Retrospetiva Jane Campion | Sweetie (1989)

Sweetie foi a primeira longa-metragem que Jane Campion filmou intencionalmente para o grande ecrã e é também uma das suas melhores obras. Em 1989, o filme competiu no Festival de Cannes e, desde então, a própria Jane Campion aponta para o projeto como o filme favorito na sua própria filmografia. Por uma série de razões, esta tragédia sobre uma família disfuncional australiana é também o filme mais pessoal da cineasta, sendo declaradamente dedicado à sua irmã.

 


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sweetie jane campion

Sweetie é um filme com uma estética tão singular que, se estivermos num estado mental particularmente generoso, o poderíamos caracterizar como único. A fotografia de Sally Bongers é rica, por exemplo, em planos picados que tornam uma alcatifa numa maré de flores kitsch. Partes do corpo são constantemente fragmentadas pela composição, conjurando bizarros tableaux de fisicalidade compartimentada. Profundidades de campo variam agressivamente de plano para plano, criando uma atmosfera quase combatente na mera apresentação de imagens. O uso de grandes angulares torna a mais banal situação doméstica num grotesco horror de distorção suburbana. A montagem de Veronika Jenet não atenua a qualidade idiossincrática desta abordagem formal, começando cenas em pormenores desconectados da ação principal e, de um modo geral, subvertendo qualquer tipo de fluidez confortável. Por muito que os espaços de Sweetie possam ser familiares, a sua formalidade torna o quotidiano mais anódino em algo alienante.

Estas escolhas estilísticas não se tratam de nenhuma afetação vácua de Jane Campion, mas sim de uma precisa e cuidada manifestação formal dos temas e conceitos explorados em Sweetie. Na verdade, este filme de 1989 foi uma espécie de culminar da primeira fase da carreira e percurso artístico da cineasta, que iria mudar drasticamente no ano seguinte com o seu próximo projeto. Poderíamos mesmo dizer que, mais do que qualquer outra obra no cânone de Campion, Sweetie assemelha-se imenso a An Exercise in Discipline: Peel, a sua primeira curta-metragem, onde a realizadora já tinha começado a explorar muitas das técnicas e mecanismos que teriam a sua apoteose no filme de 1989. Tal como nessa curta, Campion subverte o quotidiano familiar através de uma acutilante fusão de perspetivas díspares num só discurso estético e de uma violenta reticência expositiva, como que caracterizando as suas personagens através da falta de informação caracterizante.

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Kay é o máximo exponente dessa bizarra técnica de construção de personagem. Ela é um vácuo emocional incapaz de manter qualquer tipo de conexão com outro ser humano apesar de parecer sempre desejar isso mesmo com toda a força do seu ser. Rapidamente nos apercebemos que a linguagem visual do filme traduz bem o modo desconexo como esta mulher olha para o mundo, vendo nele uma constante fonte de incompreensível estranheza. Para Kay, o seu próprio destino é algo completamente fora do seu controlo, de tal modo que, quando uma vidente lhe descreve o homem que lhe vai mudar a vida, ela decide seduzir o noivo de uma colega de trabalho sem qualquer tipo de dúvida moral. Literalmente ela tem relações sexuais com o homem, aos pés da sua noiva.

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Não se preocupando em estabelecer a relação amorosa que une Kay e o seu novo apaixonado, Campion passa do primeiro encontro do casal para treze meses depois num gesto de estonteante audácia. Agora eles vivem juntos e, pela sua parte, o namorado de Kay parece perfeitamente apaixonado por ela que, pelo contrário, se mostra cada dia mais frígida e emocionalmente reservada. Quando uma doença contagiosa a obriga a ficar isolada num quarto separada do companheiro, é impossível não vermos algum alívio, ou mesmo felicidade, nas reações de Kay. Esta situação é um barril de pólvora dramático e Jane Campion não demora muito a lhe atirar umas quantas faíscas incendiárias sob a forma de três figuras perturbadoras. Falamos do pai de Kay, que foi agora expulso de casa pela esposa que quer o divórcio, a irmã da protagonista, Dawn, e o seu namorado.

