nunca estarem, de qualquer das formas, todas juntas”, e existe um sentimento de progressão adiada no ar, embora o mesmo não seja explorado em detalhe.
No Q&A, Patrick Muroni referiu que todas as sequências do documentário foram discutidas previamente. Isto não obstante o muito espaço criativo que o realizador concedeu, e não poderia deixar de conceder às protagonistas. Esta liberdade é notória e respeitável, reforçando-se a não exploração do sujeito filmado por parte da câmara e do seu realizador.
Todavia, existe um reverso da medalha. A obra de Muroni caracteriza-se por alguma opacidade. Certos membros do coletivo têm um destaque muito mais notável que outros, nomeadamente Mélanie Boss, uma figura perfeitamente fora da norma, com um pensamento divergente e inquisitivo, que de forma espontânea preenche o ecrã com a sua natureza curiosa e de facto fascinante.
Mas se Mel é uma figura interessante e que se transforma, por acidente, na protagonista da narrativa documental, a verdade é que acabamos por sentir alguma fragilidade no que toca à capacidade de verdadeiramente conhecer os restantes sujeitos fílmicos e as suas intenções. Até que ponto pretenderia ir o coletivo responsável pelas OIL Productions, depois da sua separação física? Quais as motivações individuais e grau de investimento no projeto, membro a membro? Como é que a sua interioridade se projeta na pornografia?
Em “Ardente·x·s” temos um retrato muito valioso de uma nova proposta de sexualidade, mas um que peca pela não plenitude da sua revolucionária representação.
A 26ª edição do Queer Lisboa decorre na capital portuguesa, no Cinema São Jorge e na Cinemateca Portuguesa, até dia 24 de setembro. Posteriormente, rumamos ao norte para o Queer Porto 8 entre os dias 29 de novembro e 4 de dezembro.
Ardente·x·s, em análise
Movie title: Ardente·x·s
Movie description: Em Lausanne, na Suíça, um grupo de jovens mulheres na casa dos vintes, empunha a câmara e embarca numa jornada a fazer filmes pornográficos. Entre os empregos de umas e os estudos de outras, reúnem esforços para produzir filmes éticos e dissidentes. Rapidamente, a imprensa e o público ganham curiosidade com o coletivo. Aos olhos de todes, elas abraçam uma batalha por uma nova visão do desejo e da sexualidade.
Date published: 23 de September de 2022
Country: Suíça
Duration: 96'
Director(s): Patrick Muroni
Genre: Documentário
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Maggie Silva - 78
Conclusão
“Ardente·x·s” é prelúdio de uma revolução sexual onde a pornografia pode ser ética, responsável, dissidente, quiçá material educacional para a própria experiência de crescimento. O realizador Patrick Muroni filma, com respeito e dedicação, o trabalho de um coletivo feminino que ousa criar pornografia para todes e que desafie as noções pré-concebidas, associadas ao feminismo tradicional, que estipulam que a porno é sempre decadente para a mulher e obrigatoriamente focada no prazer masculino.
Pros
- A proposta de uma outra forma de pensar o prazer, a relação com a sexualidade e própria reputação da pornografia;
- O equilíbrio conseguido por Patrick Muroni nesta sua primeira longa-metragem, onde consegue jogar habilmente com duas linguagens muito distintas – a da pornografia e a do documentário.
Cons
- A realização de que, terminado o filme, não ficámos com uma ideia assim tão clara de quais os propósitos do coletivo a médio e a longo prazo;
- Por muito carismática que Mel seja, focarmo-nos tanto num único membro do coletivo acaba por criar um certo desequilíbrio, tendo em conta que esta é, ou seria, em primeira instância, uma representação do grupo.