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75º Festival de Cannes | ‘Crimes of the Future’

Em ‘Crimes of the Future’, assistimos a um regresso do ‘mestre’ David Cronenberg à ficção cientifica, num filme que vai convencer os seus admiradores e numa história onde Viggo Mortensen interpreta um ‘artista-performer’, fechado na sua dor, que dá à luz tumores. Um filme sobre a vida e os limites da arte contemporânea.

Depois de mais de uma década dedicada a uma relativa diversificação da sua obra, o veterano realizador canadiano David Cronenberg, 79 anos, regressou com ‘Crimes of the Future’, ao seu corpus mais representativo: a ficção científica. É uma paixão assumida desde sempre na sua longa obra, mas sobretudo em ‘eXistenz’ (1999) e ‘Vidéodrome’ (1983), que à partida parecem-me ser os filmes que mais dialogam com este seu novo Crimes of the Future, apresentado aqui na Competição de Cannes 75. Mas ‘Crimes of the Future’ é também uma obra antológica que retorna à sua obsessão com corpos esburacados — aqui há também qualquer coisa do seu mais conhecido e revitalizado ‘Crash (1996) — às suas monstruosas mutações orgânicas, às suas perversões mentais, às suas obsessões protéticas e, e claro ao seu humor de alguma forma aterrorizante e desconcertante.

Crimes of the Future
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Nesse sentido, ‘Crimes of the Future’ é mesmo um filme para os mais aficionados. Cronenberg parece que foi buscá-lo ao seu velho baú de fantasmagorias, a partir de um argumento e de um filme com o mesmo título datado de 1970, que sinceramente nunca vi. Reedita-o agora — e essa estranheza terá que lhe ser questionada — a partir de uma história que contava, —  fui mesmo ao IMDB — de forma minimalista e alucinada, as experiências ou melhor os tratamentos de pacientes ricos, dizimados por uma misteriosa epidemia — talvez esteja aqui uma possível explicação para este retorno — realizados pelo Professor Adrian Tripod, na sua clínica dermatológica chamada House of Skin. Ao mergulhar nos cérebros e removendo certos órgãos, o referido Professor Tripod, revelava determinados abismos, em particular a noção de ‘câncer criativo’ e logo uma profunda melancolia nos seus pacientes, que queriam uma vida eterna.

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É mais ou menos esta ideia que é transportada para este novo ‘Crimes of the Future’ e para o seu personagem principal Saul Tenser (Viggo Mortensen), com a diferença de que este agora é um reputado ‘artista-performer’, que trabalha, na excisão de tumores e na restauração de órgãos, no palco ou no seu espaço de criação. Para isso tem a ajudá-lo Caprice (Lea Seydoux), uma bela, misteriosa e excepcional cirurgiã, que lhe alimenta ainda a sua obsessão, pela introdução de hormonas, na sua própria corrente sanguínea. No meio de tanta mutação e grotesco, velho e o novo interpenetram-se numa mistura de tecnologia de ponta, tubos enferrujados e próteses. É em torno desta complexa e alucinada trama entre a body arte e a medicina de ponta — os lasers e a robótica — que se articulam, ainda várias histórias, num mundo, época e regime indefinidos, onde a criação artística passa essencialmente pelo sofrimento. Curiosamente é um infanticídio que abre o filme. Antes essa mesma criança devora surpreendentemente, um cesto de lixo de plástico. Funcionários trabalham no Escritório do Registro Nacional de Órgãos, que parece ter saído de um departamento cientifico da Europa de Leste, antes da queda do Muro. Aqui a personagem de Kristen Stewart, é notável nas suas aparições, no seu papel da explicada funcionária de pescoço rígido, que não demora a trair o seu sangue que ferve, perante a presença de Saul (Viggo Mortensen), o grande artista sacrificial, entregando-se, sem tocá-lo, paralisada, febril e gaguejando: ‘A cirurgia é o novo sexo?’ Uma máquina de vísceras, uma espécie de sarcófago, opera com destreza no corpo do artista. Enquanto isso, também um grupo de activistas, procura fazer uma mutação na espécie humana, transformando o plástico, que a envenena, num alimento comestível. São muitas as várias metáforas.

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Crimes of the Future
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A primeira, incide nos limites da arte contemporânea e sobretudo da ‘performance’, como expressão artística:  os seus artistas exploram — ou exploraram desde há umas décadas, estou a lembra-me por exemplo da conhecida Marina Abramovic — os limites da criação, usado e abusado da nudez dos corpos. Agora, neste filme chegam ao cúmulo de revirar a pele com um bisturi, em busca de uma nova beleza interior e de um novo desafio de criação artística: a própria vida, cujo ciclo de destruição e renascimento é a condição para a sua durabilidade. À partida esta ideia pode ser um pouco alucinada, porém faz algum sentido, pois ao conseguirmos dominar o que nos destrói e envelhece até à morte, pagaríamos também o preço de uma melancolia sem fim e o aborrecimento de uma vida eterna. Com 79 anos de idade David Cronenberg deve saber muito bem do que está a falar. Voltando a ideia de ‘cancro criativo’ — passe-se a terrível ironia — que define a ideia deste ‘Crimes of the Future’, estamos pois perante um ensaio ontológico, sobre vida e a morte, concentrado numa verdadeira obra de autor, mesmo que seja só para os mais (e são muitos) aficionados de Cronenberg.

JVM, em Cannes


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