"Vino la Noche" | © DocLisboa

Vino la Noche, a Crítica | Militarismos peruanos chegam ao DocLisboa

“Vino la Noche,” também conhecido como “Night Has Come” em inglês, é o novo documentário de Paolo Tizón. Este estudo sobre o militarismo no Peru está na secção Da Terra à Lua do DocLisboa deste ano.

No vale que se enquadra entre os rios de Apurímac, Ene e Mantaro, vinga a produção de coca. Trata-se do centro de tais culturas no contexto peruano, assim como um antro de extrema pobreza. Conhecida como VRAEM, a região é ainda dominada por presenças políticas e militares, sendo o ponto principal de operações do Partido Comunista do Peru e terra de muitas bases do exército também. Entre radicais que o estado designou terroristas e as máquinas de matar desse mesmo sistema, perdura um ambiente definido por tensões históricas. Por um lado, puxam os radicalistas esquerdistas, por outro o serviço militar, e por outro ainda a cultura do cartel.

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Em 2020, foram propostos planos para a desmilitarização da região, com o fecho de mais de quarenta bases para possibilitar a construção de novas instalações focadas no desenvolvimento socioeconómico do VRAEM. O convívio entre esse projeto e as forças armadas – legais e clandestinas – não parece muito ameno, mas o tempo ditará se a proposta foi sucesso ou um fracasso a acrescentar a tantos outros. Quiçá na antecipação do fim de uma era, o realizador Paolo Tizón levou a sua câmara para o vale, com o intuito de filmar o treino de novos recrutas, muitos deles adolescentes, numa base militar entre tantas outras.

Um mergulho na cultura do soldado

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© DocLisboa

“Vino la Noche” situa-se explicitamente no VRAEM e todas as suas especificidades, mas faz pouca menção delas mesmas. Não há grandes passagens textuais ou intertítulos recorrentes, grandes fontes de diálogo expositivo ou algo do género. Domina a sugestão por desígnios audiovisuais, o comentário passageiro e a observação paciente. Poder-se-ia dizer que Tizón escolheu uma perspetiva apolítica, mas isso também seria desrespeitoso para com um filme cuja sensibilidade está apurada para a leitura politizada. O olhar da câmara finge a passividade, mas a organização do seu espólio imagético aponta para um discurso crítico.

Tudo começa nos céus, como que para cortar a ligação entre os jovens e suas origens, fazendo-os cair literalmente para uma nova realidade sem que o filme tenha que fingir interesse no que veio antes. Vemos os rapazes a treinar o uso do para-quedas, saltando de um avião às ordens de um superior. Logo aqui se denota uma certa poesia no registo escolhido por Tizón, um qualquer gosto pela graciosidade que é possível encontrar nos ritmos repetitivos destes afazeres. Além disso, há ainda uma noção forte de ordem em comunhão com o caos, a desumanização em prol da ação destrutiva. Para se fazerem homens, os jovens têm que se tornar em máquinas de matar.


Outra contradição será a beleza estética disto tudo. Como observado pela câmara de Tizón, há algo de hipnotizante no encadeamento de soldados em para-quedas, como flores de seda a desabrocharem no céu. Contudo, o som é caótico, cheio de gritos regimentados, guinadas de ar a sair dos pulmões sem aviso e o som mecânico do avião, sempre a rugir e bradar aos céus. Só à distância, quando passamos para uma perspetiva que olha para cima, extasiada e alienada, é que a paz do momento se salienta, assim como o seu esplendor. Será isto serenidade militar? É algo do género, certamente, um paradoxo a acrescentar aos outros.

Outra visão dessa calma sucede-se quando “Vino la noche” contempla os corpos dos soldados. Eles repousam no chão, quiçá cansados do treino aéreo. A composição coloca os corpos em desarmonia com um céu dominante, vasto e azul. Os cadetes descansam, mas mais parecem portos prontos a ser enterrados. Nesta paródia da paz de um morto, prescreve-se a condição do combatente que estará sempre em confronto com a mortalidade, ora a sua ou do seu inimigo. Até na paz há violência. Até no convívio e conversa casual ela se manifesta, como quando se falam em pais abusivos enquanto os soldados fazem a barba e passam a lâmina pela cabeça rapada.

