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74ª Berlinale | O cinema português está com as Mãos no Fogo

O filme português “Mãos no Fogo” de Margarida Gil foi selecionado para a competição da secção Encounters da 74ª Berlinale – Festival de Cinema de Berlim 2024 e tem estreia oficial no dia 22 de fevereiro. Passa-se na rodagem de um filme, dentro de um outro filme, sobre uma aspirante a realizadora que faz a sua investigação, num filme misterioso que é tributo ao cinema e às origens do Mal. Desvendamos o filme aqui, numa troca de impressões com a realizadora.

Do cinema à literatura e de inspiração na ópera, “Mãos no Fogo”, o novo filme da realizadora portuguesa Margarida Gil, que terá a sua estreia mundial no dia 22 de fevereiro no Festival de Cinema de Berlim 2024, é uma espécie de concílio das artes e uma obra misteriosa e enigmática sobre as raízes do mal, as relações de poder, mas também um “tributo ao cinema” e a sua visão do real. É um filme de matriz experimental que tem todas as características, para estar na secção “Encounters” e entre os candidatos a prémio desta 74ª Berlinale, que se realiza de 14 a 24 de fevereiro próximos.

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É sem dúvida, um bom augúrio “Mãos no Fogo” estar a concurso na mesma secção onde estiveram anteriormente “A Metamorfose dos Pássaros”, de Catarina Vasconcelos, e “Viver Mal”, de João Canijo, uma programação criada para destacar a experimentação e a descoberta de novos valores. Por isso, não deixa de constituir uma excelente surpresa ver Margarida Gil, de 73 anos, — que se estreou nas longas-metragens em 1987 com “Relação Fiel e Verdadeira” e apresentou mais recentemente “Mar” (2018) — concorrer na segunda mais importante competição da Berlinale, ao lado de jovens talentos de várias partes do mundo.

Curiosamente e apesar da sua já longa carreira no cinema é a sua primeira participação numa competição do Festival de Berlim. O filme português é, segundo o diretor artístico da Berlinale, Carlo Chatrian, “um tributo pessoal”, de Margarida Gil ao cinema, mas para nós é muito mais do que isso. O filme é uma adaptação muito livre do conto “A Volta no Parafuso” (ou “Calafrio”), de Henry James, (edição portuguesa da Relógio D’Água), que já deu várias adaptações ao cinema, ao teatro e à ópera. Conta com o mestre Acácio de Almeida na direção de fotografia, logo tem imagens cuidadas, planos rigorosos e quadros assentes numa diversidade de tons cromáticos, que fazem lembrar os filmes de Manoel da Oliveira, além de se passar num tradicional solar do Douro. O elenco é uma combinação de experientes actores e notáveis descobertas: Carolina Campanela, Rita Durão, Adelaide Teixeira, Marcello Urgeghe, Ricardo Aibéo e os jovens Sofia Vilariço, Elgar do Rosário e Sara Santos.




Maos no Fogo
Carolina Campanela, protagonista-narradora que vai rodando o seu documentário. ©ar de filmes/divulgação

O filme incide sobre, “Maria do Mar, uma jovem estudante de cinema, está a acabar um documentário sobre os velhos solares do Douro que servirá para sustentar a sua tese sobre o Real no Cinema. Mar tem uma confiança ilimitada no ‘visível’ e a sua candura, a par da sua ingenuidade, também a inclinam para ver o lado bom das coisas, a beleza da paisagem e o que ainda há de genuíno nas pessoas e seus costumes. Contudo, depressa se aperceberá que o que se vive dentro daquela mansão não é assim tão inocente. Trata-se de uma verdadeira casa de horrores”. A MHD já viu “Mãos no Fogo” fez a sua própria interpretação e falou à distância com a realizadora Margarida Gil, para nos ajudar melhor a ler este filme raro, intimista, misterioso, amoral e até aterrorizante, antes mesmo da sua apresentação e estreia a 22 de fevereiro na 74ª Berlinale. 

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VÊ TRAILER DE “MÃOS NO FOGO”




MHD: Porque foi buscar o romance “A Volta do Parafuso” de Henry James, para se inspirar no seu novo filme?

Margarida Gil: Henry James é um Mestre em criar atmosferas, um mestre da manipulação, por isso há um verdadeiro culto à sua obra. Eu sou uma viciada em H.J. Esta novela, bastante sinistra, foi objeto de inúmeras adaptações que eu não quis ver, para não me influenciar. Benjamim Britten, na ópera, etc… O meu filme teve outros voos, até mim.

MHD: A obra de Henry James tem uma estrutura muito particular, de romance dentro do romance, foi o mesmo que quis fazer com o seu filme? Um filme dentro do filme? 

MG: Não foi por causa do livro. Veio com o personagem do Leonardo, o seu segredo, a sua atividade escondida.

MHD: O filme é efetivamente um tributo ao cinema: “para uns a vida é o cinema, para outros o cinema é a vida”….

MG: Entre outros, sim, o Cinema é um dos principais eixos do filme. Uma jovem realizadora – Carolina Campanela – está a fazer um documentário e o filme segue as suas fixações, encantamentos e frustrações.