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Dawn, mais conhecida como Sweetie, é a principal figura do filme, sendo uma presença de monstruoso egoísmo, quase animalesca no seu comportamento. Se Kay é um poço de severos silêncios e corrosiva inação, a irmã, que sempre foi a preferida do pai, é um furacão de atividade caótica com o apetite sexual de uma ninfomaníaca e a maturidade de uma criança de dez anos. Alegadamente, sonha ser cantora e, para si, as pessoas que a rodeiam servem apenas para saciar os seus apetites e a ajudarem a tornar as suas fantasias em realidades. Dawn é tão egocêntrica que não consegue odiar quem quer que seja, ao contrário de Kay, que detesta a irmã com um fervor doentio. Mesmo em termos visuais e performativos, elas são opostos. Com a sua figura delgada e aparente fragilidade física, Karen Colston interpreta Kay como uma observadora passiva, quase vazia a não ser quando os seus olhos se enchem com o brilho do ódio e da repulsa. Em contraste, Geneviève Lemon dá a Dawn a fisicalidade de um elefante numa loja de porcelanas e nunca lima as arestas da sua personagem numa vã tentativa de apelar à simpatia da audiência.

De facto, Jane Campion nunca tenta pedir simpatia ao seu público. No entanto, também nunca demonstra algo mais malévolo que pura compaixão com as suas personagens que são tão incapazes de se entenderem uns aos outros, como os espetadores são incapazes de as compreender. Kay nunca deixa de ser uma cifra, mesmo para o seu namorado, para o pai negligente e ainda mais para Dawn que não mostra qualquer interesse em resolver o enigma da irmã. A impossibilidade de estas duas mulheres se compreenderem é efetivamente a força que define toda a construção de Sweetie. Mesmo aquele chocante salto temporal, que nos rouba o desenvolvimento do romance entre Kay e o seu companheiro e assim nos impede de perceber as atitudes subsequentes da protagonista, é um reflexo deste diabólico isolamento sentido pelas irmãs, pelas pessoas que a rodeiam e, talvez, por todos os seres humanos dentro e fora dos filmes de Jane Campion.

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No final, quando Dawn sofre as hediondas consequências dos seus atos, a realizadora leva estas barreiras de perceção humana aos seus extremos narrativos. Kay, por muito horrível que essa ideia possa ser, parece ver na desgraça da irmã a sua maior e muito necessária catarse emocional e Campion nunca vilifica ou julga esta atitude. No entanto, a realizadora, que também escreveu o argumento original do filme, encerra Sweetie com o pai das duas irmãs. Destroçado com o que aconteceu a Dawn, ele conjura uma imagem mental da sua adorada filha em criança, feliz e inocente. Mesmo depois de tudo o que aconteceu, este homem não é capaz de encarar a realidade monstruosa da sua filha, conseguindo apenas relacionar-se com uma ficção por si mesmo criada, uma fantasia nostálgica que não existe fora do sonho.

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As pessoas estão sempre sozinhas e, na realidade, nunca se podem compreender totalmente umas às outras. Isto é que Campion parece querer dizer com Sweetie e com grande parte da sua filmografia. Apesar disso, ela não vê ou mostra qualquer tipo de horror existencialista nesta ideia. Pelo contrário, a cineasta apela à compaixão humana. Kay nem sequer se consegue relacionar com o mundo físico em que habita e Dawn não existe na mesma realidade que os outros, mas não merecem, por isso, ser rejeitadas. Uma artista fortemente humanista, Jane Campion parece dizer que a chave para a felicidade é simplesmente aceitar as idiossincrasias uns dos outros, por muito difícil que essa proposta nos possa parecer. No final, tal como Campion fez em Sweetie, talvez consigamos até encontrar algo belo e transcendente na incompreensível bizarria das outras pessoas que não nós mesmos.

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Apesar da sua formalidade alienante (a estranheza do mundo visto por Kate e o colorido grotesco de Dawn) e da sua narrativa cruel, Sweetie tem uma conclusão concetual onde brilham alguns raios de esperança. Podemos dizer o mesmo do próximo filme de Jane Campion, em que a cineasta vai dar início a uma nova fase da sua áurea carreira.


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