Assassinos da Lua das Flores, a Crítica | Uma história real que reúne Martin Scorsese e Leonardo DiCaprio
Martin Scorsese e Leonardo DiCaprio dão a conhecer a esquecida história do massacre da tribo Osage em “Assassinos da Lua das Flores”.
Recentemente, a propósito de acontecimentos que perduram no quadro de conflitos de natureza racial, ouvimos dizer que um dos pecados originais da América (leia-se aqui, os Estados Unidos da América) seria a escravatura e o inerente racismo, regime de prepotência alimentado por pessoas das mais variadas condições que não hesitaram em oprimir outros povos para dessa prática político-administrativa retirar amplos dividendos económicos. Essa antiga percepção de um facto que moldou a História de vários continentes a par da sua moderna denúncia foi uma espécie de palavra de ordem proferida em jeito de crítica contundente, ouvida sobretudo quando demos conta da morte por asfixia do afro-americano George Floyd, a 25 de Maio de 2020. Infelizmente, esse episódio de brutalidade policial foi um entre muitos que mancharam e continuam a marcar de forma negativa a História dos EUA, e não só. Mas o racismo, embora seja peça importante da contextualização histórica da escravatura, não nos pode fazer esquecer um outro pecado original, aliás, mais antigo que os EUA mas que este país cometeu em larga escala contra as populações nativas, ou seja, o crime de genocídio.
HISTÓRIA DESENCANTADA DA AMÉRICA: DO GENOCÍDIO E DA GANÂNCIA…!
Para a análise crítica do filme “Killers of the Flower Moon” (“Assassinos da Lua das Flores”), 2023, escrito e realizado por Martin Scorsese, permitam-me antes de mais recordar os acontecimentos ocorridos na cidade de Tulsa, Estado do Oklahoma, em 1921. Esta cidade vivia um boom petrolífero, e por essa razão era o lugar para onde muitos rumavam na miragem de enriquecer rapidamente. Foi assim que nasceu uma classe média, no caso de origem afro-americana, com alguma dimensão e que se concentrava no bairro Greenwood, apelidado “America’s Black Wall Street”. Esta prosperidade dos negros de Tulsa que contrastava com a situação vivida por muitos outros, pobres e submetidos aos ditames da economia dominada pela população de origem europeia, gerou invejas e ampliou preconceitos de classe misturados com o pensamento mais vil e racista. Foi esta a razão principal que levou um grupo de supremacistas brancos a invadir e destruir aquela parcela urbana, semeando pelo caminho inúmeros cadáveres de pessoas cujo único pecado era, neste caso, um visível bem-estar económico e uma visível ascensão social, algo que parecia intolerável aos olhos da maioria branca e de muita gente com ligações ao Ku Klux Klan.
Não muito longe de Tulsa e daquilo que esteve por detrás deste massacre, muito em particular a ganância, a cobiça, a raiva e o desconforto de gente sem escrúpulos por ver os oprimidos erguer a cabeça, vivia um bom número de nativos da chamada Osage Nation, mais precisamente no Condado dos Osage (era bom que deixássemos de mencionar a palavra “índio” que, por reviravoltas da ignorância, pertence ao léxico e legado de um bisonho Cristóvão Colombo que inacreditavelmente morreu convicto de estar nas portas da Ásia e da Índia quando “apenas” atingira as Caraíbas, ou seja, nem sequer alcançara o continente americano propriamente dito). Essa parcela do Norte do Estado do Oklahoma não era o lugar de origem dos Osage. Eles foram obrigados a deslocar-se para aquelas paragens a partir do Estado do Kansas, de onde foram expulsos. Sucede que aparentemente ninguém previu que naquilo que parecia ser uma vulgar e pouco produtiva bacia de poeira jorrassem a certa altura litros e litros de petróleo, que por sua vez fez jorrar muito dinheiro para os bolsos de quem era proprietário, dono e herdeiro de parcelas substanciais da pradaria. Foi um boom similar ao que ocorrera em Tulsa, ao ponto de fazer dos nativos Osage, na época a que se refere a acção do filme, um dos povos com maior rendimento per capita do mundo.
