Eraserhead

Turno da Noite | “Eraserhead” (1977), David Lynch

“No Céu, tudo é perfeito”, canta Lady in the Radiator. “Eraserhead”, a primeira longa-metragem de David Lynch e uma representação simbólica do subconsciente, é um dos mais célebres Midnight Movies e a obra escolhida para inaugurar esta rubrica.

Turno da Noite” é uma rubrica mensal com foco em Midnight Movies, termo utilizado para descrever uma categoria muito peculiar de Cinema que surgiu durante os anos 50, quando estações de televisão locais norte-americanas começaram a exibir filmes de baixo orçamento como late-night programming. Duas décadas mais tarde, sessões de meia-noite de filmes de género já se haviam tornado numa prática comum em alguns centros urbanos, particularmente em Nova Iorque. Este fenómeno cinematográfico tinha como principal objectivo o desenvolvimento de uma audiência exclusiva e assídua, encorajando, simultaneamente, um cenário de contracultura. Entretanto, com o sucesso do musical The Rocky Horror Picture Show (1975) e alterações no sector económico da indústria, os Midnight Movies passaram a ser acolhidos como uma experiência puramente camp, gíria aplicada a uma estética intrinsecamente associada ao mau-gosto e valor irónico, rompendo assim com as percepções modernas do que deve ou não ser considerado “Arte”. Hoje em dia, a expressão “Midnight Movies” é até empregue, por algumas pessoas, como sinónimo de filmes B ou filmes de culto. Definições à parte, todo este movimento de Cinema undeground, assim como a aura que o envolve, continua a ser acarinhado e preservado por grupos específicos de seguidores, sendo que festivais de renome, como Cannes e Sundance, dedicam todos os anos uma fracção do seu cartaz a este estilo de Cinema.

Dentro deste contexto insere-se Eraserhead (1977), a primeira longa-metragem do conceituado realizador David Lynch e um intrigante ponto de partida para esta rubrica. Muito antes de Mulholland Drive (2001) e Inland Empire (2006), já o norte-americano (que viu, recentemente, a sua exposição fotográfica, de nome “Small Stories”, ser exibida no Museu de Artes de Sintra, no âmbito do Lisbon & Sintra Film Festival) explorava o subconsciente da mente humana, conduzido por medos e instintos primordiais, nesta obra filmada a preto-e-branco da década de 70, que combina, de modo sofisticado, o característico ritmo contemplativo do Film noir com o tumulto gradual usualmente presente nos guiões de Cinema Fantástico. Mas qual a história por detrás de Eraserhead, porque razão se tornou este filme num dos mais prestigiosos exemplares de Midnight Movies (ainda hoje analisado, frequentemente, por estudantes de Cinema e aficionados do género) e que mudanças de perspectiva ocorreram desde o seu lançamento, em 1977, até aos tempos actuais?

Reacções imprevisíveis, diálogos anormalmente espaçados e Surrealismo como movimento artístico são algumas das características do cinema de David Lynch presentes nesta cena.

Em 1970, David Lynch, estudante da AFI‘s Center for Advanced Film Studies e que, até então, só contava com algumas curtas-metragens no seu currículo (como The Grandmother The Alphabet, ambas incluídas no documentário de 2002, The Short Films of David Lynch), candidatou-se a um fundo desta mesma instituição, tendo o jovem realizador apresentado o guião para um projecto cinematográfico denominado Gardenback. No entanto, tal aconteceu numa época em que a AFI se encontrava de “pé-atrás” quanto ao investimento em longas-metragens. Lynch viu-se obrigado a alterar a sua proposta inicial e assim surgiu Eraserhead, inicialmente representado por um guião de 22 páginas. Mais tarde, o realizador voltou a negociar com a AFI de modo a que o seu projecto pudesse obter o tão pretendido estatuto de “longa-metragem” e o guião acabou por ser duplicado em número de páginas.

