"Universal Language" | © Metafilms

Universal Language, a Crítica | O IndieLisboa começa entre Winnipeg e Teerão

A nova edição do IndieLisboa arranca com “Universal Language” como sua sessão de abertura. A obra de Matthew Rankin, também conhecida como “Une Langue Universelle” e “Āvāz-e bughalamun,” é um dos melhores filmes do ano!

Em tempos, Mark Twain afirmou que não existem ideias originais. Segundo o autor americano, somente temos a possibilidade de tornar conceitos velhos em algo novo, como peças de vidro colorido combinados de modo diferente para vitrais nunca antes vistos. Quer concordem com este pensamento ou não, será difícil refutar a sua totalidade. E não se trata de um julgamento negativo, convém dizer. Afinal, quanta arte não usa a citação para conceber milagres? Quanta criatividade não se revela na reinterpretação daquilo que já foi por mil vezes explorado? Quanta inovação não se descobre na subversão daquilo que já temos?

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O passado é a base do nosso presente e o combustível que nos permite avançar para o futuro. Assim é na História, na sociedade, na cultura de modo geral, e até no cinema, em jeito particular. Neste último, fala-se muito das influências que alguns cineastas têm sobre os que vêm depois, canibalizando o seu legado num gesto que alguns assumem como cópia sem valor. Outros, pelo contrário, poderão ver aí o caminho para o sublime e para a continuação de tradições que não devem morrer com aqueles que a originaram. Falamos de tudo isto porque, na sua essência, “Universal Language” de Matthew Rankin é um jogo de citação, quase uma colagem palimpséstica.

O IndieLisboa abre com obra-prima canadiana.

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Estes jogos não são nenhuma novidade para este realizador. Fiel às suas origens, Rankin primeiro alcançou renome internacional com “The Twentieth Century,” uma estranha criatura que parecia reaproveitar as ideias de artifício desavergonhado e arcaísmos técnicos com que Guy Maddin fez carreira. Afinal, tanto Rankin como Maddin são de Winnipeg, no Canadá, forjando uma espécie de continuidade artística. Mas o homem mais jovem não se ficou por aí. No seguimento dessa sátira política com estéticas roubadas ao mudo e ao experimental, Matthew Rankin agora retrata a sua cidade natal do Manitoba através do prisma de outras génios cinematográficos. E nessa brincadeira, ele descobre e apresenta-nos os fundamentos da sua arte.

A ação decorre algures a Oeste de Montreal e a Leste de Teerão, onde a câmara descobre uma Winnipeg onde a língua franca é o Persa e tudo parece existir fora do tempo, da História, da realidade. Trata-se de um espaço liminar que só poderia materializar-se na imaginação e no cinema, um sonho que, além de todas essas contradições culturais, ainda parece sugerir as estéticas vigentes numa Europa Soviética na segunda metade do século XX. Descrito assim, o mundo de “Universal Language” parece loucura, mas a parte mais ensandecida é quão tudo isso faz sentido quando percecionado consoante as encenações absurdistas de Rankin.


Supostamente, a ideia para a história partiu das memórias de uma avó que, em miúda e na companhia do irmão, terá encontrado uma nota de dois dólares canadianos presa no gelo à beira da estrada. Daí veio uma odisseia infantil, a aventura para liberar o tesouro do seu cárcere gelado. Rankin quereria dramatizar esse conto de infância, apelando à cultura cinematográfica que, para si, melhor captura a vida e a perspetiva das crianças – o cinema vanguardista iraniano dos anos 70, 80 e 90, com especial ênfase na obra de Abbas Kiarostami. Por isso, “Universal Language” presta homenagem ao mestre persa e repensa o ontem canadiano à imagem dos seus filmes mais celebrados.

