"Kokomo City" | © Couch Potatoe Pictures

Queer Lisboa ’23 | Kokomo City, a Crítica

No início do ano, “Kokomo City” teve passagem estrondosa nos festivais de Berlin e Sundance. Por lados europeus, arrecadou um prémio da Audiência e, nas Américas, fez o mesmo, ganhando ainda uma honra para a realizadora D. Smith enquanto cineasta inovadora. Este documentário sobre trabalhadoras do sexo Afro-Americanas e trans chega ao Queer Lisboa em busca de mais troféus, sendo um dos títulos mais destacados da Competição de Documentários.

Em jeito íntimo de boudoir, Liyah Mitchell conta uma das suas muitas histórias. Trata-se de outra divagação sobre as interseções de fulgor e perigo no trabalho sexual, relembrando uma noite de sedução que acabou em crise. Ela relata como estava com um cliente, ambos perdidos no calor do momento, quando, de repente, a prostituta vislumbrou uma arma de fogo na posse do homem. Aterrorizada e movida pelo instinto, Liyah abarbatou a pistola para se defender, a mente atormentada por tantas histórias de mulheres como ela, assassinadas em trabalho. O medo vai resvalar para o absurdo não tarda.

Premido o gatilho, a arma não está carregada e, no pânico da fuga, lá acaba ela por resolver as coisas com o sujeito. Como remate para uma anedota desconfortável fica o perfeito ‘punch line’ – pânicos acalmados, vai um SMS a perguntar se o cliente ainda quer o serviço. Assim começa “Kokomo City,” um brilhante trabalho de D. Smith, cineasta com background em vídeos musicais que traz toda a energia desse meio para o reino do documentário. De facto, com acessos de animação 3D e uma fotografia a preto-e-branco de alto contraste, as divas entrevistadas parecem partilhar uma existência com os astros da MTV.

kokomo city critica queer lisboa
© Couch Potatoe Pictures

Essa estética alia-se à montagem judiciosa para construir uma experiência cinematográfica que passa por nós num sopro a alta-velocidade. Embevecidos no testemunho das mulheres entrevistadas e outros demais, com flashes de ilustração aqui e ali, nem nos apercebemos dos 73 minutos a passar. Em termos rítmicos, é um triunfo sem comparação que, a certos modos, ajuda a disfarçar um filme que, na sua essência, é bem mais desafiador do que aparenta. Nem se trata só do gesto humanizante para com identidades marginalizadas, dando a voz às trabalhadoras do sexo tantas vezes silenciadas nos media, na política, na sociedade em geral.

O que mais espanta é a heterogeneidade de perspetivas e relatos pessoais. Muitos filmes semelhantes tentariam criar um discurso único, propondo uma tese coerente e transversal às várias figuras do seu mosaico documental. “Kokomo City,” contudo, espicaça a contradição entre os seus muitos testemunhos. D. Smith vai ao ponto de incluir o relato de um produtor musical perdido em conflitos próprios em relação ao seu desejo por uma mulher trans que encontrou nas redes sociais. Daí provém comédia, mas também a provocação feroz, perfeita para a contraposição de um monólogo político na banheira de uma prostituta de caráter ativista.

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Algumas olham o trabalho como uma vocação autêntica, enquanto outras cantam o fado mais expectado, declarando-se forçadas a esta indústria ilícita pelas circunstâncias da sua vida e identidade de género. Noutra ocasião, poderemos entender quanto algumas se veem enquanto mulheres desejadas por homens heterossexuais, mas outras falam dos clientes como pessoas atraídas pela masculinidade subjacente aos seus corpos trans. Fala-se de deusas do desejo e de fetichização indesejada, de cirurgia e revolta contra isso, de relações estritamente transacionais à flor do romance.

Há aqui uma ideia de honestidade radical em ação, transgredindo os bons costumes e os próprios códigos do cinema político ainda perdido em noções de respeitabilidade. Tanto se conforma o espetáculo aos ditames do entretenimento como vai além da comum sensibilização, transitando entre brutalidades traumatizantes e mais um acesso de riso que vem no lugar da lágrima, um drama e uma tragicomédia até se chegar a algo que surpreende e enche a alma de euforia. Mesmo quando a solidariedade fracassa, há força interior capaz de fazer persistir o espírito num mundo cruel. Não é ideal, mas mais uma realidade destas mulheres extraordinárias.

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© Couch Potatoe Pictures

E que maravilhas elas são, brincalhonas e cheias de história e sabedoria para a partilha, filmadas em repouso ou no ritual cosmético como alguma aparição da Velha Hollywood que nunca foi. Sem papas na língua e muito intuitivo na sua argumentação, “Kokomo City” assim atira o Carmo e a Trindade ao espetador e deixa-o com a missão de encontrar as suas mesmas conclusões. Há tanto material para trabalhar que a natureza sucinta da obra ganha ainda mais poder enquanto motivador de diálogo entre o ecrã e quem o vê. E lá se vão amplificando vozes que precisam de ser ouvidas sem cair no didatismo que derrota tanto projeto semelhante, e até se encontra musicalidade no monólogo confessional. Os sistemas de opressão são iluminados por essas palavras que, pela montagem, parecem quase cantadas e a realizadora D. Smith afirma-se como uma potência no panorama cinematográfico. Que venha o seu próximo filme e uma salva de palmas – bravíssima!




Kokomo City, em análise
kokomo city critica queer lisboa

Movie title: Kokomo City

Date published: 26 de September de 2023

Director(s): D. Smith

Genre: Documentário, 2023, 73 min.

  • Cláudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO:

Apontando a câmara a trabalhadoras do sexo trans e Afro-Americanas, “Kokomo City” continua o projeto cinematográfico de dar voz àqueles que os bons costumes calaram. Depois de ganhar um Grammy, D. Smith revela estar pronta para se tornar uma força de impor respeito no panorama do cinema documental.

O MELHOR: O testemunho franco, a honestidade radical, a velocidade fulminante de todo o projeto.

O PIOR: A tristeza que toma de assalto o espetador quando uma final dedicatória ilumina o ecrã escuro. Koko Da Doll, uma das figuras principais de “Kokomo City” morreu desde o final das filmagens e primeiras projeções do documentário. Fica o gosto amargo que nos lembra que, por muito poderoso que seja, o cinema não é suficiente para mudar o mundo. Da arte, há que se passar à ação.

CA

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