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Rabiye Kurnaz vs George W. Bush, a Crítica

O drama “Rabiye Kurnaz vs George W. Bush”, realizado por Andreas Dresen, é um dos destaques do catálogo da Leopardo Filmes em 2023.

Há neste filme, RABIYE KURNAZ VS. GEORGE W. BUSH, 2022, realizado pelo alemão Andreas Dresen, um momento pungente, quase patético, simultaneamente dramático e de uma sinceridade demolidora, que decorre em Washington D. C. nas escadarias do Memorial ao Presidente Abraham Lincoln. Rabiye Kurnaz (papel difícil, defendido com alguma eficácia pela actriz Meltem Kaptan) ouve da boca do advogado que aceitou a defesa do seu filho encarcerado na prisão de Guantánamo, Bernhard Docke (personagem conhecida pelo seu liberalismo filosófico e pela luta em defesa de causas humanitárias, interpretada por Alexander Scheer), palavras elogiosas sobre o homem que ocupou pela décima sexta vez a presidência dos Estados Unidos. Mas em vez de demonstrar admiração e respeito por um dos grandes nomes da política americana, para alguns o maior entre os grandes, Rabiye Kurnaz boceja, nem sequer olha para a estátua do estadista e acaba a dizer que o sono e o cansaço que sente deve ser aquela coisa a que chamam jet lag.

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Na verdade, desde cedo percebemos que Rabiye Kurnaz, mãe de um filho de dezanove anos radicalizado nos pressupostos do islamismo extremista na mesquita de Bremen (cidade alemã para onde os pais foram viver depois de emigrar da Turquia natal) e ainda de dois outros rapazes mais novos, aparentemente integrados na sociedade alemã, não se pode considerar uma mulher com consciência política e social, e muito menos religiosa de pendor radical. Ela funciona por impulso e intuição, e a superficialidade com que encara as questões mais sérias que ultrapassam o seu medíocre quotidiano pequeno-burguês não lhe permitem compreender em profundidade as razões por que o seu mais velho foi detido, na prática em circunstâncias nunca esclarecidas com rigor. Sabemos, isso sim, que a situação em que o jovem Murat Kurnaz (Abdullah Emre Öztürk) se viu envolvido correspondeu a uma sucessão de arbitrariedades muito próximas ou similares que deram origem a um conjunto de outras prisões perfeitamente ilegais após os acontecimentos que ficaram marcados pelos atentados do 11 de Setembro de 2001.

Rabiye Kurnaz vs George W. Bush
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Mas aquilo que numa primeira abordagem parecia ser a relação óbvia e a razão de ser desta narrativa num contexto dialéctico com a verdade dos factos (estamos perante uma ficção baseada numa história real), sobretudo o habeas corpus que colocou Rabiye Kurnaz frente a frente num confronto judicial com o presidente George W. Bush, passa para segundo plano quando a realização e a argumentista Leila Stieler preferem carregar a nota sobre a personalidade singular daquela que alguns apelidam de mãe coragem, mas que no dia-a-dia não é mais do que uma mulher revoltada com a sua condição de dona de casa, partilhando um casamento em que um marido passivo não age, só reage, conformado que está com o conforto democrático da Mercedes onde ganha a vida e onde o patronato lhe permite adquirir carros desportivos da dita marca com substanciais descontos.




Ele, o marido, representa o perfeito alienado do capitalismo, e a sua relação com a mulher pauta-se pelo modo como vai segurando as pontas de uma relação que nem sempre parece plenamente sustentável. Ela, pelo contrário, não obstante a sua alienação política, sabe bem o gradual valor das suas acções em defesa do que se perfila como a justiça possível num estado de direito. Vai aprender no quotidiano de combate aos diversos obstáculos que se erguem ao seu percurso existencial, mesmo os promovidos pelas instituições que se reivindicam como democráticas, que há sempre duas faces para uma mesma moeda, e a que importa para a sua causa, uma vez lançada ao ar, nem sempre cai para o lado certo ou desejado.

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Rabiye Kurnaz vs George W. Bush
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Infelizmente, o filme podia ir muito mais longe na análise dos limites da justiça em democracia quando o sistema que se considera o garante das liberdades investe, para defender as fronteiras e a sua política geo-estratégica, nos mesmos métodos usados pelos sistemas autoritários que hipocritamente critica e condena. Há informação q. b. no filme para se fazer uma obra em prol de uma visão séria e mais ampla sobre as contradições do combate ao extremismo, venha ele de onde vier. Todavia, a produção preferiu o retrato de uma figura singular, antítese da mãe turca, que vemos quase sempre na plenitude da sua condição feminina evitando submeter-se ao poder redutor dos homens.

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Falta-lhe a pontinha de ficção capaz de dar a este filme um salto quantitativo e qualitativo rumo a uma plena consciência social e de classe, sobretudo aquela frágil mas significativa linha que separa as razões da mãe das razões do filho.

Rabiye Kurnaz vs George W. Bush, em análise
Rabiye Kurnaz vs George W. Bush

Movie title: Rabiye Kurnaz vs George W. Bush

Director(s): Andreas Dresen

Actor(s): Meltem Kaptan, Alexander Scheer, Charly Hübner, Nazmi Kirik

Genre: Drama, 2023, 119min

  • João Garção Borges - 60
60

Conclusão:

PRÓS: Em 2022, recebeu no Festival de Berlim o Prémio para o Melhor Argumento e o Prémio para a Melhor Actriz, justamente atribuído a Meltem Kaptan.

CONTRA: Não será bem um voto contra, mas antes um lamento por o filme não ir mais longe na denúncia ou, pelo menos, na exposição das arbitrariedades não só do que se passou na prisão de Guantánamo (apesar de ser evidente a gravidade da detenção pelas autoridades americanas) mas também nos bastidores dos meandros democráticos da República Federal Alemã, nomeadamente quando a matéria principal da acção passa pela relação nem sempre linear desse país com a comunidade de origem turca.

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