Mãos no Fogo
Adelaide Teixeira e Catarina Campanela numa cozinha bem tradicional do Douro. @ar de filmes/divulgação.

MHD: De alguma forma isso está ligado com a tese do Real no cinema, da jovem aspirante a realizadora, que funciona quase a narradora ou condutora da narrativa….? 

MG: O real é uma das suas fixações. Quanto mais o persegue, mais cega fica. Muitas regras e preconceitos, e muita candura também, conjugam-se para ela não ver o que na verdade se passa naquela casa.

MHD: Não deve ser por acaso que ela se chama Maria do Mar???

MG: O nome é uma citação do meu filme MAR.

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MHD: O filme além das referências a Henry James, a dada altura nos diálogos fala-se de Manoel de Oliveira e da Agustina. Além disso, o filme passa-se num grande solar do Douro….o seu filme é realmente além de uma homenagem ao cinema (nas suas diversas vertentes, o documentário [cinema do real] e a ficção) um tributo a estas duas grandes figuras da cultura portuguesa e à sua parceria no cinema português?

MG: Estou a filmar um pouco da zona deles. Admiro imensamente qualquer um dos dois. Acho que ambos gostariam deste filme. Também falo de Buñuel e Michael Powell, meus muito amados realizadores.




Marcelo Urgeghue
Marcelo Urgeghue é Leonardo, (uma espécie de D. Goiovanni), um homem sem idade. ©ar de filmes/divulgação

MHD: “Mãos no Fogo” é de certo modo fragmentado em termos narrativos e muito diferente em relação à conhecida adaptação do romance ao cinema feita por exemplo por Jake Clayton (“Os Inocentes”, [1961] ). Este é um filme, dentro do filme, porém há também outras referências: a D. Giovanni, ao melodrama clássico, fala em Douglas Sirk, a dada altura… 

MG: Como disse, o meu é uma adaptação muito livre, mas penso que há afinidades profundas com o universo de H.J. . D. Giovanni é um referente ao personagem do Leonardo – Marcello Urgeghe – muito explícito na sua amoralidade. Douglas Sirk vem num outro contexto, depreciativo, aliás. Não em relação a ele, um grande realizador, mas sim à jovem realizadora.

MHD: Escapa talvez um pouco a ideia da obra de James que é quase um conto de terror gótico… de fantasmas, embora estejam implícitos o Mal e o medo…embora no fim se aproxime mais…

MG: A questão do Mal é talvez a questão central do filme, e também a do livro de H.J. A suspensão do Mal. Há quem ache que “Mãos no Fogo” é um filme de terror…

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MHD: Há ainda aquela história paralela do homem bruto, interpretado pelo Ricardo Aíbeo, que pressupõe que tem um perfil de violador incestuoso exatamente o oposto do sedutor e subtil Leonardo. Esta história paralela acaba por tornar-se secundária….sem que entendamos muito bem o que representa aquele personagem e a sua influência, na casa no solar. Quer explicar isto melhor?

MG: A personagem de Ricardo Aibéo, pai de Gracinha, a magnifica e comovente Sara, uma descoberta local, é uma espécie de contracampo à amoralidade vigente na casa. A sua filha é a vítima atual. Ele pode ter sido uma vítima também.

Mãos no Fogo
Ricardo Aíbeo, num personagem que não sabemos se é vítima ou ‘carrasco’. @ar de filmes/divulgação.

MHD: A fotografia de “Mãos no Fogo” é lindíssima. Em que medida foi a sua relação e trabalho com o “mestre” Acácio de Almeida — que suponho já vem de longe — e a influência dele neste  “Mãos no Fogo”?

MG: O Acácio, grande director de Fotografia, um amigo que me conhece há longos anos, é um homem de raríssima sensibilidade. Juntos procurámos o tom do filme, claro que o seu trabalho é muito importante no filme. 

Mãos no Fogo
Um extraordinário regresso da Rita Durão na estranha e ambígua preceptora Lou. ©ar de filmes/divulgação

MHD: Os actores são magníficos, a Adelaide Teixeira, o Marcelo Urgeghue, — o homem que não envelhece — por exemplo é talhado para este papel de Leonardo. É também um extraordinário regresso da Rita Durão na estranha e ambígua preceptora Lou. Mas chamaram-me à atenção primeiro as crianças (Sofia Vilariço e Elgar do Rosário) e a jovem Sara Santos. Mas sobretudo a Carolina Campanela, protagonista-narradora que vai rodando o seu documentário à medida que constrói um diário/guião de rodagem. Onde os descobriu?

MG: A Carolina vi-a no Teatro do Bairro, jantámos e percebi logo que era ela. Os outros, todos profissionais e não profissionais, são extraordinários. Assim dá gosto, nunca lhes agradecerei suficientemente a sua entrega, confiança e generosidade. Mas também toda a equipa. Devo ao produtor, Alexandre Oliveira, ter reunido profissionais de primeira água, igualmente empenhados no filme. Acho que isso se vê.

JVM

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