Óscares 2019 | Quem é Ruth E. Carter?

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Ruth E. Carter está este ano nomeada pela terceira vez para o Óscar de Melhores Figurinos graças ao seu deslumbrante trabalho em “Black Panther”.

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Este ano, podemos ver, pela primeira vez, uma mulher afro-americana a ganhar o Óscar de Melhores Figurinos. Ela é Ruth E. Carter, nomeada atualmente por “Black Panther”. Outrora, Carter já havia sido nomeada para os Óscares em 1993, por “Malcolm x” de Spike Lee, e em 1998, por “Amistad” de Steven Spielberg.

Na sua filmografia, Carter já vestiu Martin Luther King Jr., Malcolm X, Thurgood Marshall, Tina Turner, metade dos presidentes americanos do século XX e muitas outras figuras históricas. Em suma, esta figurinista é uma mestra da cinebiografia, uma artista que reproduz o passado em nome de ativismo político em forma de entretenimento e que vê no seu trabalho uma oportunidade de educar o público e de o familiarizar com a História e arte afro-americana. Talvez mais nenhum cineasta, homem ou mulher, caucasiano ou preto, realizador ou ator, tem sido tão influente para o modo como o mundo perceciona e imagina a História Afro-Americana.

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Ruth E. Carter durante as filmagens de BLACK PANTHER, cujos figurinos afrofuturistas lhe devem ir valer uma nomeação para o Óscar.

Ao longo da sua carreira, esta preocupação com a História da sua etnia, da sua comunidade, também se estende ao tipo de cineastas com quem Carter colabora. Ao contar com obras de Spike Lee, John Singleton, Robert Townsend, Gina Prince-Bythewood, Ava DuVernay, Lee Daniels e Ryan Coogler, a filmografia desta figurinista é uma coleção dos autores que definem o cinema afro-americano para um público mainstream.

Tal colaboração com estes autores aliada às suas preocupações políticas fez de Carter uma artista em constante busca pelo realismo. Enquanto figurinista, ela é conhecida pela sua obsessão com pesquisa histórica e coleção de referências culturais. Mesmo quando veste uma civilização imaginária para a Marvel, Carter vai sempre buscar inspiração à História e sua organização e uso de referências é preciso, impecável e leva a que todos os detalhes dos seus elaborados figurinos tenham razão para existir e toda uma justificação simbólica por detrás. Para Carter, a pesquisa ajuda-a a entender as personagens e seu mundo a um nível profundo, quase íntimo.

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Carter tanto ama o seu trabalho que, ao contrário de muitos figurinistas de Hollywood, ela tenta comprar e colecionar suas criações. Por isso mesmo, a figurinista tem vindo a construir um enorme arquivo ao longo dos anos e, nos últimos dois anos, esse mesmo arquivo tem sido a base para a construção de várias exposições a homenagear sua áurea carreira e importância para o cinema de expressão afro-americana.

Muitas dessas homenagens têm-se focado em “Black Panther”, a mais gloriosa joia na sua filmografia. Com este filme, Carter tornou-se na criadora de iconografia e não só na curadora de imagética histórica. Seus figurinos vão buscar inspiração a estilos de ficção-científica e filmes de super-heróis fundidos com uma cultura visual africana. O resultado é um guarda-roupa afrofuturista que é completamente diferente de qualquer outro alguma vez visto no contexto do cinema de Hollywood. Por tudo isso e muito mais, Ruth E. Carter é bem capaz de ganhar o Óscar.
Enquanto esperamos pela cerimónia, vem explorar a carreira desta artista do grande ecrã. Segue as setas para ver imagens dos seus filmes mais célebres, assim como textos que delineiam sua evolução artística e profissional.




TUDO COMEÇOU COM OS PALCOS E COM SPIKE LEE

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Se não fosse Spike Lee, Ruth E. Carter talvez nunca teria trabalhado em cinema.

Ruth E. Carter é a filha mais nova de uma mãe solteira com sete outros filhos. Foi a influência materna que levou Carter a familiarizar-se com a arte e o ofício de criar roupas. A matriarca não tinha dinheiro para vestir os filhos em indumentárias novas, por isso adaptava roupas velhas e criava peças novas com os poucos meios que tinha. Nas palavras da própria Ruth E. Carter, se ela queria um vestido para ir a uma festa quando era nova, tinha de o fazer com as próprias mãos e a ajuda da mãe. Foi também através da influência materna que Carter cultivou interesses culturais e viu esse mundo como uma opção profissional viável.