Mas a prosperidade de uns, sobretudo se forem diferentes do ponto de vista racial e cultural, gerou a ganância de outros, e não foi preciso muito para que as famílias nativas começassem a partilhar o seu espaço vital com aventureiros de má-fama, vigaristas, criminosos e os habituais vampiros do capitalismo que pouco a pouco foram gizando um plano para dizimar os Osage ou, na “melhor” das hipóteses, usurpar os seus direitos usando o expediente de casamentos manhosos através dos quais procuravam abocanhar os chamados “headrights”. Eram meros casamentos de conveniência com mulheres nativas, onde eventualmente não existia um mínimo de sinceridade matrimonial. De certo modo, foi esse o caso do jovem Ernest Burkhart (personagem interpretada por Leonardo DiCaprio). De início, damos conta da sua presença quando o vemos num comboio a caminho do Oeste. Saberemos depois que regressou da Europa e das sangrentas batalhas da Primeira Guerra Mundial, onde certamente participou em não poucas situações de violência e horror. Mas o filme não faz dele um herói, antes pelo contrário. Trata-se de um homem inculto, provavelmente sem grandes perspectivas de futuro na vida civil sem recorrer a alguma protecção fortuita ou até mesmo mafiosa, no âmbito familiar ou outro, como sucedeu a muitos veteranos desmobilizados que dificilmente arranjavam emprego.
Na verdade, pelas declarações que faz a propósito de experiências vividas na guerra, não passa de um simplório a caminho de um estatuto de perfeito labrego, sobretudo quando, após uma insinuante conversa onde avultam semi-confissões sobre sulfurosas aventuras sexuais de caserna, responde com uma careta algo animalesca e boçal, misto de perplexidade e surpresa, a uma simples pergunta do seu familiar e protector, o plutocrata criador de gado William “King” Hale (Robert DeNiro), homem que naquelas paragens do Oklahoma e do Território dos Osage se comportava como o dono e senhor das cartas e do jogo que ele e os seus cúmplices queriam jogar a seu bel-prazer para defender os mais secretos interesses pessoais, recorrendo a actos pouco ou nada recomendáveis. Na verdade, implementando um plano criminoso que atentava contra a vida e os direitos adquiridos dos Osage e promovendo uma contínua série de assassínios. E o que pergunta então o capitalista William Hale ao sobrinho? “Gostas de ler?” Ao que o recém-chegado e serviçal boca-de-favas responde: “Ler?” Com uma réplica destas no contexto de um diálogo de alguns segundos numa sequência de breves minutos, Martin Scorsese dá-nos o retrato cristalino daquelas duas personagens e faz assim o retrato impiedoso de um arrivista que por diversas vezes dirá alto e bom som, com um sorriso alarve, “gosto muito de dinheiro”.
Retirem o Bom, para ficar apenas o conceito de Mau para Ernest e de Vilão para “King” Hale. Não podia existir melhor exemplo de economia narrativa no quadro de uma estrutura fílmica, com uma clara exposição do carácter e das relações de poder que nela fazem sentido. E o filme, que dura muito mais do que o habitual formato para exploração comercial em sala, numa parcela significativa dos seus duzentos e seis minutos ficará marcado por este confronto inicial entre duas personagens que se revelam, não só ali como dali para a frente, por detrás de máscaras canalhas, rostos de uma calculada, cínica e miserável ambivalência. Para já não falar de uma nojenta hipocrisia. Aqui chegados, há que saudar de novo o realizador e co-argumentista que, não satisfeito com a singular e perfeita manipulação das linhas mestras do guião, vai introduzir neste cadinho de violência e mentira um imprescindível e decisivo conflito dramático, ou seja, a dúvida, aquela pequena mas não obstante incómoda dúvida que cresce, que nos rasga o pensamento e contamina as frágeis certezas ou a falta delas, sensação que finalmente nos assalta a consciência sobre a sinceridade infecta de o rapaz estar ou não enamorado da mulher, a nativa Mollie Burkhart (fabulosa interpretação de Lily Gladstone).
