Retrospetiva Jane Campion | Um Anjo à Minha Mesa (1990)

Um Anjo à Minha Mesa é uma obra extremamente importante na filmografia de Jane Campion pois representa um incontestável ponto de viragem no seu desenvolvimento enquanto cineasta.

 


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jane campion um anjo à minha mesa

Um Anjo à Minha Mesa de 1990 é uma adaptação das três autobiografias da autora neozelandesa Janet Frame. Retrata a sua infância e adolescência marcadas por uma destrutiva ansiedade social, os seus estudos universitários, a sua infeliz carreira de professora, os oito anos que esteve presa num instituto psiquiátrico depois de ser erroneamente diagnosticada com esquizofrenia e o período da sua vida que Frame passou, após a publicação dos seus primeiros livros, a viajar pela Europa a que depois se seguiu um regresso à Nova Zelândia onde se tornou uma autora respeitada e ícone nacional. Como tal, Um Anjo à Minha Mesa é o primeiro filme de Campion baseado em factos verídicos, a sua primeira adaptação literária, a sua primeira longa-metragem focada numa perspetiva feminina individual e o seu primeiro filme de época.

Este é, efetivamente, o começo de uma nova era na carreira da realizadora após o sucesso de Sweetie ter constituído um culminar do discurso artístico que tinha começado a desenvolver com as suas primeiras curtas-metragens estudantis. É por isso particularmente interessante que o desenvolvimento do projeto esteja tão ligado aos anos de Campion na escola de cinema, onde encontrou e se apaixonou com a obra de Frame. Foi logo aí que se começou a trabalhar a ideia de uma adaptação das autobiografias da autora, que Campion originalmente tinha edificado como uma minissérie televisiva pois, para si, a intimidade solitária possibilitada pela televisão seria ideal para esta figura. No entanto, tal como aconteceu com a sua primeira longa-metragem, assim que os produtores e distribuidores do projeto se aperceberam do que tinham em mãos, a realizadora foi convencida a reformular o trabalho para o cinema. Apesar de muitas dúvidas, especialmente em relação à natureza televisual das imagens, Campion consentiu e o filme foi enviado para o festival de Veneza, onde ganhou sete prémios.

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De facto, é fácil perceber a ambivalência de Campion em relação ao seu filme. Veja-se como a narrativa é ilustrada através de grandes e médios planos, com a figura de Frame central à maioria das composições. Este é um estilo ideal para um estudo de personagem a ser transmitido no pequeno formato da televisão mas é mais estranho para o grande ecrã. Felizmente, o trabalho do diretor de fotografia Stuart Dryburgh, do cenógrafo Grant Major e da figurinista Glenys Jackson apagam quaisquer ideias de menoridade estética, conjurando um discurso visual cinematicamente modesto mas bem ligado ao modo como Campion aborda o seu estudo de Janet Frame. O uso de cor, por exemplo, é magistral na sua inclusão de repentinas pinceladas de saturação para alienar Janet das pessoas à sua volta, ao mesmo tempo que sugere os estímulos externos que alimentam e moldam a imaginação da protagonista.

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Mesmo que só as primeiras duas cenas do filme mostrem o tipo de experimentação imagética que tinha até então caracterizado o trabalho de Jane Campion, seria erróneo julgar que esta nova abordagem é necessariamente inferior. Até a centralização composicional da figura da protagonista representa uma inteligente tradução dramatúrgica do modo como Janet Frame se encara a si mesma dentro do filme onde, por muito alienada que ela seja, é sempre uma mulher bem ciente de quem é e das suas ambições. Outros mecanismos ainda, como o leitmotiv visual de Janet a tentar observar algo que lhe está a ser bloqueado por obstáculos humanos como mãos ou corpos desfocados, fazem com que Um Anjo à Minha Mesa consiga algo quase único no cinema: a ilustração do processo criativo de uma escritora através do uso exclusivo de elementos visuais.

