"Saint Maud" | © MotelX

MOTELx ’20 | Saint Maud, em análise

Um dos títulos mais antecipados do 14º MOTELx, “Saint Maud” é o filme de estreia da realizadora Rose Glass e um sanguinário retrato do fanatismo religioso enquanto demência autodestrutiva.

A fé pode ser algo incrivelmente assustador. A crença cega em algo que é impossível de provar, a devoção a forças maiores que o humano, a certeza numa ordem cósmica que justifica a existência e a ação singular – ingredientes do culto religioso, mas também da loucura. Não queremos com isto ofender leitores crentes, mas somente apontar como os paradigmas da religião podem ser facilmente retorcidos em algo tenebroso. Aliás, como bem sabemos, algum do melhor terror é aquele que torna o mundano do dia-a-dia em fonte de medo, que pega no corriqueiro e o molda em monstruosidade. Com o seu primeiro filme, a realizadora britânica Rose Glass faz isso mesmo, minando a mente devota em busca do assombramento.

“Saint Maud” conta a história de uma jovem enfermeira de cuidados paliativos que partilha o nome com o título do filme. Um prólogo em tons gélidos sugere que há trauma no passado da protagonista, algo sangrento e mortal, mas seu sorriso plácido e narração otimista apontam para uma recente redenção ao cristianismo e à paz de espírito. A fé salvou Maud depois de um acontecimento vil e, agora, ela quer conceder semelhante salvação àqueles que a rodeiam. Afinal, se ela foi poupada por Deus, deve ser porque tem um propósito maior na vida terrena e, para a enfermeira, essa missão toma a forma do evangelismo. Quer elas queiram quer não, Maud vai salvar as almas perdidas com que se depara.

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Mesmo antes de se estabelecerem os preceitos do drama e seu elenco completo, o filme faz questão de nos sugerir como a devoção vai resvalar na violência. Para Maud, a dor é uma benesse divina que não deve ser desperdiçada, um poder transformativo que transcende a carne mortificada e encaminha a alma na direção do Paraíso. Considerando que, enquanto enfermeira, Maud passa a vida entre pessoas a definhar na dor de corpos moribundos, sua filosofia não só tem laivos de insulto como de catastrófica falta de empatia. Nada melhor para testar a fé de Maud que uma paciente antagónica, uma ateia convicta que não tem paciência para a celebração do sofrimento que a protagonista lhe quer impingir e só finge a crença para troçar da mulher mais nova.

Ela é Amanda, um reflexo distorcido de Maud, essa santa terrena e salvadora dos pecadores. Uma antiga coreógrafa e consagrada bailarina, Amanda ainda é nova para necessitar das atenções de uma enfermeira no domicílio, mas o demónio do cancro roubou-lhe a vitalidade. Lésbica assumida, boémia no precipício do alcoolismo e sem pinga de vergonha, ela é como que o oposto de Maud. Melhor ainda, Amanda move-se pelo último capítulo da vida como uma antiga diva que encontra tanto gozo no fado trágico que a consome como nas ansiedades febris da sua cuidadora. Se Maud é uma locomotiva a alta velocidade, Amanda é uma montanha com a qual a máquina colide. Haverá destruição mútua? Quiçá o comboio fura a rocha ou a parede de pedra espatifa o metal?

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Com as peças no tabuleiro de xadrez, começa a ser fácil para o espetador prever o caminho deste jogo, deste pas de deux. Contudo, Glass sabe bem como contrariar a expetativa. Acontece que Amanda tem os seus limites e, ao invés de muitas outras personagens no cânone do terror, ela não vai aturar abuso quando se pode poupar a tal. Uma infração pública aborta a linha narrativa de Maud e Amanda, deixando-nos completamente sozinhos com a enfermeira. Ao longo de “Saint Maud”, a forma fílmica está sempre a reforçar a ideia que estamos a ver o mundo através dos olhos febris da personagem titular. Isso vai desde a narração confessional em voz-off até as alucinatórias passagens de êxtase religioso, onde a graça de Deus se manifesta em forma orgástica para Maud.

Inicialmente, a presença de Amanda serve de apoio para o espetador, uma projeção de ironia que sempre tempera a convicção febril da nossa anti-heroína. No entanto, quando a história dá uma cambalhota e nos encontramos presos a Maud em confinamento solitário, então essa estilização subjetiva ganha proporções que esmagam e angustiam. “Saint Maud” alarga o cenário, mas aperta a tensão claustrofóbica, dando-nos um lugar da primeira fila para o espetáculo que é a implosão mental da enfermeira que, afinal, nem se chama Maud. O pior de tudo é que não temos nenhum elemento são a que nos agarrar, algo para desviar o olhar e não pensar nas memórias macabras da personagem ou seus métodos de autoflagelação.

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Para fãs do terror clássico, a proposta dramática de “Saint Maud” pode deixar um pouco a desejar, mesmo que o sangue, a morte e o niilismo típicos do género marquem presença. No seu âmago, o filme é um estudo de personagem e está mais interessado em nos mostrar o degredo de uma mente virada do avesso do que em provocar o susto. Saímos de “Saint Maud” mais perturbados que amedrontados, especialmente depois de sermos sujeitos às performances de Morfydd Clark e Jennifer Ehle, duas atrizes que se rendem aos excessos obscenos da trama e nos concedem ignóbeis visões do espírito extravasado pela dor.

Se há algum terror mais tradicional, ele vive somente no último segundo do filme. Aí, Glass inclui um corte abrupto que finalmente nos liberta da perspetiva enlouquecida de Maud e nos deixa ver a realidade horrível dos seus atos. É um gesto tardio, mas chocante. É uma estranha lembrança que, numa história tão lúgubre como esta, a loucura, a fé, é por vezes o bálsamo que nos protege do inferno do corpo mortal. Quem não preferiria ser um mártir a ascender ao paraíso que uma infeliz a sofrer sem razão e sem sentido?

Saint Maud, em análise
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Movie title: Saint Maud

Date published: 12 de September de 2020

Director(s): Rose Glass

Actor(s): Morfydd Clark, Jennifer Ehle, Lily Knight, Lily Frazer, Turlough Convery, Rosie Sansom, Marcus Hutton, Carl Prekopp, Noa Bodner

Genre: Drama, Mistério, Terror, 2019, 84 min

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

Atuado com convicção e filmado com aprumo formal, “Saint Maud” é um pesadelo de fé retorcida em forma de loucura. Rose Glass é uma realizadora do terror a celebrar e o seu primeiro trabalho de longa-metragem é um dos títulos de destaque do ano e do MOTELx.

O MELHOR: O trabalho das atrizes, especialmente os devaneios meio sexuais de Morfydd Clark aquando da graça divina.

O PIOR: Sempre que há algum efeito digital, o filme perde potência e resvala um pouco para o ridículo. Asas de anjo, chamas infernais e uma possessão à la “Exorcista” são passagens infelizes. Além disso, gostaríamos que a história fosse um pouco mais profunda na sua pesquisa psicológica sobre a fé.

CA

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