Só que Rankin não se ficou pela mera citação em jeito de celebração. De facto, foi mais longe, usando essa oportunidade para combinar os valores da Nova Onda Iraniana com outras referências de peso, incluindo a mise-en-scène cómica de Jacques Tati, a melancolia de cara severa presente nos trabalhos de Roy Andersson, a contemplação de Chantal Akerman, o sentido de humor dos Irmãos Marx, as cores de Wes Anderson, e tanto mais. Assim surge um mundo novo e uma linguagem quimérica que se faz de especificidades ínfimas, tornadas universais no templo do cinema. Na verdade, a linguagem universal a que o título inglês e francófono se refere será mesmo a sétima arte a que Rankin dedica a vida.

Pensar no cinema como linguagem universal.

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© Metafilms

Dito isso, seria erróneo falar de “Universal Language” como um trabalho de referencialidade extrema onde o valor único se encontra no prazer intelectual de reconhecer as origens do estilo e imagens. Apesar de tudo, Matthew Rankin é um cineasta de enorme sinceridade, arriscando o sentimentalismo na procura pela conexão com o espectador. Além do mais, as suas influências servem para articular observações sociais ferozes, críticas escondidas no meio das piadas absurdistas deste Canadá transplantado do Médio Oriente. Nomeadamente, Rankin examina as contradições identitárias que separam o Quebeque e a parte anglófona do seu país, tratando a fronteira cultural como a maior piada de todas.

Não que faltem piadas à fita. Desde as suas primeiras cenas, um vídeo educacional seguido do diálogo em sala de aula, que “Universal Language” demonstra como os ensinamentos desses artistas referenciados se podem conjugar para fazer valente comédia. Chega-se ao ponto em que o próprio enquadramento é um piscar de olho ao espectador, chamando a atenção para a parvoíce que sai da boca das personagens e o modo como ninguém parece reagir apropriadamente ao mundo endoidecido em que se encontram. O escárnio ausente, o que fica é uma apreciação pelos humores de cada dia, aquelas farsas inerentes à condição humana que todos vivemos.

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A fotografia geometrizada de Isabelle Stachtchenko e os cenários de Louisa Schabas usam a arquitetura brutalista de Winnipeg como personagem central às histórias cruzadas dos dois miúdos com a nota congelada e um guia turístico cuja viagem pessoal o leva a dimensões líricas. Ao mesmo tempo, a montagem de Xi Feng torna tudo numa sinfonia de ritmos precisos, onde o riso e deleite da audiência é o instrumento mais sonoro de todos. De novo, a descrição parece apontar para algo erudito e inacessível, mas a realidade é hilariante e despretensiosa, um cinema aberto e convidativo que nos quer dar um abraço quente, um reconforto em celuloide a 24 fotogramas por segundo. Em suma, não havia melhor maneira de começar uma festa do cinema como o IndieLisboa. E não admira nada que “Universal Language” tenha vindo a ganhar fãs desde a sua estreia em Cannes no ano passado, chegando mesmo a ser o candidato canadiano para o Óscar de Melhor Filme Internacional.

Universal Language, a Crítica
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Movie title: Une Langue Universelle

Date published: 1 de May de 2025

Country: Canadá

Duration: 89 min.

Director(s): Matthew Rankin

Actor(s): Matthew Rankin, Pirouz Nemati, Bernard Arene, Baharan Bani Ahmadi, Danielle Fichaud, Denis Houle, Sobhan Javadi, Sahar Mofidi, Bahram Nabatian, Mani Soleymanlou, Annie St-Pierre, Aonan Yang

Genre: Comédia, Drama, 2024

  • Cláudio Alves - 95

CONCLUSÃO:

Numa fantasia multicultural e transnacional, Matthew Rankin propõe o cinema como linguagem universal capaz de unir mundos díspares e tornar as maiores especificidades em experiências que todos conseguem entender, a nível cerebral e também no âmago do seu ser. “Universal Language” pode parecer um exercício em híper-formalismo, mas as suas qualidades vão além do primor audiovisual dos mecanismos em cena. Trata-se de um milagre cinematográfico do mais alto gabarito.

O MELHOR: Os ritmos cómicos, os laivos absurdistas, a estranha beleza desta Winnipeg onde se fala persa e o Tim Hortons serve chá doce do Irão. Ah, os perus também!

O PIOR: Nada a apontar.

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