Entre a transcendência de “Sirât” e o realismo sombrio de “Dossier 137” | Diário do Festival de Cannes 2025 (Dia 5)
Nas projecções de ontem da Competição Oficial de Cannes 2025, destacam-se dois filmes pela força do seu cinema e pela forma como dialogam com o mundo contemporâneo: Sirât, de Oliver Laxe, uma experiência sensorial e espiritual em pleno deserto marroquino; e Dossier 137, de Dominik Moll, um thriller sóbrio sobre abuso de poder e trauma institucional. Em mais um diário da Croisette, cruzamos dois olhares distintos sobre o ser humano em situações-limite — e talvez já esteja aqui, em ambos uma Palma de Ouro à vista.
Entre o céu e a areia, pode definir este hipnotizante Sirât, de Oliver Laxe. Depois de ter conquistado Cannes com Mimosas (Grande Prémio da Semana da Crítica 2016) e O Que Arde (Prémio do Júri da Un Certain Regard 2019), o espano-francês Oliver Laxe regressou ou melhor estreia-se na Competição Oficial com Sirât, uma viagem cinematográfica que funde misticismo, natureza e rave culture. Inspirado na ponte mitológica que separa o inferno do paraíso na tradição islâmica, o filme acompanha Luis (o magnético Sergi López) e o seu filho Esteban (o estreante Bruno Núñez) na busca de Mar(ina), a sua outra filha que está desaparecida há meses, supostamente num ‘festival boom’ nas paisagens desérticas de Marrocos. Entretanto reunem-se com um excêntrico grupo de ‘outsiders’ que viajam pelo deserto, em camiões, para organizarem raves.
Um road movie no deserto
Rodado em 16mm, entre Marrocos e Espanha, e produzido pelos irmãos Almodóvar (Pedro e Agustín), Sirât é uma odisseia sensorial marcada pelo rigor formal e por uma espiritualidade subterrânea. A fotografia hipnótica de Mauro Herce transforma a aridez das montanhas do Atlas num palco de revelações interiores, enquanto a banda sonora electrónica, composta por Kangding Ray, mistura batidas tribais e ambientes esotéricos, ecoando a dualidade entre o físico e o metafísico. Entre o transe da música eletrónica e a vastidão hostil da paisagem, a jornada dos protagonistas torna-se uma espécie de purgatório contemporâneo, verdadeiramente surpreendente.
Um filme popular e tribal
Laxe quis criar um filme “popular e tribal”, — partilha às vezes muitas semelhanças com Duna e Mad Max — um cinema espiritual que dialoga com os jovens e com o mal-estar contemporâneo e quase pré-apocalíptico. E fá-lo sem condescendência, com um elenco misto de profissionais e não-atores, onde as imperfeições se tornam beleza e as cicatrizes, comunhão. Sirât tem a força dos mitos e a fragilidade do humano — e isso torna-o já um dos mais sérios candidatos à Palma de Ouro.
Dossier 137, de Dominik Moll: Um thriller político que ecoa além do ecrân
Do místico Sirât para o institucional, Dossier 137 que mergulha nas entranhas da polícia francesa com um olhar crítico e despojado. Dominik Moll, depois do sucesso de A Noite do Dia 12, regressa com um drama seco e inquietante sobre a IGPN, a temida “polícia da polícia”, numa França marcada pela contestação social e pela violência policial, o uso da força acima da proporção necessária e que supostamente deveria causar, o menor dano possível à integridade das pessoas envolvidas. A protagonista, Stéphanie (a notável e sempre discreta Léa Drucker), investiga um disparo de bala de borracha contra um jovem manifestante dos coletes amarelos. O que começa como mais um inquérito, vai transformar-se num confronto ético e existencial. A estrutura opressiva da instituição polícia — filmada com precisão quase documental — vai-se revelando como um labirinto de silêncios, pressões e culpa.
Uma fuga ao sensacionalismo
Moll evita o sensacionalismo e constrói a tensão num registo quase clínico. A montagem é seca, o som é contido, os rostos são mapas de desgaste moral. Dossier 137 funciona como um espelho da Europa em crise, onde a legalidade nem sempre coincide com a justiça, e onde o trauma se dilui na rotina dos procedimentos.
Dois cinemas, dois mundos — e a mesma inquietação
Sirât e Dossier 137 representam dois polos distintos da criação cinematográfica contemporânea: o primeiro procura a transcendência; o segundo, a lucidez crítica. Um conduz-nos ao deserto interior, o outro obriga-nos a enfrentar o peso das instituições. Mas ambos partilham um mesmo gesto: o de filmar o ser humano em estado de vulnerabilidade. Em Cannes, onde o gesto artístico é também político, estes dois filmes simbolizam as perguntas que o cinema de 2025 se coloca: como resistir, como persistir, como viver? E se a Palma de Ouro for um reflexo dessas questões, Sirât poderá ser mais do que uma visão — poderá ser até uma resposta.
JVM