14º IndieLisboa | Mister Universo, em análise

Mister Universo é uma exploração do moribundo mundo do circo tradicional cheia de melancolia e sinceridade humanista, que ocasionalmente invoca o espectro de Fellini.

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Desde La Pivelina e The Shine of a Day, que a dupla de realizadores Tizza Covi e Rainer Frimmel tem vindo a explorar o mundo do circo através de métodos realistas que fundem o documentário e a narrativa fictícia com elegante leveza e jocosidade. Mister Universo representa a terceira entrada nesta série temática, chegando mesmo a revisitar uma das personagens secundárias do primeiro filme, Tairo Caroli. Quando o conhecemos em La Pivelina ele era apenas um exemplo da geração ainda jovem e infantil que estava a crescer seguindo as pisadas dos seus pais, mas agora deparamo-nos com ele já adulto e a trabalhar como um domador de feras. Como é habitual no repertório destes cineastas, Tairo interpreta-se a si mesmo e os espaços visitados no filme são os genuínos cenários da vida deste artista circense.

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Apesar do seu interesse no mundo do circo, os filmes de Covi e Frimmel raramente deixam que a sua câmara contemple os espetáculos dentro das grandes tendas coloridas. Pelo contrário, eles focam as suas explorações com ares de neorrealismo no quotidiano que constitui a sombra ignorada da fantasia circense. Nesse contexto, eles descobrem a melancolia de um mundo povoado por pessoas cansadas e bem cientes da sua progressiva obsolescência na contemporaneidade. Como elegias coloridas, estes filmes funcionam como celebrações de corpos moribundos e sonhos há muito esquecidos, retratos humanistas e empáticos daqueles que o tempo não perdoou na sua implacável passagem e que, depois de dedicarem a vida ao entretenimento dos outros, se vêm agora sozinhos e sem propósito.

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Tudo isso é verdade, mas Mister Universo não se trata de nenhuma documentação sufocante de miserabilismos sem fim. De facto, apesar da consistente leveza tonal do projeto ser uma inegável mais-valia, uma das maiores marcas de esforço do filme vem sob a  forma da convoluta narrativa que o argumento de Tizza Covi insiste em impor sobre a observação quase antropológica de Mister Universo. Basicamente, esta é a história de como conflitos com alguns dos seus colegas resultam na vandalização da rulote de Tairo e no desaparecimento do seu adorado amuleto da sorte, uma barra de metal outrora dobrada por Arthur Robin, um detentor do título que dá nome ao filme. Para além da recente morte de um dos seus tigres, a doença de outro e a agressividade de um leão já lhe estarem a causar problemas (e a manifestar símbolos de mortalidade a torto e a direito), esta perda desorienta o domador. A partir daí, o filme desdobra-se numa odisseia sem grande urgência em que Tairo tenta encontrar o paradeiro atual de Robin para que este lhe faça mais um amuleto.

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A viagem do protagonista é rica em divertidas personagens idiossincráticas que dedicaram a vida ao circo ou a outros tipos de entretenimento, como é o caso do tio de Tairo que, na adolescência, alcançou algum sucesso enquanto cantor. A casualidade desses episódios, e o naturalismo documental com que são apresentados, resulta num peculiar fenómeno onde uma premissa narrativa efetivamente tirada dos contos-de-fadas – um jovem tenta encontrar um amuleto mágico – se converte num retrato por acumulação de uma comunidade e cultura no abismo do esquecimento. Uma estrada que parece violar as leis da gravidade e um chimpanzé que já trabalhou com Fellini e Argento trazem algum humor e magia aos procedimentos, mas o fatalismo nascido do sonho é algo impossível de ignorar.

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Quando eventualmente o filme e Tairo chegam ao lar do Mister Universo de outros tempos, o homem que encontram é a sombra envelhecida desse Adónis que em tempos se tornou no primeiro homem preto a alcançar o título. Mesmo assim, há uma jovialidade contagiante na modesta disposição de Robin e sua esposa Lily, que trabalhou com ele nos espetáculos circenses em que o pequeno Tairo recebeu o seu amuleto como presente. Apesar das glórias estarem no passado, este casal não parece mergulhado no desespero existencial que contamina a vida de tantas outras figuras do filme. Quando eles olham para o passado vêm felicidade e alegria, agora presente por meio de objetos que servem tanto de souvenirs como de recetáculos espirituais para a força bruta que os criou. Nesse sentido, mister Universo torna-se, nesta passagem, uma fascinante examinação dos laços que pessoas podem criar com objetos, transcendendo a mera fetichização supersticiosa.

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A narrativa paralela à de Tairo é que está cheia de superstições. Referimo-nos à mini-odissseia de Wendy Weber, uma amiga e colega do domador que tenta encontrar um amuleto substituto para Tairo e livrá-lo do que ela supõe ser mau olhado. Na sua honrosa solidariedade e genuíno afeto, Mister Universo encontra uma alma gémea dentro de si mesmo, uma pessoa que, tal como os realizadores, tem dose inesgotáveis de carinho para com estas figuras do mundo do circo.

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Talvez seja por isso que Tizza Covi e Rainer Frimmel concedem os últimos minutos de Mister Universo ao número contorcionista de Weber, sublinhando nas suas notas derradeiras quão este mundo mágico debaixo das grandes tendas é uma realidade de fantasia e entretenimento nascidos do esforço, dedicação, sofrimento e sacrifício de pessoas reais cuja existência não cessa quando saem da vista dos espetadores. Esta coda também concede ao filme um ponto final em forma de entretenimento simples e inocente, não deixando que a audiência saia do cinema com a sua mente perdida nas profundezas chorosas do luto e da melancolia. Isto é circo e a melhor maneira de celebrarmos os artistas circenses é celebrar o seu ofício, é aplaudir e rir às gargalhadas enquanto ignoramos as lágrimas nos olhos do palhaço.

 

Mister Universo, em análise
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Movie title: Mister Universo

Date published: 14 de May de 2017

Director(s): Tizza Covi, Rainer Frimmel

Actor(s): Tairo Caroli, Wendy Weber, Arthur Robin, Lilly Robin

Genre: Drama, Documentário, 2016, 90 min

  • Claudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO

Mister Universo é uma obra modesta, mas comovente que talvez sofra um pouco pela sua amorfia estrutural, mas compensa com idiossincráticos detalhes humanos, sincera observação melancólica e um equilíbrio tonal que nunca se torna cansativo ou perfuntório.

O MELHOR: As cenas passadas na companhia do Mister Universo e sua esposa.

O PIOR: A natureza inconsequente de todo o projeto é uma possível fragilidade fraturante e o uso de simbolismos gritados não ajuda a situação.

CA

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