Assim sendo, quando chegou altura de seguir estudos superiores, a futura figurinista licenciou-se em Artes Teatrais na Universidade de Hampton. Inicialmente, Carter esperava tornar-se atriz, mas tratar dos figurinos dos seus projetos universitários abriu-lhe os olhos às potenciais maravilhas desse outro elemento das artes performativas. De facto, assim que terminou o curso, Ruth E. Carter foi trabalhou como estagiária de guarda-roupas de vários teatros e até da Ópera de Santa Fé. Foi o Teatro que a levou para Los Angeles, onde ela trabalhou no L.A. Theatre Center e onde viria a cruzar caminho com Spike Lee.

Nessa altura, Lee era um cineasta muito verde, tendo ainda só feito uma longa-metragem feita em contexto académico. Ele e Carter conheceram-se por amigos mútuos e foram as histórias e recomendações profissionais do realizador que começaram a interessar a figurinista no mundo do cinema. Seguindo os conselhos do cineasta, Carter participou nas filmagens de um projeto universitário para ganhar experiência e depois conseguiu que Lee a contratasse para ser a figurinista da sua terceira longa-metragem, a comédia “Aulas Turbulentas”. O resto, como se sabe, é história…




“NÃO DÊS BRONCA”: UM FENÓMENO CULTURAL

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Um filme que mudou a História do Cinema americano.

Sob a mentoria e influência de Spike Lee, Ruth E. Carter sempre viu o cinema como meio de expressão artística e política. O mero ato de representar uma certa parte da população tradicionalmente ignorada pela cultura mainstream, o mero apontar de uma câmara, pode ser um gesto de ativismo que permite a toda uma comunidade ver-se refletida no grande ecrã. Trata-se de ver uma experiência pessoal, social, cultural ser valorizada e validada pelo grande ecrã. Tal dinâmica entre política e arte nunca foi mais sentida que em “Não Dês Bronca”, a história de um dia em Brooklyn quando tensões raciais explodem em violência.

Desde a abertura memorável do filme com Rosie Perez vestida de vermelho com luvas de boxe até à melancolia enraivecida do final, este filme afirma-se como uma peça de incalculável iconografia cultural. Os figurinos de Carter, com sua profusão de ténis vistosos, t-shirts com designs gráficos, camisolas desportivas, joalharia com mensagens verbais e acessórios com padrões africanos, capturaram e cristalizaram todo um momento cultural. Esse é o estilo de uma geração cuja moda representa um diálogo entre aspirações económicas, respeito pelo passado e a vontade de ter um discurso politicamente ativo.

Para muitos cineastas de hoje, “Não Dês Bronca” representa um ponto de viragem, uma abertura de portas a um novo mundo de oportunidades e possibilidades cinematográficas. Matthew Libatique, um dos diretores de fotografia nomeados este ano, diz mesmo que foi esse filme que lhe mostrou que talvez houvesse lugar para si na indústria de Hollywood. Para Carter, o filme também foi impactante, mas de modo menos radical, sendo que seria com o advento da primeira nomeação para o Óscar que a figurinista haveria de realmente afirmar o seu lugar no panorama cinematográfico americano.




“MALCOLM X”: A PRIMEIRA NOMEAÇÃO

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A primeira nomeação!

Para Ruth E. Carter, trabalhar em cinema de época não se resume a pesquisar e reproduzir as modas históricas tal como elas aparecem em ilustrações, pinturas ou revistas. Há que se entender como é que cada pessoa usaria suas roupas, suas idiossincrasias, ou então os atores parecem modelos ao invés de personagens. Um dos filmes em que Carter primeiro apurou esta sua metodologia e filosofia de trabalho foi precisamente aquela obra que lhe haveria de garantir a primeira nomeação para o Óscar. Referimo-nos, pois claro, a “Malcolm X”.

