Se as Montanhas se Afastam, em análise

Se as Montanhas se Afastam retrata a vida de uma mulher e seu filho, ao mesmo tempo que olha para o passado, presente e futuro da China enquanto país e potência económica.

se as montanhas se afastam

Estruturar um filme em torno de episódios rigidamente definidos é sempre um risco. Fazê-lo convida imediatamente à comparação e, na maioria dos casos, a segmentação do filme acaba por realçar a fragilidade de alguns dos seus mais fracos momentos. O cineasta Jia Zhangke já experimentou criar uma obra nesta linha de pensamento em Um Toque de Pecado em 2013. Nesse caso, a segmentação teve bons resultados, mas em Se as Montanhas se Afastam de 2015, o produto final deixa muito a ser desejado. Quer dizer, esta narrativa tripartida é, na verdade, um dos mais belos trabalhos do realizador até à sua terceira parte, que apunhala a excelência inicial com um golpe de agressiva mediocridade e incoerência, sendo que apenas uma comovente coda consegue salvar o filme do abismo em que se afundou.

Talvez seja pertinente oferecer uma explicação desse tríptico narrativo antes de dissecarmos as suas partes individuais. Basicamente, o filme é uma alegoria sobre o tema fétiche de Jia Zhangke, ou seja, o modo como a identidade nacional e cultural chinesa estão a ser moldadas e corrompidas pelos desenvolvimentos económicos das últimas décadas, as quais têm feito do país uma das maiores potências mundiais. Para explorar este tema e se questionar sobre o futuro a que este caminho poderá levar a China, Se As Montanhas Se Afastam conta-nos a história de Tao Shen em 1999 e 2014. Primeiro, observamo-la no meio de um triângulo amoroso durante os últimos suspiros do séc. XX e primeiros passos do XXI. A segunda parte da sua narrativa foca-se, não na sua vida amorosa, mas na sua relação com Dollar, seu filho de sete anos, que brevemente vai ir viver com o pai e sua madrasta para a Austrália. Na derradeira parte do seu tríptico, a narrativa muda-se para o país dos cangurus, onde Dollar vive e está tão removido da cultura chinesa que já nem consegue comunicar com o pai que ainda não domina o inglês como o seu filho. Na verdade, ele já nem sequer se lembra da mãe.

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Ou seja, Tao é a China e tem de escolher entre um operário humilde e um empresário arrogante. Acaba por escolher o capitalista e passa o resto da sua existência a distanciar-se da sua progénie, até ser esquecida e tornada obsoleta. O simbolismo dos filmes deste cineasta nunca é particularmente subtil mas isso nunca invalida o poder e maravilhosa execução dos seus trabalhos. Esse segundo ponto é posto em evidência na secção de 1999, onde o realizador decidiu filmar em 4:3, empregou montagem energética e usou vídeos arquivados de 2001, cuja estética decidiu reproduzir com a sua textura granulosa e artificial intensidade cromática. Ao longo do filme, a imagem vai alargando até chegar ao formato 2.37:1 e o design vai sofrendo outras mutações e depurações, mas nada em todo o projeto é tão belo como a sua primeira parte, cujo uso de tecnologia desatualizada posiciona toda a sua história como algo intrinsecamente passado, quase uma memória nacional traduzida em linguagem fílmica.

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No entanto, se tudo o que Se as Montanhas Se Afastam tivesse para oferecer fosse virtuosismo audiovisual e simbolismos descarados, o seu impacto não seria tão intenso como acaba por ser. Muito disso deve-se à magnífica Tao Zhao, a mulher e frequente colaboradora do realizador, no papel principal. Aqui, apesar de ser pouco convincente na pele de uma rapariga acabada de sair da adolescência em 1999, ela consegue sugerir, somente através da sua expressão e postura, quão esta mulher vai sofrendo a passagem do tempo, tanto a nível físico como mental. Ele começa e acaba o filme a dançar, mas a diferença entre as imagens é monumental, sugerindo a flor da juventude no início e o pesar de uma vida dolorosa no final.

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Apesar de relembrar Jeanne Moreau em Jules et Jim durante as intrigas do triângulo amoroso, o grande triunfo da atriz está no capítulo do meio, onde a sua capacidade para tornar em realidade humana o mais rebuscado dos simbolismos é posto à prova. As suas cenas com o filho são de particular beleza, com cada silêncio ou gesto abortado a conter mais história pessoal que uma centena de monólogos. Nesta secção, a abordagem estilística torna-.se muito menos vistosa, mas isso está em perfeita harmonia com o trabalho da atriz que, graças à inteligente mão do seu realizador, se torna no centro gravitacional das cenas, como um buraco negro que exige desesperadamente a nossa atenção, mesmo quando a sua história é uma de crescente isolamento e abandono.

Tao Zhao é assim uma âncora para o filme, e conseguindo modular os seus impulsos narrativos mais melodramáticos e deselegantes. Infelizmente, quando a história muda de país e protagonista na sua terceira parte, ela deixa de estar no centro da narrativa e o vazio deixado é demasiado grande para qualquer pessoa preencher. Quando o ator encarregue de fazer isso é tão desconfortável em frente à câmara e a falar inglês como Dong Zijian no papel de Dollar, então estamos metidos em grandes sarilhos. Há que sublinhar, contudo, que as razões por detrás do descarrilamento de Se as Montanhas Se Afastam são várias e a má prestação do seu protagonista nem é a pior.

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Essa desonra vai para o argumento que perde qualquer nuance ou subtileza, ao mesmo tempo que descarta coerência. Zhangke Jia é um realizador que sempre olhou o passado e o presente, mas este é o seu primeiro esforço no sentido de representar o futuro e o resultado é um desfile de clichés mal pensados e estilos reacionários. A própria tese que o cineasta está a expor, sobre a hegemonia económica da China face aos EUA, começa a tornar-se confusa, ao mesmo tempo que o diálogo se torna num espetáculo de grosseira verbalidade e exposição em demasia. Isto deve-se certamente a uma falta de domínio da língua inglesa da parte de Jia Zhangke, mas, se esse é o caso, por que razão decidiu ele construir assim o último capítulo do seu filme?

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Como já foi anteriormente referido, Se As Montanhas Se Afastam tem a sorte de terminar da melhor maneira possível, com um retorno a Tao e uma repetição musical. No seu início, o filme abriu com um grupo de jovens a dançarem ao som de “Go West” dos Pet Shop Boys, uma cover que se tornou num hino do Ocidente nos últimos anos da Guerra Fria. Aí, a esperança de um futuro risonho borbulhava nos corpos em movimento alegre, mas essa lembrança ganha um gosto amargo quando, no final, ao invés de um grupo, temos apenas Tao envelhecida, e, no lugar de um interior caloroso, temos um descampado durante um nevão. O contraste entre estas imagens é uma golpada de génio cinematográfico que, depois do desastroso terceiro ato, relembra a audiência das maravilhas de que este autor e este filme são capazes de conjurar.

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O MELHOR: O leitmotiv de “Go West”, tão triunfante num momento e tão devastador noutro.

O PIOR: A totalidade do terceiro capítulo, especialmente a prestação do juvenil protagonista.


 

Título Original: Shan he gu ren
Realizador:  Jia Zhangke
Elenco: Zhao Tao, Zhang Yi, Liang Jingdong, Dong Zijian
Midas Filmes | Drama, Romance, Ficção-Científica | 2015 | 131 min

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