Queer Lisboa ’22 | Joyland, em análise

“Joyland” de Saim Sadiq tem as honras de abrir a competição de longas-metragens do Queer Lisboa 26. A obra foi o primeiro projeto paquistanês a passar no Festival de Cannes, onde integrou a secção Um Certain Regard e lá venceu um galardão especial do júri. Ainda na Croisette, “Joyland” ganhou a Queer Palme para melhor filme sobre temáticas LGBTQ+. Trata-se de um feito histórico que merece aplausos, especialmente quando consideramos que esta é a primeira longa do realizador. É também um dos melhores filmes de 2022.

Sociedades conservadoras tendem a pintar o desejo como uma força destrutiva, chama que tudo consome quando a deixam crescer em jeito descontrolado. Contudo, seria mais apto dizer que a repressão do desejo é que destrói, apertando a gente até que a asfixia é inevitável. Sufoca-se o espírito e a mente, o corpo negado seus prazeres vira-se contra si mesmo e a identidade fragmenta entre uma verdade secreta e a mentira pública. O que são os decorosos bons modos senão uma mão que tapa a boca e abafa o grito? Pelo mesmo gesto, contudo, também abafa a vida. Muitas são as obras-primas cinematográficas que consideram tais temas – veja-se a filmografia de Ang Lee ou “A Idade da Inocência” de Scorsese. A esses títulos se junta “Joyland.”

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© All in Caps Productions

Feito com base na expansão de uma primeira curta-metragem, o filme de Saim Sadiq começa no ambiente doméstico onde muito do seu drama irá germinar. Esta cena de abertura, contudo, também nos prepara para a intersecção de humanismo textual e lirismos audiovisuais que tanto caracteriza toda a obra. Numa casa de classe-média em Lahore, no Paquistão, um homem brinca com as sobrinhas, cobrindo-se com um lençol para jogar uma versão fantasmagórica das escondidas. Ele é Haider, o filho mais novo do clã e sua maior vergonha – pelo menos, assim é para Saleem, patriarca enviuvado que todos julga da sua cadeira-de-rodas feita trono.

Sem emprego, sem filhos seus e contente com os afazeres domésticos, Haider passa os dias com a cunhada enquanto os esposos dos dois trabalham fora de casa. Assim ele se apresenta como uma figura passiva e emasculada consoante os preceitos machistas que seu pai tanto valoriza e, em certa medida, personifica. Só que, apesar das muitas lamentações paternas, pressões sociais e coscuvilhices na vizinhança, há uma certa harmonia na ordem presente do domicílio. Pelo menos, Mumtaz, esposa de Haider, assume-se feliz com a situação, tendo oportunidade de ganhar independência enquanto esteticista sem trair os ditames matrimoniais da cultura.

O casal vive em paz, assemelhando-se mais a um par de amigos unidos pelo matrimónio arranjado do que fogosos amantes cheios de paixão. Contudo, seria um equívoco dizer que vivem felizes. Há uma pátina de melancolia sobre todos os que vivem naquela casa, reprimidos por códigos de honra e exigências desumanas. Saleem escolhe a humilhação, a solidão, ao invés de se juntar à vizinha viúva de que tanto gosta. Nucchi, cunhada de Haider, deixou uma carreira enquanto decoradora de interiores para ser fada do lar e sente-se recriminada por só ter filhas e nenhum rapaz. Essas mesmas pressões afetam o marido, enquanto Mumtaz e Haider se inflamam de desejos que nenhum dos dois sabe colmatar ou satisfazer.

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São todos prisioneiros de si mesmos, um paradigma que se evidencia quando o status quo se altera. Depois de conversas sobre comprar um ar-condicionado lá para casa, Haider tenta arranjar emprego e inadvertidamente condena Mumtaz à domesticidade que ela tanto odeia, trocando de papéis com a mulher no ecossistema familiar. Só que o trabalho não é algo que agradasse nem ao pai ou aos vizinhos, por isso Haider esconde a realidade dos seus dias. Ele é um back-up dancer com dois pés esquerdos para Biba, performer transgénera num cabaret local. Se todas as outras pessoas com quem Haider convive se tornam cúmplices da sua mesma opressão, Biba é uma força da natureza que vive como quer e na sua verdade plena, custe o que custar.

A atração entre os dois é óbvia, desde o primeiro momento em que se veem, mas demora até que a paixão adúltera seja consumada. De facto, “Joyland” muito se move a ritmo ponderado, dando tempo à observação das relações em metamorfose, iluminando facetas das personagens que enriquecem o texto sem necessariamente avançarem o enredo. Face a esta premissa narrativa, é fácil supor que toda a história se desenrola através da perspetiva santificada do protagonista masculino cis, mas esse não é o caso. Ao invés, “Joyland” expande os seus horizontes e dá autonomia narrativa às várias mulheres na órbita de Haider, fazendo de Biba e Mumtaz protagonistas em direito próprio também.