Com esta nomeação, Carter tornou-se na primeira pessoa afro-americana a alcançar tal honra e, nas suas palavras, muito isso ela deve a Spike Lee. O realizador abordou esta cinebiografia de um dos maiores e mais controversos figurões da luta pelos direitos civis como um grande épico como um épico. Sua linguagem visual segue esse intuito, chegando até a filmar um ataque do KKK como uma peça de mitologia primordial, com a lua a brilhar gigante no céu e a violência a ganhar a qualidade de uma história antiga, ancestral, mais velha que o tempo imemorial. Carter alinhou o seu trabalho a tais valores estéticos e representa a história de Malcolm X com tanta pujança operática como verismo factual. Assim, de zoot suits coloridos a severos fatos pretos, a vida de Malcolm X é tanto um jogo de retórica sociopolítica como uma odisseia de estilo afro-americano ao longo do século XX.

Carter perdeu o Óscar para Eiko Ishioka por “Drácula”, mas só a nomeação já marcou muito esta artista. A nível pessoal, a figurinista viu a nomeação por este particular projeto como suprassuma validação do seu lugar na indústria cinematográfica. A figurinista que até então quase só trabalhava com um ou dois autores em cinema independente, de repente descobriu novas oportunidades e caminhos profissionais mais perto do mainstream, com orçamentos maiores e a chance de colaborar com novos cineastas.




VESTIR A BIOGRAFIA DE TINA TURNER

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Os figurinos de Angela Bassett são, por si só, um espetáculo que merece aplausos.

Um ano depois de “Malcolm X”, Ruth E. Carter voltava aos cinemas com mais uma cinebiografia épica de uma famosa personalidade afro-americana. Desta vez, contudo, longe de se tratar de um filme sobre controversas figuras políticas cheio de portentosos discursos vestidos de preto e gravatas apertadas, temos um espetacular retrato de uma estrela pop cheio de concertos cobertos de missangas e lantejoulas. Estamos a falar de “What’s Love Got to do With It”, a cinebiografia de Tina Turner que valeu a Angela Bassett a sua primeira, até agora única, nomeação para o Óscar de Melhor Atriz.

Um dos grandes desafios da figurinista em relação a este projeto foi transformar Basett em Turner, desde a adolescência até à idade adulta e ao estrelato. Um dos truques de Ruth E. Carter foi fazer todos os vestidos de palco com saias exageradamente curtas, de forma a dar a ilusão de pernas longas. A atriz é muito mais baixa que a cantora, cuja estatura alta e pernas longas são famosas, pelo que a figurinista tentou sugerir o corpo da figura histórica através destes jogos de proporções.

Além de tais estilizações para melhor vender a semelhança entre o elenco e suas personagens verídicas, Carter interpretou este projeto pelo prisma da mimese absoluta do facto histórico. Assim, a figurinista chegou a estudar a pormenor as gravações disponíveis de Tina Turner em palco. A certa altura, ela andava a contar os números exatos de camadas das saias e as fileiras de lantejoulas de cada um dos fatos eu Turner usou em prestações gravadas para a televisão ou documentadas em cruas filmagens amadoras. O resultado é um guarda-roupa esplendoroso, que, infelizmente, não valeu nenhuma nomeação para Carter.




AS VISTOSAS COMÉDIAS DE ROBERT TOWNSEND

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Halle Berry nunca foi tão hilariante e talvez nunca tenha usado roupas tão tresloucadas.

Segundo Ruth E. Carter, nunca houve uma fase da sua carreira em que tivesse de ativamente procurar trabalho em cinema. Nos anos 90, com uma avalanche de novos cineastas afro-americanos a ganharem projeção internacional, muito em parte graças ao impacto cultural de Spike Lee, Carter teve sempre quem procurasse seus talentos para vestir filmes sobre a comunidade e história afro-americana. Um desses cineastas foi Robert Townsend, um dos mestres da comédia afro-americana na última década do século XX.

A primeira das duas comédias que Carter vestiu para Townsend nos anos 90 foi mesmo protagonizada pelo realizador. Em “O Homem Meteoro”, um humilde professor de escola secundária torna-se num super-herói decidido a proteger a sua vizinhança. Trata-se de um cocktail de paródia e ação, que tanto homenageia a iconografia dos heróis dos quadradinhos, como goza com eles. Tal conflagração de tons e intenções artísticas encontra-se sintetizado no fato do protagonista, uma criação que tanto diverte como espanta, tanto sugere um herói como um palhaço dependendo do contexto, da iluminação e do modo como Townsend posa.