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Isso não quer, contudo, dizer que Um Anjo à Minha Mesa é um filme biográfico interessado na figura de Janet Frame somente enquanto artista respeitada e figura pública. Pelo contrário, Campion parece infinitamente mais interessada na mulher do que na autora. A sua forma de ver o mundo e processo criativo fazem parte da identidade pessoal e é por isso que estão presentes no filme e não devido a qualquer tipo de impulso elegíaco. Nesse sentido, esta obra está mais próxima de semelhantes biografias cinematicamente impressionistas como Mr. Turner de Mike Leigh ou Embriagado de Mulheres e de Pintura de Kwon-taek Im, onde os ritmos da vida humana não são subjugados a modelos dramáticos e narrativos, mas simplesmente apresentados como algo fluido e quase acidental. Na sua crítica deste filme, o célebre Roger Ebert fez uma excelente caracterização dessa abordagem, descrevendo a qualidade biográfica do filme como “a simples documentação de uma vida tal como ela é vivida”.

Muita desta qualidade se deve ao modo como a argumentista Laura Jones adaptou os textos de Frame. Apesar de estar partido em três episódios, Um Anjo à Minha Mesa não tem uma estrutura clássica de três atos. Na verdade, o seu último episódio tem essa estruturação, enquanto o segundo é mais bifurcado e o primeiro assemelha-se a uma manta de retalhos cronologicamente exibidos sem nenhuma orientação dramática. Ao mesmo tempo que isso ocorre a um nível macro, no registo micro das cenas individuais, existe subtil fluidez no modo como a personagem vê o mundo e com ele se relaciona. Como estamos num filme de Campion, momentos e informações fulcrais são-nos obsessivamente ocultados, mas não é difícil testemunhar, por exemplo, como Janet vai evoluindo no que diz respeito aos seus desejos sexuais ou ao seu conforto com o próprio corpo. De alguém que parece preso num invólucro físico que não lhe pertence, ela torna-se numa jovem cujos olhos envergonhadamente erotizam o corpo de um professor, até ser uma mulher que explora o potencial do seu corpo para o prazer ao lado de um medíocre poeta americano.

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Uma das facetas mais interessantes do filme e seu subtil desenvolvimento de personagem, é o modo como a constante condição de “estranha” é simultaneamente uma dolorosa aflição e um privilégio. As três atrizes que interpretam Janet em diferentes fases da vida são fulcrais na transmissão desta ideia, especialmente Kerry Fox que, ao interpretar a versão adulta da autora, é quem tem mais tempo em cena. É óbvio quão solitária Janet é, mesmo quando está rodeada de pessoas, e quão a pressão de ser “normal” a afeta e pesa sobre os seus ombros. Ao mesmo tempo, essa alienação da sociedade dominante permite-lhe tornar-se numa brilhante observadora, e, por muito que o seu olhar assuma recorrentes posições de insegura submissão, existe sempre uma formidável inteligência e reverência nas duas brilhantes safiras dos seus olhos. Trata-se do difícil retrato de alguém que vai progressivamente percebendo que se sente mais confortável na sua própria imaginação que a interagir com o mundo exterior e que, longe de se lamentar, aceita essa verdade sobre si mesma.

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Com a sua atitude antissocial, sua evolução pessoal e eventual libertação das exigências da sociedade patriarcal, Janet Frame é o protótipo da heroína típica do cinema de Jane Campion. Apesar das suas obras anteriores, incluindo as curtas-metragens, já terem sugerido este tipo de repetida figura central, Um Anjo à Minha Mesa foi o primeiro a aperfeiçoar todas estas características essenciais que se viriam a repetir nas heroínas de O Piano, O Retrato de Uma Senhora, Fumo Sagrado, In the Cut e no protagonista masculino de Bright Star. Para além de ser a primeira verdadeira figura deste modelo autoral, Janet Frame ocupa um lugar especial neste cânone de Jane Campion, pois a conclusão da sua história não é marcada por qualquer tipo de ambivalência. Tal como as outras personagens referidas, ela sofre, luta e tem epifanias pessoais, mas, no final, Janet está segura no conhecimento da vocação que lhe irá guiar a vida. Isso sugere que este é, de longe, o filme mais feliz, otimista e esperançoso desta autora, mesmo que, no meio da sua filmografia, seja um dos seus mais injustamente esquecidos.

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Um Anjo à Minha Mesa já despertou fogosas paixões em cinéfilos, críticos e cineastas como Claire Denis que diz que este filme mudou o modo com que ela olhava para o cinema e as possibilidades de expressar uma perspetiva feminina no grande ecrã. Ainda mais impactante e inspirador foi o próximo filme de Jane Campion, cuja análise poderás encontrar na próxima página. 

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