"Spencer" | © Cinemundo

Spencer | Figura de Estilo

Em “Spencer,” Kristen Stewart dá vida à Princesa Diana, grande ícone da moda nos anos 80 e 90 do século passado. Para interpretar o papel, ela vestiu uma infinidade de figurinos ostentosos, concebidos pela figurinista vencedora de dois Óscares, Jacqueline Durran. Estará a designer a caminho do terceiro galardão?

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Julgando pelas críticas internacionais, “Spencer” é um filme destinado a gerar controvérsia e a dividir audiências. Até aqui, entre a equipa da Magazine.HD, existe uma enorme pluralidade de opiniões. Para alguns, trata-se de uma obra-prima. Para outros, a última experiência de Pablo Larraín não é mais que um fracasso faustoso. Dito isto, até no olho de uma tempestade de visões antagónicas sobre o mesmo projeto, alguns elementos emergem como ímanes de consenso. No caso desta fita particular, a conceção visual do filme, pelo menos no que se refere ao design, tem sido muito elogiada, até por aqueles que detestam o resto do trabalho.

Ainda nesse paradigma, os figurinos têm sido especialmente aclamados, revelando serem aquela que é quiçá a faceta mais unanimemente celebrada de “Spencer”. Em certa medida, é fácil entender as razões para tal. Mesmo quando os objetivos do filme transcendem o bom gosto, há uma solidez estética no seu guarda-roupa. O melodrama pode irritar num plano narrativo, mas tende a ser mais fácil de aceitar no panorama da moda. Se alguns dos excessos de Larraín fazem com que muitos torçam o nariz, as indulgências de Durran magoam menos os sentidos e desafiam o espetador sem abrasividade. Por outras palavras, as roupas de “Spencer” são um espetáculo.

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Como já explorámos na nossa análise do filme, esta obra biográfica escolhe o caminho da fantasia para retratar a Princesa Diana. Trata-se de uma espécie de retrato cubista. Larraín e companhia compõem colagens de várias perspetivas sobre o mesmo indivíduo, existindo a fábula dos media, a realidade inacessível, a projeção pública, a atriz e o papel. Essas visões são todas comprimidas numa só, uma multiplicidade dimensional que se mostra em simultâneo, um paradoxo resolvido pelo melodrama cinematográfico. Se Larraín, enquanto realizador, e Kristen Stewart, enquanto intérprete, se guiam por tais preceitos, também o faz Jacqueline Durran.

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Por conseguinte, a versão estilística da Princesa Diana que vemos em “Spencer” é um fenómeno necessariamente performativo, uma impressão imperfeita ao invés da réplica exata. Apesar de ter acesso a vasta documentação sobre o que a Princesa vestiu na vida real, Durran decidiu não ligar em demasia às especificidades do Natal em Sandringham de 1991. Vemos por outros trabalhos como “As Mulherzinhas” e “Anna Karenina”, que a figurinista não privilegia o verismo histórico como regra e “Spencer” não foge a essa realidade. Contudo, existe uma procura pela imersão do espetador, pelo que uma certa verosimilhança tem que ser atingida.

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O equilíbrio é precário e incerto, um problema complicado que Durran resolve com tanto fausto como virtuosismo. Há um imperativo na ordem da vestimenta, um reflexo dramatúrgico do tipo de regimentos proto militares pelos quais a família real britânica segue a tradição. Cada atividade do dia tem um específico traje atribuído, cada segundo planeado por um guião social que torna toda a interação num teatro doméstico. Revisionismos modernos podem ver a moda como elemento de liberação para a Princesa Diana, mas, em “Spencer”, a roupa é mais uma manifestação da gaiola doirada em que a mulher desespera.