Dada a natureza submissa de Ernest, disposto que está a seguir as ordens da autoridade imposta pelo seu “padrinho”, à medida que o vemos seguir o plano de usurpação do património nativo, um sobressalto de lucidez indica-nos que, após um período inicial de namoro onde uma atmosfera relativamente normal prevaleceu, pode não sobreviver nele a médio e longo prazo um pingo de real paixão pela mulher, aquela que mesmo na adversidade continua a vê-lo como o homem a quem dedicou a sua vida e a fidelidade do seu amor. Diga-se que Martin Scorsese consegue nota máxima na direcção de actores ao recuperar para Mollie, após um calvário provocado pela diabetes, mas igualmente pelo envenenamento similar a outros de que os Osage vinham sendo vítimas, o vibrante fulgor inicial que ela demonstrara no quadro de uma atmosfera de intenso erotismo.
É notável o modo como, numa fase inicial do filme, Lily Gladstone/Mollie Burkhart consegue atrair com um simples olhar e uma ou outra interjeição vocal própria do vocabulário nativo o seu até certo ponto improvável parceiro branco, muitíssimo mais inexperiente nas artes da sedução. No período de namoro, ela será a única a introduzir inequívocos sinais de uma personalidade adulta e plena de maturidade. Neste particular, o filme constrói-se sob a matriz de um exercício sublime de frágil e assombrado romantismo. Entretanto, não vejo como alguns vislumbram uma componente épica na estrutura narrativa de “Assassinos da Lua das Flores”. Penso mesmo que Martin Scorsese não quis avançar por esse caminho ao estilo “a grande saga dos Osage acompanhada das contradições e abismos da família Burkhart”, palco para a dicotomia entre americanos nativos e descendentes dos emigrantes europeus, incluindo certos sectores marginalizados, a que se juntaria o modo como o então Bureau of Investigation (o futuro FBI) desvendou parte significativa dos crimes cometidos contra a nação Osage.
Pessoalmente, vejo como mais plausível e até segura do ponto de vista da realização, da montagem e das componentes imagética e sonora, a opção, ou melhor, o desejo, de fazer deste filme uma extensa e pormenorizada peça de reflexão e investigação sobre comportamentos humanos, reprováveis uns, legítimos outros, integrados em sequências que no geral correspondem a uma abordagem continuada e quase sem cortes substantivos de um episódio particular da consolidação dos alicerces de um país que, em muitos pontos da sua vasta superfície existencial, ainda vivia no espírito primitivo do desbravamento e estabelecimento da fronteira, a conquista do Wild West a qualquer preço, ambiente que não deixa de contaminar o colectivo de uma família e de uma época específica, assim como de uma nação que ainda não era a superpotência que nascerá no período pós-Segunda Guerra Mundial.
Neste filme, valoriza-se nas suas linhas gerais a relação próxima e nada inocente entre Ernest e Mollie, um casal americano unido mas igualmente separado por séculos de património histórico e espiritual, como se fosse o corolário de vida que prevalece na intimidade e cumplicidade daquilo que podemos chamar a(s) história(s) canalha(s) e desencantadas da América. História e histórias que assombram uma comunidade quando se expõem as consequências dos crimes cometidos e que não foram julgados ou condenados, que na maioria das vezes até se esconderam. História e histórias sobre a coragem da denúncia e da correspondente investigação que no fundo representa a matéria necessária e mais do que suficiente para nos obrigar hoje e sempre a pôr a mão na consciência se quisermos ser cidadãos dignos de um mundo onde o que se passou com os Osage (e muitos outros povos) não possa voltar a acontecer.
Em suma, numa frase simples, sem rodeios ou hesitações: “Assassinos da Lua das Flores”, um filme de visão imprescindível.