O cineasta faz o estudo do militarismo e da masculinidade.

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Nesse sentido, nessas histórias de patriarcas e muitas conversas sobre miúdos tornando-se homens, “Vino la Noche” também se afirma como um estudo de masculinidade. Inclusive do desejo implícito em corpos assim. Consideremos o homoerotismo na apuração de dados físicos, quase que levando a objetificação da fisionomia a níveis literais. Noutra passagem, falam-se das mensagens amorosas de uma rapariga, mas a encenação privilegia a intimidade de troncos nus musculosos em proximidade, todos deitados uns contra os outros, a partilhar o calor e estranha ternura. Nesses instantes, a obra é reminiscente do “Beau Travail” de Claire Denis.

Mas as passagens mais marcantes substituem a graciosidade desse convívio com algo perturbador. É o simulacro da carnificina e o uso do sofrimento como ferramenta pseudo educativa. De um certo ponto de vista, os cadetes estão a ser torturados. Veja-se o frio, o ataque da mangueira e a pressão psicológica de uma maré que ameaça afogar o coletivo. O filme forma-se um pesadelo com pequenos interlúdios, resquícios de humanidade que perduram num ambiente construído para os eliminar. E em que é que os rapazes se estão a tornar? O que é que este programa produz senão máquinas despojadas de humanidade? Oxalá, ela sobreviva ao suplicio.

Tudo isto culmina num batismo à noite, um rito meio pagão que marca o nascimento de uma nova identidade e a morte de quem os jovens cadetes eram antes do programa. É uma sequência aterradora, cerimonial e solene, mas tão perversa que dá arrepios. E é um momento tão passageiro, uma espécie de adeus que dá acesso à final despedida da fita, quando os soldados se mostram despreocupados. Quando brincam e sorriem pela primeira vez em todo o documentário. Quando regressam a casa…para sempre mudados. Assim se fazem soldados e matam miúdos. E assim Paolo Tizón se afirma como um nome a seguir na esfera do cinema documental.

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DocLisboa | Vino la Noche, a Crítica

Movie title: Vino la Noche

Date published: 20 de October de 2024

Country: Peru

Duration: 97 min.

Director(s): Paolo Tizón

Genre: Documentário, Guerra, 2024

  • Cláudio Alves - 75
75

CONCLUSÃO:

Dedicado ao realizador Óscar Catacora que morreu em 2021, “Vino la Noche” é uma impressionante estreia de Paolo Tizón na cadeira de realizador. Dito isso, as origens do artista enquanto diretor de fotografia fazem-se sentir num filme cujas imagens são, por norma, mais fascinantes que a sua organização para o espetador. Em jeito de poema sobre temas de género e militares, a obra apresenta-se enquanto retrato coletivo num teatro de morte e destruição. O filme não é perfeito e parece-nos demasiado breve. Contudo, é um trabalho muito promissor. Estaremos atentos para ver o que o cineasta faz a seguir.

O MELHOR: Os momentos em que filme arrisca a abstração. Num treino noturno, por exemplo, o ecrã está praticamente vazio. Só se veem pequenos pontos luminosos e, mais tarde, o escarlate do tiro e da explosão. No limiar de algo puramente estético, o filme transcende a mundanidade deste quotidiano militar. Se nada mais fosse, esta cena seria suficiente para aclamar a obra como um audaz exercício em cinema depurado, levado ao extremo e à maior simplicidade – som e fúria a tornar o vazio do ecrã preto em algo com significado e espetacularidade.

O PIOR: Apesar de ter hora e meia de observação contemplativa, muitos minutos definidos por inação e passividade cinematográfica, “Vino la Noche” é demasiado breve. Inúmeras cenas precisam de mais tempo para atingir o seu máximo poder. O batismo perto do fim, por exemplo, merecia ser prolongado, nem que seja para dar a ver as caras dos muitos cadetes que temos vindo a acompanhar ao invés de um só. Em metáfora florida, podíamos dizer que o filme é um vinho de colheita recente que não teve tempo suficiente para amadurecer antes de ser servido.

CA

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