©Leopardo Filmes

Trenque Lauquen, em análise

A Leopardo Filmes dá a conhecer “Trenque Lauquen”, a mais recente obra da cineasta Laura Citarella!

Primeiro será necessário esclarecer que TRENQUE LAUQUEN mais parece uma fórmula secreta e mágica, uma mezinha para curar o mau-olhado ou para fazer crescer o cabelo a quem já não possui o vigor capilar de outras eras. Nada disso. TRENQUE LAUQUEN, 2022, o filme realizado pela argentina Laura Citarella, autora do argumento que escreveu em parceria com a compatriota Laura Paredes (que assume igualmente o papel de protagonista), refere-se a um local específico da Província de Buenos Aires, a cidade de Trenque Lauquen (a 444 Km da capital), a maior concentração urbana do distrito homónimo com uma população de mais ou menos quarenta e seis mil habitantes.

MISTÉRIOS E LABIRINTOS DO TEMPO QUE PASSA ou ME VOY, ME VOY…!

Trenque Lauquen
©Leopardo Filmes

Na língua nativa, o Mapuche, Trenque Lauquen quer dizer “Lagoa Redonda”, e estas informações geográficas não são meras curiosidades de almanaque, já que elas nos ajudam a compreender as circunvoluções, o ritmo e as atmosferas peculiares em que a acção de TRENQUE LAUQUEN se desenrola e a perceber as idiossincrasias do corpo socioeconómico em que se insere, o da pampa gaúcha. Há uns anos andei por aquelas paragens quando fui rodar um filme na região das Misiones e nas ruínas das antigas povoações fundadas por jesuítas que procuraram desde o Século XVI evangelizar a população nativa constituída maioritariamente por guaranis. Devo dizer que, entre os diferentes sítios arqueológicos e outros vestígios da História seiscentista da colonização do Novo Mundo, existem hoje estradas sem fim ao longo das quais se observam campos a perder de vista onde o gado pasta livremente, ou pelo menos assim parece. Esta ilusória e fascinante monotonia faz parte das paisagens do sul da América do Sul.




Muitas são as similitudes entre as planícies da Argentina, do Uruguai, do Paraguai ou do Brasil. E a cultura dos gaúchos, que se pode encontrar igualmente no Sul do Chile e da Bolívia, possui uma forte componente rural que faz do homem e da mulher um prolongamento “natural” da Natureza circundante. Tal como o campino ribatejano não vive sem o seu cavalo e os touros, os gaúchos não são ninguém se os afastarem do gado, o boi que alguns e algumas sabem desmanchar com uma mão atrás das costas. E a carne, maravilhosa e suculenta carne grelhada, não pode ser dispensada da dieta gaúcha. Conheci um que não comia peixe. Insisti com ele, e por deferência lá provou. Passado um bocado estava a vomitar. Eu nem queria acreditar. Mas ele avisara que raras vezes comia outra coisa que não fosse a omnipresente carne.

Lê Também:   Oppenheimer, em análise

Dito isto, TRENQUE LAUQUEN, que na sua duração máxima atinge os 260 minutos, foi dividido em duas partes para exploração comercial em sala. De início, pensei que fosse apenas uma divisão que não apresentava outra vantagem que não a de ser mais fácil e por razões óbvias mais rentável de distribuir e exibir. Mas não. De facto, podemos dizer que a estrutura narrativa possui de alguma forma duas partes com características próprias, embora complementares, e que a visão da primeira contrasta ligeiramente com a segunda nas suas linhas gerais. Não obstante, a segunda acentua diferenças ao nível dos mecanismos ficcionais que geram um clima de mistério e suspense que se vai adensando depois de ouvirmos uma confissão gravada por Laura que coloca alguma ordem na cronologia de acontecimentos anteriormente descritos ou mencionados de forma breve e incompleta por outros.




De qualquer modo, uma das partes deve ser vista na perspectiva de se ver a outra sem falta, porque sem este exercício cinéfilo o filme pode fazer sentido mas o público nunca conseguirá agarrar por completo o mapa que permite seguir o rumo muito peculiar de cada personagem, cada qual com o seu grau de protagonismo, apesar de Laura (a já referida Laura Paredes) ser o eixo em redor do qual se movimentam as rodas de um destino muito particular, e a partir de certa altura quase irreal. Este que vos escreve o presente artigo, armado do seu melhor espírito cinéfilo e enquanto espectador de barba rija, decidiu ver as duas partes de seguida. E garanto que não me arrependi. Se o puderem fazer, não hesitem.

