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Salvatore Giuliano, a Crítica | O memorável cinema italiano de Francesco Rosi

A Leopardo Filmes e a Medeia Filmes dão a conhecer “Salvatore Giuliano”, uma obra icónica do cineasta italiano Francesco Rosi!

Francesco Rosi (15 de Novembro de 1922 – 10 de Janeiro de 2015) nasceu em Nápoles, cidade da Campania, sudoeste de Itália. Podemos dizer que a sua carreira no cinema começou da melhor maneira ao participar como assistente do mestre Luchino Visconti em dois filmes que são duas obras-primas daquele cineasta. Filmes de visão indispensável, magníficos, apesar de muito diferentes entre si. Estou a falar, por um lado, de “La Terra Trema” (A Terra Treme), 1948, filme rodado na Sicília e no seio das lutas desencadeadas, em prol de justiça social e melhores condições de vida, por pescadores submetidos a uma constante exploração da sua força laboral.

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Na montagem, a linguagem do documentário combina-se com a da ficção, e o filme constitui um dos expoentes máximos dos pressupostos que identificaram o neo-realismo na arte cinematográfica italiana. Por outro lado, falo de “Senso” (Sentimento), 1954, melodrama histórico rodado em Veneza com a acção situada durante os acontecimentos gerados pela Terceira Guerra pela Independência e Unificação de Itália, o chamado Risorgimento. Entretanto, Francesco Rosi escrevera diversos argumentos, entre eles o de “Processo alla Cittá” (Processo Contra a Cidade), 1952, de Luigi Zampa, onde se fala abertamente das responsabilidades da Camorra, a Máfia Siciliana com origem Napolitana, no assassinato de um casal.

MORTE DE UM BANDIDO SICILIANO…!

Na sua filmografia como realizador, não obstante o evidente peso específico de uma cidade como Nápoles (“peso” visual e programático com que iria sobressaltar a consciência pesada de uma certa Itália que não gostava de se ver ao espelho), a primeira das suas duas mais famosas longas-metragens foi rodada na Sicília, nos precisos locais onde decorreram os factos abordados e sistematizados, a vida e morte de um bandido, plasmados num argumento que mereceu a contribuição de outro grande nome do cinema italiano, a escritora e actriz Suso Cecchi D’Amico (1914 – 2010). Trata-se do corajoso e até certo ponto “revolucionário” “Salvatore Giuliano”, 1962, cuja acção decorre na primeira metade dos anos quarenta e durante a Segunda Guerra Mundial, após a invasão aliada da Itália pelas forças aliadas, num período particularmente conturbado em que os separatistas daquela ilha procuraram libertar-se do jugo exercido pelo poder sediado em Roma, iniciando um movimento com o objectivo de alcançar a independência através de diferentes métodos de pressão.




Movimento ou frente de interesses fruto de complexos jogos de bastidores com alianças ainda mais difíceis de sustentar, que não rejeitava a luta armada. Neste último contexto, o fora-da-lei Salvatore Giuliano (na nomenclatura local Turiddu ou Sarvaturi Giulianu) apresentou-se como uma das peças mais activas deste xadrez político, e a sua presença no mercado negro foi gradualmente substituída pela luta guerrilheira (chegou mesmo a ser nomeado coronel pelo Movimento de Independência da Sicília). Para os devidos efeitos, ao longo de sete anos fez a cabeça em água aos polícias e carabinieri, quer aos que serviam na região que o viu nascer quer aos que o governo central enviava para combater quem quer que estivesse associado a qualquer forma de crime organizado, resistência ou rebelião.

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Dito isto, perguntarão qual foi então o ponto de vista que prevaleceu na opção do cineasta Francesco Rosi ao dar o nome de um bandido, mesmo que apelidado “bandido do povo”, ao seu filme. Fez dele um herói, gerando assim as condições para estruturar um épico sobre uma peculiar figura e uma ainda mais sui generis revolução que acabou por não ser bem-sucedida, apesar da exuberância das suas repercussões na vida política, militar e administrativa da Península italiana? Não, de modo nenhum…! Isso seria um erro que Francesco Rosi não queria nem podia cometer se era seu propósito, como parece certo desde o início, falar verdade sobre o que realmente se passou.

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Por isso mesmo, Salvatore Giuliano será visto logo ao início como um homem a quem o destino foi amputado pela raiz devido ao facto de ser um anacronismo num país que desejava a normalização e a paz, mesmo que fosse a paz podre erguida sobre as cinzas do fascismo que saíra derrotado mas não extinto nos anos posteriores aos da Segunda Guerra Mundial. Havia uma Itália politicamente comprometida que almejava, em diversos quadrantes ideológicos, produzir um inequívoco efeito mediático com a sua morte, sobretudo junto do cidadão comum. Mais ainda do que a glorificação das acções repressivas levadas a cabo pelas autoridades policiais. Por isso, a imprensa será convocada em grande número para ver o que nós iremos ver logo na primeira sequência, o corpo sem vida de Salvatore Giuliano, caído no chão e de rosto voltado para o solo, onde se notam vestígios de sangue e onde espalhados a seu lado se encontram uma espingarda e uma pistola.