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Note-se quanto um colar de pérolas oferecido por Carlos, gémeo de uma prenda dada à amante, se distingue pelo tenor claustrofóbico que traz à ação no ecrã. É um adorno e é uma prisão, uma coleira patriarcal que a serve para visualizar uma subjugação à Coroa. Também evoca um dos muitos fantasmas do filme, sugerindo o famoso pendente de insígnia com que Ana Bolena se exibiu nos seus retratos. Um vestido verde que se combina com o colar é uma mostra de vulnerabilidade impingida por influência alheia. Com a câmara a seguir as costas despidas de Diana, sentimos a sua nudez emocional face ao esquadrão de fuzilamento doméstico.

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Outras peças foram escolhidas com semelhante seriedade, mas menos simbolismo. Acedendo aos arquivos da Chanel graças à relação de Kristen Stewart com a marca, Jacqueline Durran escolheu peças originais de coleções adoradas pela Diana real. Contudo, a escolha não se restringiu a desenhos de 1991. Um casaco vermelho referencia fotos da segunda metade dos anos 90, enquanto algumas joias foram usadas como duplicados do que a Princesa vestiu em viagens oficiais nos primeiros anos do matrimónio. Existe um jogo de iconografia que posiciona a protagonista da história como uma invenção fílmica de uma imaginação contemporânea.

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Por isso mesmo, Durran incluiu elementos do século XXI que Diana jamais vislumbrou. Também se deixou levar pelos excessos fabulísticos de Larraín, mudando criações de Karl Lagerfeld de modo a salientar o dramatismo cinético da imagem. Um vestido comprido, creme com bordadura doirada, teve a sua saia expandida com mais camadas de tule plissado. Como Stewart usa esse traje durante uma porção considerável do filme, o desenho Chanel tornou-se num figurino chave de “Spencer”, uma expressão do absurdo que é a vida enquanto celebridade, enquanto realeza. Vendo a Princesa correndo pelo palácio escuro, quase tropeçando nas enormes expansões de tecido, ela quase parece um pato oscilando com cada passo.

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Outras mostras de figurino travesso, quase cómico, são cartas de amor à loucura criativa do realizador. Num filme sobre monarquia, o fato amarelo com chapéu tricórnio a condizer parece um piscar de olho sobre intentos revolucionários. A figurinista nega tais leituras, chamando-lhe um chapéu de pirata, mas basta olharmos para o toucado de traços setecentistas para ouvirmos a “Marselhesa”. Também os contrastes são tão extremados ao ponto de fazerem rir. Uma fatiota Chanel dentro de um restaurante humilde expõe quão obsceno é o privilégio da Princesa do Povo face ao Povo em si. Também as cores natalícias parecem gozar, sendo este um Natal do inferno para todos os envolvidos.

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É nesse esquema de contrastes entre personagens, que Durran encontra a máxima expressão da heroína alienada. Onde quer que ela esteja, ora entre servos ou realeza, a Princesa Diana de “Spencer” está sempre mal inserida. Ela salta à vista independentemente do contexto social em que se encontra. Somente no sonho e na fantasia é que o devaneio estilístico faz sentido. Quiçá por isso mesmo, o ponto de viragem no filme e no ato de personagem, toma a forma de uma montagem desenfreada que é tanto melodrama como é montra de alta-costura. Numa dança febril, Durran, Larraín e Stewart, desenham a alucinação de uma Princesa livre, por fim.

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Ou talvez seja um exorcismo. Há fantasmas nesta montagem, mas todos têm a cara de Diana. O figurino é o que define a figura como fenómeno espectral num drama biográfico extravasado de terror psicológico. O vestido de noiva icónico aparece, assim como as joias mais famosas, as tiaras e os sapatos de salto alto. Também vemos Stewart em vários vestidos pretos, um luto luxuoso que quase nos surge como a imagem de uma pessoa a chorar a perda de si mesma, de quem em tempos foi e já não é. Trata-se de uma obra-prima de figurinismo, uma explosão de estilo sem limites nem estribeiras. Mesmo com uma carreira tão rica, Durran pode assinalar “Spencer” como um dos seus melhores trabalhos.

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Será que Jacqueline Durran vai ganhar um terceiro Óscar por “Spencer”?


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