Lê Também:   Polícia, em análise
Trenque Lauquen
©Leopardo Filmes

Na verdade, deste modo sentimos como nossa ou quase nossa a odisseia física e espiritual de uma mulher alegadamente desaparecida e procurada pelo noivo, Rafa (Rafael Spregelburd), e pelo colega e amante, Ezequiel (Ezequiel Pierri). Qualquer deles procura a sua amada por razões diferentes, motivações que guardam em silêncio, sobretudo aquele que acabou por ceder a uma relação adúltera. Laura prepara a sua licenciatura em Botânica e assina uma rubrica intitulada “Mulheres Que Fizeram História” numa rádio local. Nas suas deambulações em busca de matéria para as suas crónicas radiofónicas, acaba por encontrar na biblioteca de Trenque Lauquen uma série de livros, e escondidas em vários deles cartas de amor dissimuladas entre páginas intencionalmente coladas, assim como noutros sítios peculiares. Reunir as ditas irá demonstrar o gosto de Laura pelo sentido detectivesco da investigação. Depois de acumular bom número de provas de um inflamado, conturbado e passado romance epistolar entre um emigrante de origem italiana e uma professora auxiliar de que ninguém sabia o nome, Laura (que sabe o nome da dita) procura reconstituir o labirinto existencial da misteriosa personagem, ou melhor, da relação erotizada de um casal que nada tinha de extraordinário mas que, por força da escrita ficcional e da perfeita manipulação da linguagem cinematográfica, adquire um estatuto e um poder de sedução que na vida real e nas rotinas diárias muito provavelmente nunca seria alcançado.




Deste modo, por um lado, Laura e Ezequiel percorrem os labirintos exteriores de uma gradual relação amorosa que, por outro lado, os faz entrar no labirinto interior de uma relação antiga. Neste processo acabam por funcionar como almas gémeas até ao momento em que a ruptura se produz, seca e de certo modo inesperada. Laura irá depois seguir sozinha pelos caminhos ainda mais misteriosos de um incidente de ressonâncias sociais e políticas. Pelo meio encontra duas mulheres que guardam um ser, ou seja lá o que for, cuja identidade nunca será revelada, e nisto passa-se do concreto da estrada, do campo e da busca das flores amarelas e únicas, solicitadas um dia a Laura por uma mulher que surge do nada como um fantasma, para o abstracto onde a figuração realista se dispensa a favor do suspense puro e duro. Em determinados momentos podemos mesmo falar de medo. Receamos nós, como Laura, que a revelação do mistério, ou a acumulação de mistérios, seja fatal. Receamos que exceda as expectactivas e gere um choque que nos empurre para a loucura, para a perdição, para uma vida sem rumo.

Lê Também:   IndieLisboa ’23 | Crónicas Curtas #5

No final, sabemos que a realizadora e as argumentistas sabiam bem que era necessário investir no TEMPO DA FICÇÃO, no ESPAÇO EM QUE ELA SE INSERE, nos RITMOS DO TEMPO QUE PASSA e nas PERSONAGENS que lhe dão corpo. Trata-se de fazer valer o cinema como reflexo da nossa percepção sobre os fluxos e refluxos da realidade que só existe no nosso pensamento e na projecção cinematográfica, dure ela o que durar. Magnífico…!

Trenque Lauquen, em análise
Trenque Lauquen

Movie title: Trenque Lauquen

Director(s): Laura Citarella

Actor(s): Laura Paredes, Ezequiel Pierri, Rafael Spregelburd, Cecilia Rainero

Genre: Drama, 2022, 260min

  • João Garção Borges - 90
  • José Vieira Mendes - 90
90

Conclusão:

PRÓS: Exercício de cinema puro, com recurso a cenas que podiam ser classificadas como flagrantes da vida real. Pessoas normais em situações extraordinárias. Filme mutante. Memória revista e subvertida de um clássico, L’AVVENTURA (A AVENTURA), 1960, de Michelangelo Antonioni. Será por isso que o romance epistolar que a protagonista descobre oculto nos livros se refere aos anos sessenta? Serão aquelas mulheres e aqueles homens, amantes do passado e do presente, elos perdidos e recuperados para uma nova contemporaneidade, personagens enredadas num outro exercício cinematográfico? Se não são, podiam muito bem ser, e para mim isso basta…!

Muito boa articulação da banda sonora musical com a estrutura fílmica delineada pela montagem.

Excelente Direcção de Fotografia.

No Festival de Mar Del Plata de 2022 recebeu o Prémio para o Melhor Filme da Competição Latino-Americana.

No ano seguinte, no INDIELISBOA, recebeu o Prémio Silvestre para a Melhor Longa-Metragem.

CONTRA: Nada.

Sending
User Review
0 (0 votes)

Leave a Reply