Fala-se de uma emboscada e de missão cumprida. E a partir dali o realizador vai propor-nos um fascinante exercício fílmico que nos faz viajar, sem cronologias previamente definidas, entre o passado e o presente (neste caso o dia e ano da morte de Salvatore Giuliano, ou seja, 5 de Julho de 1950). Fá-lo de uma forma clara e sem rodriguinhos. Diz o que valia e não valia na sua personalidade e na daqueles que o seguiam, ora acusados de cumplicidade num projecto de rebelião ora condenados por puro e simples banditismo. Tendo em conta que a rodagem aconteceu nos próprios locais em que os factos históricos ocorreram, nomeadamente na Comune di Montelepre, e ainda que a esmagadora maioria dos actores não são profissionais, será preciso aqui referir a excelência da direcção de actores e, no conjunto desta obra, da encenação da maioria das sequências, nomeadamente as que dizem respeito aos combates nas montanhas, e com especial eficácia nos movimentos de massas protagonizados pelo povo anónimo. Só quem nunca participou numa rodagem pode pensar que não custa nada fazer aquilo que vemos no filme.

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Por exemplo, a poderosa, ordenada e perfeitamente enquadrada determinação das mulheres do povo que saem de suas casas, não apenas figurantes mas figuras de corpo inteiro que avançam pelas ruas e acabam a protestar alto e bom som numa praça onde as forças repressivas reuniram os seus homens, presos depois de uma rusga, sequência poderosa que nos revela a vontade indómita daquelas mulheres face aos maridos, filhos e parentes próximos, agrilhoados e algo impotentes perante a arbitrariedade da violência policial. Não, ali elas não se comportam como o sexo fraco. “Salvatore Giuliano”, o filme, até ao momento em que já na sua fase final avança para uma planificação mais clássica, contextualiza sequência a sequência a vida de um grupo de pessoas que viviam paredes meias com rebeldes cujas motivações são por vezes difusas. Para sermos mais rigorosos, são em primeiro lugar vítimas do crónico subdesenvolvimento que sempre caracterizou o Mezzogiorno, o Sul de Itália, e Francesco Rosi não esqueceu as contradições materiais e espirituais geradas ao longo de anos e anos neste canto perdido do mundo. Face a um pano de fundo onde perduram as dificuldades mais básicas, as desigualdades sociais e a miséria, não hesitou mesmo em referir a pior faceta do bando agrupado em redor de Salvatore Giuliano ao reconstituir a matança que ficou conhecida pelo massacre de Portella della Ginestra.

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Tratou-se de um acto de perfeita barbárie cometido após o MIS (Movimento de Independência da Sicília) a que Salvatore Giuliano dava apoio, não obter nas eleições de 1947 mais do que nove por cento dos votos, contra os vinte e nove por cento do Bloco Popular (coligação de comunistas e socialistas), mais os vinte por cento da Democracia Cristã. Os latifundiários e conservadores sicilianos, muitos deles partidários da monarquia e herdeiros dos privilégios fascistas, com receio de que os vencedores nas urnas quisessem realizar reformas que pusessem em causa os seus interesses de classe, planearam um ataque a um comício organizado pelas forças de esquerda para celebrar o Primeiro de Maio de 1947. Desta operação resultaram inúmeras mortes, incluindo mulheres e crianças, facto que levantou uma onda de indignação que veio a ser em grande parte motivo para o recrudescimento da repressão que acabaria com a morte, na verdade o assassinato, de Salvatore Giuliano.




Um dos aspectos de maior impacto deste filme passa pelo modo como Francesco Rosi nos revela a história desassombrada de um marginal sem dele nos dar mais do que a visão fantasmática. Magnífica ideia a de nos fazer ver a personagem sem materializar a sua presença, pelo menos de forma constante diante dos nossos olhos. Ele passa mesmo por ser uma espécie de fantasma, um ser que se esconde na sombra e no invisível, um homem que carrega consigo na clandestinidade o estigma de um ideal que parece a certa altura ferido de morte e de certo modo perdido para os que com ele viveram os sinuosos caminhos da guerrilha.

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Por isso, quando regressa enquanto morto nas derradeiras imagens e quando vemos a mentira por detrás do modo como os polícias encenaram a sua execução, fica-nos a sensação de assistirmos a uma ficção com um fortíssimo selo de autenticidade que de algum modo regressa ao início do filme, fechando um círculo para nos dizer que aquele que ali jaz não passa de um homem cujo ideal, se algum ele defendeu, se esfumou num ciclo de vida onde a morte acabou por vencer. Não satisfeito com este ensaio sobre os abismos da condição humana, Francesco Rosi vai ainda, no último plano de “Salvatore Giuliano”, revelar de forma brutal como a nefasta realidade de um problema aparentemente resolvido pode subsistir para além de um assunto que pensávamos encerrado. Literalmente para além do genérico final e da palavra FINE.

Salvatore Giuliano, a Crítica

Movie title: Salvatore Giuliano

Director(s): Francesco Rosi

Actor(s): Salvo Randone, Frank Wolff, Pietro Cammarata, Sennuccio Benelli

Genre: Drama, 1962, 123min

  • João Garção Borges - 100
100

Conclusão:

PRÓS: No Festival de Berlim de 1962, recebeu o Leão de Prata para o Melhor Realizador.

E vale o que vale, mas no site da CRITERION, Martin Scorsese, com raízes familiares na Sicília, considera “Salvatore Giuliano” um dos seus dez filmes favoritos. Numa lista encabeçada por outro filme italiano, “Paisà” (Libertação), 1946, de Roberto Rossellini, o filme que agora a Leopardo Filmes e a Medeia Filmes nos dão a ver em sala e numa magnífica cópia restaurada, está posicionado em sétimo lugar.

Já disse, mas repito. Magnífica cópia restaurada que nos permite ver aqui e agora, de olhos bem abertos, a igualmente magnífica fotografia, num cristalino e luminoso preto e branco, da responsabilidade de Gianni Di Venanzo.

CONTRA: Nada.

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