Apesar disso, nada se compara à paródia estilística que é “B.A.P.S.” também conhecido como “Duas Sopeiras em Beverly Hills”. O filme, que contem a melhor prestação cómica de Halle Berry, conta a história de duas empregadas de mesa que viajam até à Califórnia em busca de fama. Pelo caminho de se tornarem Princesas Pretas Americanas elas ludibriam um milionário e vestem uma série de combinações que tanto violam qualquer conceito de bom gosto como produzem avalanches de riso no espectador. Só o fato de latex envergado por Berry coloca este filme no panteão das comédias mais bem-vestidas do cinema americano. Carter mostra aqui que é uma mestra em usar roupa como instrumento para gerar risadas.




SPIELBERG E “AMISTAD”

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Segunda nomeação para o Óscar!!

Depois de anos a vestir a vanguarda do cinema de autores afro-americanos, Ruth E. Carter veio a trabalhar com um dos realizadores caucasianos mais aclamados de Hollywood, Steven Spielberg. É evidente, contudo, que o tema que viria a fazer com que esta figurinista juntasse forças com esse titã do cinema americano se relaciona com a História da comunidade afro-americana nos EUA. Nomeadamente, “Amistad” retrata a batalha judicial travada em 1839 por um grupo de escravos que, a meio da travessia do Atlântico, se amotina e toma controlo do navio, mas acaba por chegar aos EUA ao invés de regressar a África. Aí, eles tiveram de defender seu caso enquanto seres humanos livres com direitos e não propriedade extraviada a ser devolvida aos seus donos.

De escravos em andrajos rotos a realeza Espanhola, “Amistad” representou um dos maiores desafios históricos e estilísticos na carreira de Carter. Afinal, enquanto é relativamente fácil pesquisar o que é que a alta sociedade vestia em meados do século XIX, o mesmo tipo de documentação não existe sobre escravos, especialmente quando suas condições são tao específicas como as do filme. A figurinista deu o seu melhor e acabou por conceber um guarda-roupa que tanto serve como ferramenta de imersão histórica como um elemento dramatúrgico que ajuda a audiência a conhecer cada personagem, seu fado, seus interesses e individualismo nesta batalha legal.

Para as cenas mais tardias, em que Cinqué, o líder da revolta, aparece vestido com estilos europeus, Carter decidiu que as indumentárias deviam ser demasiado grandes para o corpo do ator. Assim, fica sugerida a ideia que tais peças não foram compradas ou feitas para ele, mas sim uma doação caridosa de um advogado ou outro benfeitor. Em contraste, destacam-se os vestidos volumosos que Anna Paquin enverga como a rainha Isabela de Espanha, um contraste radical aos andrajos esfarrapados dos escravos e os fatos emprestados de Cinqué. Por tudo isto, Carter foi nomeada para o Óscar, mas viria a perder o galardão para “Titanic”.




CRIANDO E DESAFIANDO ICONOGRAFIA COM JOHN SINGLETON E SPIKE LEE

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SHAFT e BAMBOOZLED, dois filmes muito diferentes a lidar com temas iconográficos semelhantes.

Para além de Townsend e Lee, os anos 90 de Ruth E. Carter foram marcados pela colaboração regular com John Singleton, o primeiro realizador preto a ser nomeado para o Óscar de Melhor Realização. Carter não vestiu esse filme de importância histórica, “Boyz n the Hood”, mas desenhou figurinos para muitos outros trabalhos do cineasta, incluindo alguns dramas históricos que evidenciaram os melhores talentos de Carter. Com isso dito, a mais esplendorosa colaboração entre Carter e Singleton foi um filme trajado em modas contemporâneas. Referimo-nos ao remake do célebre filme dos anos 70, “Shaft”.

A obra, que só chegou aos cinemas em 2000, é protagonizada por Samuel L. Jackson, com quem Carter tinha trabalhado pela primeira vez em 1989 em “Não Dês Bronca”. De todos os atores com que já trabalhou, a figurinista diz que ele é quem mais se preocupa com o aspeto das suas personagens e mais dá valor à arte dos figurinos. Para criar as indumentárias do protagonista titular de “Shaft”, Carter e Samuel L. Jackson foram até Milão num avião privado que a própria Armani pagou. Nos ateliers da célebre casa de Moda italiana, a figurinista orientou a criação do guarda-roupa para este remake que se atreve a reinventar ícones imortais do cinema afro-americano.

