"La Tierra los Altares" | © DocLisboa

DocLisboa ’23 | La Tierra los Altares, a Crítica

“La Tierra los Altares,” também conhecido como “Earth Altars,” valeu à realizadora mexicana Sofía Peypoch o Grande Prémio Cidade de Lisboa para Melhor Filme na Competição Internacional do DocLisboa deste ano.

Começamos nas trevas, no limiar do abstrato, onde um corpo e uma luz quebram o ecrã preto e parecem cavar. Estarão na procura de algum tesouro perdido, no salvamento de alguma alma perdida que se viu enterrada, ou talvez na construção de um túmulo? Na verdade, descobriremos que se trata de arqueologia da memória, o trauma investigado na paisagem que tudo recorda. Por enquanto, contudo, não há contexto para o rito. Cada punhado de terra é seguro entre as mãos e atirado sobre a cabeça, o movimento repetido quase como uma prece.

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Neste mistério ficamos hipnotizados, à mercê de uma realizadora para a qual os enigmas da sombra são a base do cinema. Sofía Peypoch sabe como cativar o espetador, trazendo-o para o centro de um exercício de cariz extremamente pessoal. Afinal, entre terra remexida e visões de vegetação anónima, ela está-nos a mostrar o local do seu rapto. Sabemo-lo pelo seu testemunho em voz-off, um suspiro desapaixonado sobre as imagens de natureza noturna que muito nos fala dos sons percepcionados além dos olhos vendados.

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Através de “La Tierra los altares,” ela fala-nos do medo e do corpo levado à força, as árvores que ela sentia em seu redor sem realmente as ver, o barulho de pés descalços sobre pedra e caco. Esses estímulos sensoriais repetem-se na encenação traumática, como se a reprodução dos mesmos permitisse alguma reconciliação entre o passado e presente, entre o sofrimento que já foi e as cicatrizes que ainda são. Na mesma linha de expressão, textos de jeito poético fazem-se ver por cima das imagens escuras. Quase parecem os pensamentos de quem não pode falar pela força da mordaça e dos raptores.

Também é o lirismo do artista a tentar dar ordem ao caos de um evento sem explicação ou significado profundo. A crueldade e a dor não se consignam à razão humana, mas é difícil aceitar esse fado. Por isso impõem-se valor, simbolismo, o canto de um bardo primordial ou a reza pagã. Algo há de servir para tolerar o intolerável. A certa altura, casa-se a imagem de mãos a escavar a terra com um mapa de coordenadas exatas, como se estivéssemos a ver a artista a dar forma àquilo que sentiu num pânico meio esquecido, meio sonhado.




Noutra ocasião, pequenas linhas de luz desenhadas sobre o arvoredo. A animação é acompanhada pelo testemunho narrado, falando-se das réstias de claridade que Peypoch em tempos viu. Foi quando o corpo estava incapacitado nesse sítio que, a certa altura, terá parecido uma sepultura para a mulher viva. Cada informação, ora específica ou abstrata, é uma peça do puzzle, mas o que fica depois deste ser montado não é a mera recordação de um pesadelo verídico. Pelo contrário, é uma tese cinematográfica sobre o modo como mente e corpo se podem separar.

A desconexão dos dois forma o abismo onde o trauma reside. É esse o castigo injusto de Peypoch enquanto sobrevivente e o objetivo do seu estudo em forma de filme. No final, aprendemos com a realizadora como perscrutar as provas do terror na materialidade do mundo. Apesar de parecer hediondo, investigar ossadas em busca de prova é processo catártico, assim como a paisagem dissecada para encontrar marcas do sucedido. Nesses vestígios, descobre-se uma verdade incompleta, mas não inútil. Os ossos e a terra são incapazes de mentir, são testemunhos absolutos.

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Enquanto espetador, sentimo-nos soterrados e sublimados, submersos numa experiência algures entre serenidade e tormenta. Afinal, pouco acontece perante a câmara. Mas o que Peypoch sugere abre feridas na imaginação. Indo ainda mais longe, ela esfrega sal na carne viva da audiência durante as primeiras passagens do seu “La Tierra los Altares.” A segunda metade da fita, infelizmente, perde algum desse poder visceral, tombando para um registo académico. É um gesto entendível ao nível intelectual sem, no entanto, justificar a contração estética do filme.

Sente-se que a aparição de testemunhos mais tradicionais – entrevista prosaica com discurso expositivo – drena radicalismo ao documentário. Dito isso, até quando essas filmagens aparecem, estão sempre contrapostas com mais material na primeira pessoa. Assim, o conteúdo de “La Tierra los Altares” não deixa de ser desafiante. De facto, é como se o ecrã fosse oscilando entre as duas faces do filme sem que a mente da audiência tenha descanso, perpetuamente questionada sobre os horrores sofridos no rapto e o esforço arqueológico.

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O júri da Competição Internacional que premiou o filme foi composto por Danielle Arbid, Ikbal Zalila, João Fiadeiro, Patrícia Saramago e Paula Gaitán. Nas suas palavras, a escolha de “La Tierra los Altares” recaiu sobre a sua “capacidade de entrelaçar delicadamente a história pessoal, a grande História e a ancestralidade num movimento em que a arqueologia como ciência confere profundidade histórica à escavação de traumas íntimos da realizadora”. No DocLisboa, Peypoch também ganhou o Prémio Revelação Canais TVCine para Melhor Primeira Longa-Metragem.

La Tierra los Altares, a Crítica
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Movie title: La Tierra los Altares

Date published: 30 de October de 2023

Director(s): Sofía Peypoch

Genre: Documentário, 2023, 69 min.

  • Cláudio Alves - 72
72

CONCLUSÃO:

Na materialidade da floresta e da escavação, no estudo do passado por meios físicos, Sofía Peypoch desvenda uma estranha capacidade para o reconforto. É panaceia imperfeita, mas capaz de acalmar a tormenta na ausência de respostas fechadas, absolutas, incontornáveis. “La Tierra los Altares” é trabalho curioso e inquietante, o tipo de filme que nos fica na cabeça, revolvendo ideias muito depois de abandonarmos o cinema.

O MELHOR: Uma história final sobre a fotografia que a mãe de Peypoch tirou no dia em que a reencontraram. Trata-se de um golpe emocional para fechar a fita, ao mesmo tempo que sublinha a importância de registos, memórias materializadas.

O PIOR: O uso de entrevista sobre as ossadas é infeliz. Não pelo que é discutido ou exposto, mas na apresentação formal. Deixa muito a desejar em comparação ao restante engenho.

CA

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