Assassinos da Lua das Flores, a Crítica
Movie title: Killers of the Flower Moon
Director(s): Martin Scorsese
Actor(s): Leonardo DiCaprio, Robert De Niro, Lily Gladstone, Jesse Plemons, Tantoo Cardinal, John Lithgow
Genre: Drama, 2023, 206min
-
João Garção Borges - 100
-
Rui Ribeiro - 90
-
Maggie Silva - 80
-
José Vieira Mendes - 90
-
André Sousa - 100
Conclusão:
PRÓS:
Belíssima Banda Sonora Musical, que sabe aproveitar os ecos da herança nativa dos primeiros habitantes do continente americano com as sonoridades contemporâneas.
Belíssima Direcção de Fotografia de Rodrigo Prieto, que usa as escalas e a paleta de cores certas para reforçar a dimensão humana de uma ficção baseada num inquérito jornalístico, mantendo a estrutura imagética num perfeito equilíbrio entre a intimidade das personagens e a efervescência do colectivo que as rodeia. Daqui se depreende que a montagem de Thelma Schoonmaker não fosse chamada a intervir para reduzir a duração das sequências que apresentam a duração própria e necessária ao projecto proposto e pela realização de Martin Scorsese. Ou seja, os filmes não são grandes só porque duram muitos minutos. Os filmes são grandes quando sabem gerir cada minuto da acção a favor e em função de um conjunto de ideias de cinema coerentes e de um propósito inicial sem barreiras redutoras da criatividade.
Notável, mas obviamente expectável, o respeito que a produção garantiu pela representação da nação Osage, os seus usos e costumes, nunca os reduzindo a peças de um contexto folclórico para eventual exploração comercial de diferenças mais ou menos exóticas do ponto de vista cultural e antropológico.
Excelente ideia a de concluir o filme com a reconstituição de uma recriação radiofónica ao vivo dos acontecimentos relacionados com a sua matéria primordial. Espectáculo patrocinado pela Lucky Strike a roçar a indigência intelectual e onde nem um só nativo americano foi chamado a representar o seu próprio papel. Tudo acompanhado por uma algo fantasiosa sonoplastia em directo. Trata-se de uma deliciosa e irónica forma de Martin Scorsese criticar o modo como muitos fazem com que um drama atinja o nível da farsa, sobretudo quando não se tem muito respeito pela memória dos que sofreram as bárbaras agressões motivadas pela mais reles ganância e pelo mais execrável racismo e sentimento de superioridade. Duplamente excelente a ideia de ele próprio, Martin Scorsese, aparecer no palco onde a sessão decorre para acrescentar ao que fora dito, a partir da leitura seca mas emotiva do obituário de Mollie Burkhart, aquilo que constitui um outro crime, a negação dos factos, o crime do silêncio que sistematicamente procurou fazer esquecer o mal perpetrado no passado com o objectivo de “branquear”, digamos assim, o verdadeiro rosto dos assassinos da Lua das Flores.
No mesmo dia em que se estreia no grande ecrã “Assassinos da Lua das Flores”, a Quetzal Editores lança no mercado o livro homónimo de David Grann, publicado em 2017, no qual se baseou o argumento escrito por Eric Roth e Martin Scorsese. Para os devidos efeitos, não devemos confundir esta obra de jornalismo literário sobre a matança dos Osage e o nascimento do FBI (Federal Bureau of Investigation) com uma espécie de pré-guião da obra cinematográfica. No caso presente, não estamos aqui no domínio do livro do filme, mas sim no domínio de uma obra que pode ser lida autonomamente, aliás, com o mesmo grau de prazer e interesse com que se assiste ao filme. E lê-se num fôlego. De facto, neste caso ver e ler constitui a melhor solução para acrescentar algo mais ao nosso conhecimento da matéria em causa.
Nos Estados Unidos, o livro foi Bestseller #1 do New York Times.
CONTRA: Nada.