Já que falamos de “guião”, parece-me um momento adequado para introduzir (“tentar”, na verdade) a sinopse de Eraserhead (no seu sentido mais literal) aos leitores menos familiarizados com este Midnight Movie, de modo a que possam entender algumas referências estabelecidas ao longa da rubrica – numa sociedade pós-apocalíptica, o desconsolado Henry Spencer (Jack Nance) trabalha numa fábrica e usufrui de um período de férias, quando descobre que a sua namorada, Mary X (Charlotte Stewart), deu à luz um bebé que se assemelha a uma criatura horrivelmente deformada (carinhosamente apelidado de “Spike” por Jack Nance). Mary X e o recém-nascido mudam-se para o pequeno apartamento de Henry, mas os constantes gemidos de Spike e a sua incessante dependência dos pais levam o casal a um estado psicológico que se aproxima da insanidade.

Voltando agora à pré-produção de Eraserhead; o filme recebeu, então, os primeiros fundos da AFI, um orçamento aprovado de cerca de 5.000 dólares. Os recursos financeiros disponibilizados eram bastante limitados e Lynch teve de recorrer a uma perspicaz e meticulosa gestão de fundos monetários, aproveitamento de oportunidades e auxílio comunitário de modo a conseguir produzir a sua primeira longa-metragem. Com apenas 100 dólares, o artista adquiriu vários apartamentos de um estúdio que se encontrava prestes a fechar, transformando-os em sets soundstages. Não só a totalidade dos cenários foram construídos no interior de garagens e estábulos, como grande parte dos efeitos sonoros foram criados pela própria equipa. O guarda-roupa do filme foi oferecido pelas instituições Goodwill e The Salvation Army. O grupo de actores consistia, principalmente, de familiares e amigos próximos de Lynch. Alguns adereços foram até fornecidos pela tia da actriz Catherine Coulson, que era designer e tinha em sua posse muitos materiais que acabaram por contribuir, de forma significativa, para a “estética única” do filme. Durante este período de pré-produção, concebeu-se também o infame Bebé/Spike, uma das componentes mais características não só de Eraserhead, como do catálogo cinematográfico integral de Lynch, sendo que as informações disponíveis relativas ao processo de fabricação e aspecto criativo almejados pelo realizador são de número muito reduzido, sustentando, assim, o misticismo por detrás da criatura.

A visão niilista de Henry (Jack Nance) do ciclo da vida e a repugnância que Spike lhe causa motivam um clímax grotesco e perturbador.

No final desta mesma década, mais precisamente no dia 19 de Março de 1977, Eraserhead foi, pela primeira vez, exibido no festival de cinema Filmex, em Los Angeles. Na noite de abertura, 25 pessoas viram o filme. 24 pessoas viram o filme na noite seguinte. Apesar destes resultados, Ben Barelholtz, distribuidor da empresa Libra Films International persuadiu o cinema local Cinema Village a exibir o filme como sessão de meia-noite, onde permaneceu durante um ano. De seguida, Eraserhead percorreu um circuito de cinemas e festivais (Waverly Cinema, em Nova Iorque, por 99 semanas; Roxie Theater, em São Francisco, por 1 ano; Nuart Theater, em Los Angeles, por 3 anos), sempre exibido como Midnight Movie e conseguindo excelentes receitas de bilheteira para a sua dimensão.

Lançado no mesmo ano que o primeiro filme da saga Star WarsEraserhead oferecia uma experiência singular ao público alternativo que suspirava por um tipo de cinema inovador e fora-do-comum. Este factor foi, obviamente, aproveitado pela dupla Lynch-Barelholtz para moldar Eraserhead como um filme de culto, exercício cinematográfico viciante e de análise obrigatória, severamente respeitado dentro dos círculos vanguardistas. Os fãs de filmes de terror entusiasmaram-se com os bizarros efeitos especiais e sofisticado humor negro presentes no cinema de Lynch, enquanto que os cineastas com queda pelo Surrealismo deixaram-se levar pela intensa presença do movimento artístico na estrutura de Eraserhead.

O apelo de Eraserhead junto desta audiência permitiu ao filme a rápida obtenção do estatuto de “clássico do género”, capacitando o alcance de um peso histórico nunca antes previsto pelos connoisseurs de Cinema e concedendo a Lynch o despontar de uma carreira de sucesso, abundante em prémios conceituados e menções honrosas.