O resultado de tais escolhas é uma tapeçaria de vidas entrelaçadas, estudos de personagem que juntos fazem a reflexão sobre toda uma sociedade onde a tradição colide com a modernidade, onde os papéis tradicionais do género e da sexualidade são os grandes inimigos da gente. Não há vilões em “Joyland,” nem heróis incólumes. Haider, por exemplo, é uma figura fortemente egoísta, mesmo dentro de uma narrativa que defende um certo egoísmo na procura da existência autêntica. Essa faceta acaba por desgraçar a sua relação com Biba e com Mumtaz também, revelando uma faceta de masculinidade conservadora que este homem emasculado personifica na perfeição – uma confiança cega no privilégio assumido, no direito garantido.

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Mesmo assim, ele não é vilão ou anti-herói ou qualquer outro arquétipo. Haider é uma pessoa complicada cheia de contraditórias dimensionalidades e grande confusão interna. As outras personagens são iguais, cada uma delas a sua própria galáxia de mistérios humanos. Nesse sentido, o argumento escrito por Sadiq e Maggie Briggs é um modesto milagre de empatia cinematográfica, cheio de generosidade e também marcado por um estranho sentimento de pequenez face à vastidão do mundo. Tal como a imagem final nos lembra, somos todos pequenos e insignificantes quando se considera quão imenso tudo é em nosso redor, formigas entre muitas num formigueiro global.

Aceitar essa pequenez é em si um gesto libertador – se temos tão pouca importância, não devíamos viver como queremos, como o nosso espírito comanda? No panorama de “Joyland,” Biba é a única pessoa a seguir tais ideais, enquanto Mumtaz e Haider são encurralados entre a espada e a parede da sua vontade e as grandes expetativas dos demais. Essas dinâmicas complexas são expressas em forma belíssima pelo elenco, com especiais aplausos para Rasti Farooq no papel de Mumtaz. Uma cena tardia, em que o relógio do universo gira no sentido inverso e o princípio se torna o fim, é especialmente excelente para exemplificar o génio da atriz, o delicado virtuosismo da sua interpretação.

Todos os atores são exemplares, verdade seja dita, e ainda melhor é a equipa criativa atrás das câmaras. Apesar de estar ainda em início de carreira, Sadiq afirma-se um artista com uma visão singular, especialmente no que se refere ao uso da composição enquanto barómetro emocional da cena ou materialização das suas dinâmicas interpessoais. Só a variedade de maneiras com que o realizador filma as conversas noturnas de Haider e Mumtaz é impressionante, sendo que, a certa altura, as figuras aparecem fragmentadas pelo enquadramento numa tradução imagética da relação em ruína. Noutras ocasiões, o espaço vazio serve para salientar as pressões invisíveis sobre as personagens, transformando cenas banais através do formalismo alienante.

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© All in Caps Productions

Há tanto para amar em “Joyland” e seu genial estilo, sempre em função do retrato humanista e interioridades exteriorizadas. Pensemos nos espetáculos de dança de Biba, nas luzes de telemóvel feitas pirilampos urbanos ou um interlúdio no parque de diversões com flashes de peitos peludos fazendo romper o desejo feminino na linguagem plástica da obra. Pensemos nos vermelhos à la Wong Kar Wai quando a paixão explode ou nas constelações esverdeadas que fazem de um quarto pobre uma supernova de sensualidade. Pensemos no epíteto da tragédia expressa pelo som de um líquido engolido, enquanto jogos de escala e cenografia trazem muito humor a um filme que não tem medo de fazer rir por entre as lágrimas. Não há maneira de negar – “Joyland” é um dos grandes filmes do ano!

Joyland, em análise

Movie title: Joyland

Date published: 18 de September de 2022

Director(s): Saim Sadiq

Actor(s): Ali Junejo, Alina Kahn, Rasti Farooq, Sarwat Gilani, Mudassar Kahn, Salmaan Peerzada, Sania Saeed , Sohail Sameer

Genre: Drama, 2022, 126 min

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO:

Desenrolando uma tapeçaria de desejos complicados, vontade visceral entrelaçada com as pressões de uma sociedade patriarcal, “Joyland” é marco histórico no paradigma do cinema paquistanês. Saim Sadiq aqui assinou uma estreia magistral, tão ambiciosa como íntima, cheia de surpresas e belíssimas soluções audiovisuais. Trata-se de um melodrama marcado pela emoção épica apesar da dimensão menor, cheio de personagens complexas que não podem ser reduzidas a binários morais, de género, sexualidade ou identidade.

O MELHOR: A sublime fotografia de Joe Saade.

O PIOR: A falta de conclusividade na história de Biba, mesmo que ela seja a única pessoa em todo o filme para quem um final feliz parece possível.

CA

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