“Shaft” não foi o único filme estreado em 2000 cujo guarda-roupa levantou desafios culturais a Ruth E. Carter. Nesse mesmo ano, Spike Lee trouxe aos cinemas “Bamboozled”, talvez o seu filme mais polémico de sempre. Nessa comédia irreverente, um escritor televisivo propõe, em sinal de protesto e provocação, um programa orientado em torno de “blackface” e outras paródias ofensivas da comunidade preta. Para seu tormento, esse mesmo programa torna-se num sucesso instantâneo, revelando uma série de difíceis dinâmicas raciais na sociedade americana, mesmo entre artistas afro-americanos dispostos a promulgar tais representações hediondas de si mesmos. Face a tal narrativa, Carter teve de desenterrar algumas das caricaturas racistas mais icónicas da História e dar-lhes nova vida com suficiente distância crítica para que audiência não se deixasse levar pelo mesmo veneno dos espectadores dentro da história. O filme ainda hoje é discutido em meios académicos e parte do seu legado e importância deve-se ao esforço iconográfico de Carter.




UM REGRESSO À RIBALTA COM “SPARKLE”

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SPARKLE é uma excelente montra para os maiores talentos de Ruth E. Carter.

Depois das controvérsias de “Bamboozled”, a carreira de Ruth E. Carter entrou numa fase desprestigiada, onde projetos importantes deram lugar a uma série de comédias medíocres e uma improvável aventura pelo mundo da ficção-científica em “Serenity”. Para fãs da figurinista, este terá sido um período negro, onde a possibilidade de Carter às boas graças da indústria e do Óscar pareciam reduzir-se com cada ano que passava. Contudo, Carter veio a regressar à ribalta com um filme onde seus talentos para pesquisa histórica e criação de espetáculos visuais foram postos em evidência.

Sparkle” é um remake de um filme dos anos 70 cuja narrativa muito se assemelha a “Dreamgirls”, retratando o modo como a fama afeta um trio de cantoras afro-americanas ao longo da década de 60. Com tal temática em mãos, assim como um elenco vistoso com Whitney Houston, Jordin Sparks e Carmen Ejogo em alguns dos melhores papéis, Carter deu asas à imaginação e construiu um guarda-roupa que tanto pisca o olho à história como à necessidade de deslumbramento. Entre missangas e lantejoulas, minissaias e botas metálicas, joalharia ostentosa e personagens em estilos contrastantes, o filme é uma verdadeira orgia de moda. Também foi um sucesso crítico e comercial que veio recordar os cineastas que Carter é uma perita indisputável em narrativas históricas focadas na comunidade afro-americana.

A este filme seguiram-se muitos projetos que seguiram as mesmas linhas concetuais, em termos de história afro-americana e teor sociopolítico, mas destaque há que ser dado a Spike Lee. Por muito distante que Carter estivesse da ribalta, Spike Lee nunca deixou de a contratar para vestir seus filmes. Com o advento da segunda década do século XXI, também o realizador entrou numa fase de novo reconhecimento e prestígio, o que se veio a refletir também na qualidade dos guarda-roupas de Carter. “Chi-Raq”, por exemplo, é uma delícia de comédia grega transposta aos EUA modernos, com estilos e cores codificadas. “Oldboy”, por outro lado, representa uma mistura fascinante entre estilos asiáticos e a estética afrocentrica de Carter e Lee.




AS RAÍZES DA HISTÓRIA AMERICANA

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O MORDOMO, SELMA, RAÍZES e MARSHALL marcam uma nova e muito áurea fase na carreira desta figurinista.

Tanto no cinema como na televisão, os anos que se seguiram à estreia de “Sparkle” marcaram um retorno de Ruth E. Carter ao mundo dos dramas históricos de prestígio. No pequeno ecrã, por exemplo, a figurinista vestiu o remake de “Raízes”, um épico sobre a família de um homem africano raptado e vendido como escravo, transportado para os EUA e as seguintes gerações da sua família. O verismo histórico da produção é meio inconsistente no guarda-roupa das personagens brancas mais abastadas, mas as figuras centrais da família são vestidas com aprumo e dramatismo que não trai o facto documentado. O mesmo se pode dizer de “O Mordomo”, uma produção histórica que desafiou Carter a vestir quase todo o século XX na Casa Branca. Enquanto os retratos dos Presidentes tendem a sugerir a caricatura arqueológica, as roupas da família do mordomo central são uma meticulosa viagem pela História da Moda.