Nesta cena icónica, Lady in the Radiator (Laurel Near) representa a Morte, escapatória do Inferno em que habita Henry e concepção dos seus pensamentos auto-destrutivos.

O acompanhamento da evolução da opinião da Crítica sobre Eraserhead, progresso paralelo ao crescimento do culto de seguidores e da sua posição de destaque como Midnight Movie, é também um factor relevante e digno de análise. Aquando do seu lançamento, a primeira longa-metragem de Lynch foi maioritariamente reprovada pelos críticos de Cinema e poucos foram os jornalistas que interpretaram Eraserhead como um trabalho avant-garde, excluindo, como referi anteriormente, a possibilidade de o ver tornar-se num marco da História do Cinema. A crítica inicial negativa da Variety é um bom exemplo desta situação, acusando o filme de não passar de um projecto repugnante e de mau-gosto, realizado, unicamente, graças ao auxílio financeiro providenciado pela AFI a Lynch. Todavia, mudanças evidentes na análise ao filme por parte da Crítica Geral já se faziam notar cerca de duas décadas depois, com a quebra de tabus e uma perspectiva moderna sobre o conteúdo explorado em Eraserhead, os métodos seguidos para fazê-lo e o próprio estilo de Cinema. Interessante constatar que, muitas vezes, é necessário tempo para que um filme seja devidamente reconhecido pela Crítica ou público.

Quando Eraserhead de David Lynch foi lançado em 1977 – mais um exemplar dos Midnight Movies dos anos 70 (El Topo, The Rocky Horror Picture Show) que garantiu audiências fanáticas e assíduas – mesmo assim conseguiu destacar-se dos restantes. Possuía cinematografia e banda sonora hipnóticas, imagens bizarras que perturbavam, abalavam e fascinavam audiências. E ainda o fazem. – Michael Wilmington (Chicago Tribune, 1993)

Hoje em dia, apesar da sempre presente associação de Eraserhead ao restrito público dos Midnight Movies, o já mencionado actual estatuto do filme como “clássico do cinema de género”, a atenção cedida ao estudo da sua estrutura interna e externa por escolas de Cinema, o destaque que o seu realizador, David Lynch, assegurou dentro da indústria e a demorada, mas garantida aclamação da Crítica Geral permitiram à obra de 1977 atingir uma audiência mais abrangente e mainstream. O próprio cartaz do filme, elemento promocional de simplicidade artística, mas visualmente poderoso e directamente ligado ao tipo de Cinema em questão, incentivou a criação de inúmeros produtos de marketing bem-sucedidos e expandiu o universo de Eraserhead e David Lynch não só como obra cinematográfica, mas também como negócio.

Para concluir, Eraserhead é um trabalho intemporal. A demonstração primária do que estaria para vir na carreira de um dos mais influentes e estimados realizadores de Cinema de Autor. Um dos pontos mais relevantes da sua filmografia, pela mestria que demonstra no controlo de todos os sectores do projecto, revelando, igualmente, capacidade de adaptação a um orçamento mínimo e na resolução de contrariedades que advém deste cenário. O filme mais Junguiano de Lynch, um ensaio sobre o subconsciente da mente humana, comandado por receios e intuições. Uma antítese da utopia, sem cor, industrial, ocupada por figuras desoladas, agastadas e esmorecidas. A raiz do Sonho, pilar do artista, alimentada por uma atmosfera pesada e sucessivos visuais reminiscentes de um pesadelo. Alegoria das relações sociais e amorosas, o medo ligado à paternidade, distúrbios mentais. A vida e a morte como forma de libertação. Eraserhead simboliza tudo isto e muito mais. O primeiro autêntico contacto com uma mente genial, ocultada por ambiguidades que fomentam a discussão. Um Midnight Movie que reflecte o mais puro prazer em doar uma contribuição de excelência para a Sétima Arte.

TRAILER | ERASERHEAD (1977), DAVID LYNCH

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