No mesmo panorama, também temos “Selma” de Ava DuVernay. Carter estudou minuciosamente todas as documentações fotográficas dos eventos retratados no filme e tentou manter-se o mais fiel possível ao facto histórico. Somente em alguns momentos pontuais, como a introdução de Martin Luther King Jr. e sua esposa na noite em que este recebeu o Nobel, é que a figurinista sobrepôs as necessidades dramáticas do guião à veracidade da reprodução arqueológica. Noutros casos, Carter teve de manipular as roupas de modo a sugerir a fisicalidade das figuras histórias. Como David Oyelowo não tem a mesma fisionomia de Luther King, Carter fez com que as golas das suas camisas fossem demasiado apertadas, dando a aparência de um pescoço mais gordo. Essa não foi a única vez que a figurinista teve de resolver tais problemas de casting.

Em “Marshall”, um dos maiores desafios da figurinista foi transcender quão Chadwick Boseman não se parece com Thurgood Marshall. Carter decidiu vestir a personalidade da figura histórica, mais do que reproduzir a sua silhueta como vista em fotos. Assim, Carter fez com que Boseman transmitisse a mesma aura de confiança meio vistosa que Marshall exemplificava. Ao mesmo tempo, os têxteis com padrões desses figurinos mantêm sempre o ator principal como foco visual das cenas, até quando aparece ao lado de Kate Hudson vestida com todo o primor das modas severas dos anos 40.

Nenhum destes projetos cinematográficos resultaram em nomeações para os Óscares. Isso só viria com um certo filme de super-heróis.




“BLACK PANTHER”, NOVAS LENDAS DO CINEMA

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Será que é desta que Ruth E. Carter ganha o Óscar?

Enquanto filme de super-heróis sério, enquanto blockbuster de ação, “Black Panther” representa uma série de estreias e novos desafios na carreira de Ruth E. Carter. Antes de começar a desenhar o que quer que fosse, a figurinista mergulhou nos arquivos da Marvel e estudou todas as versões já publicadas das personagens que aparecem no filme. A isso seguiu-se uma enorme pesquisa de culturas, técnicas e iconografia de várias tribos africanas e suas especificidades estéticas. A História da Marvel e a tradição ancestral africana foram assim as bases que Carter usou para construir este enorme guarda-roupa afrofuturista que, ao todo, engloba cerca de 700 figurinos diferentes que tiveram de ser criados de raiz.

Quem tiver um olho atento e bom conhecimento de modas tribais poderá ver como Carter definiu as diferentes comunidades e regiões de Wakanda usando como referência as modas tradicionais de inúmeros países do continente africano. Por detrás das suas escolhas, este tanto a necessidade de variedade visual e espetáculo, como uma procura por uma evolução cultural realista de Wakanda. Os Jabari, por exemplo, usam armadura feita de madeira esculpida inspirada em artesanato real e vestes forradas a pelo devido às condições climatéricas e geográficas que o guião lhe aponta.

Todo esse tradicionalismo foi executado com as últimas tecnologias, sendo que Carter chegou até a conceber todo um figurino de Angela Bassett com a ajuda de uma impressora 3D. Ryan Coogler queria prestar homenagem à cultura africana, mas sempre com um piscar de olho a uma estética futurista, pelo que rejeitou todas as propostas que Carter lhe fez que parecessem demasiado feitas à mão. Assim, roupas feitas consoante o simbolismo cromático dos Maasai, joalharia Ndebele e toucados de linhas egípcias foram todos concebidos com técnicas que usam toda a tecnologia de ponta que a Disney podia pagar.

Basicamente, “Black Panther” é uma obra-prima estilística e ficaríamos jubilantes se Carter conseguisse ganhar o galardão, especialmente quando consideramos como duas das três outras nomeadas, Sandy Powell e Alexandra Byrne, já ganharam Óscares. Se ela triunfar, tornar-se-á na primeira figurinista afro-americana a arrecadar o prémio, um marco histórico que Carter certamente valorizaria e destacaria no seu discurso.

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Pensas que Ruth E. Carter merece ganhar o Óscar por “Black Panther”? Deixa a tua resposta nos comentários e diz-nos qual é o teu filme preferido do currículo desta artista.

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