Ressaca Bailada, a Crítica | O Expresso Transatlântico em Filme Concerto
O Expresso Transatlântico convida os portugueses a um concerto muito especial, onde o palco é o grande ecrã. “Ressaca Bailada – Filme Concerto” é uma experiência de êxtase musical com realização de Sebastião Varela.
A tradição é um fundamento de muita prática cultural, arte feita em consonância ou revelia àquilo que se tem feito e estabelecido como a forma certa de se fazer há tempo imemorial. Muito é o artista que se rende à norma. Mas outros viram-lhe as costas e arriscam algo mais. Para esse segundo grupo, a tradição e o tradicionalismo será algo ao qual não se prestará reverência. Não é algo que se manterá intocável. Pelo contrário, para honrar, deve-se brincar e subverter, expandir horizontes e esticar a matéria-prima até onde a imaginação possibilitar. Estas ideias estão presentes no trabalho do Expresso Transatlântico, sua música e, agora, seu filme.
Depois de passar no DocLisboa do ano passado, “Ressaca Bailada – Filme Concerto” chega aos cinemas com uma proposta forte no âmbito da sétima arte em parceria com uma das cinco mais antigas – a música. Trata-se também da rara fita sobre performance musical cuja forma e conceção formal se assemelham à audácia expressa no som. Ou seja, a mesma filosofia estilística que rege o trabalho da banda manifesta-se no modo como “Ressaca Bailada” se afigura perante o espetador. O filme não é somente um método de divulgação, mas um objeto tão considerado como as várias músicas com que os artistas fazem o seu espetáculo.
Uma dança com a tradição, entre o cinema e a música.
A “Ressaca Bailada” começa com uma confrontação em notas menores, negando à audiência o tipo de imagética que seria expetável de um mero documentário sobre banda, sobre concerto. Ao invés de um espaço de performance, bastidores frenéticos ou um público expectante, temos algo mais próxima da abstração. Um tecido brilhante esvoaça e pinta matizes de cor, passam-se os dedos pela guitarra portuguesa e a água verte e canta a sua própria ária. Ora em pormenor ou quadro dinâmico, a fotografia de Fábio Mota impressiona, especialmente quando a sua câmara mira as marés e faz todo o ecrã explodir em brilhantes, o reflexo do sol transformado numa onda diamantina.
Dito isso, o mérito não pertence só à imagem por si só. A montagem que Sebastião Varela fez dá a ideia de que o filme em si está a dançar. O filme faz colisão entre iconografia lusitana e as experiências fotográficas a um ritmo que ora harmoniza, ora contrasta com a música do Expresso Transatlântico. Destes lirismos litorais, a ressaca transporta-nos para um edifício deixado ao abandono. As paredes despidas estão repletas de história, quiçá um passado na indústria da pesca, do comércio, ou algo mais senhorial. Neste novo cenário, faz-se sobressaltar um palco, quase um altar, e a câmara faz-lhe homenagem em movimentos fluidos, sem o advento da montagem para quebrar o gesto.
Se antes, o filme dançava pela montagem, aqui será a coreografia da câmara que invoca um bailado do grande ecrã. Aí, o Expresso Transatlântico surge em jeito mais familiar, como músicos na prática do seu ofício. Mas há algo de estranhamento casual no modo como os vemos atuar. Mais do que um concerto vulgar, esta é uma jam session privada feita em cerimónia pública pelo acesso que o filme estabelece entre os artistas e seus fãs. Numa vertente mais concetual, a abstração e o simbolismo mais pesado que veio antes e continuará a intrometer-se na fita, também fazem do concerto uma espécie de diálogo dialético.
A conversa faz-se com a banda, os valores e conceitos que formam o seu espólio musical, essas preciosidades aurais que aqui eles nos oferecem para máximo deleite. O lado multifacetado da “Ressaca Bailada” vai aumentando à medida que a música se intensifica e que a performance fica mais elaborada. A certa altura, Rita Blanco aparece vestida de vermelho, seguida de um homem enlameado com um olho de azul pálido, muitos convidados especiais e a silhueta de uma mulher apaga-se e desvenda mais ondas brilhantes no interior da sua imaterialidade. É um turbilhão de propostas dramáticase, a certa altura, até se inclui diálogo para uma teatralidade mais convencional no contexto do cinema português.
O filme inebria com seu esplendor.
Essa intromissão de diálogo força a verbalização de algumas das ideias já subjacentes à música e ao imagético. Por isso mesmo nos parece um passo em falso, algo desnecessário que macula um pouco a preciosidade desta “Ressaca Bailada,” cujos 54 minutos passam a correr. Por outro lado, a palavra falada é quase um prelúdio à palavra cantada, uma ponte na estrutura do filme que nos leva de um registo instrumental para algo novo. A energia nunca mais vacila depois disso e é especialmente impressionante quanto Varela e Mota conseguem engendrar diferentes estratégias para cada composição.
Números diferentes exigem uma abordagem diferente, com movimentos únicos sem que o projeto caia em desordem. De facto, mantém-se coerente do princípio ao fim, quando o fulgor começa a dar lugar a outro tom. Passada a noite de folia, vem a alvorada. O dia renova-se, mas uma estranha melancolia fica-nos no coração. Qualquer experiência mágica nos deixa assim, sua efemeridade é parte do apelo. Assim são os concertos. E, apesar de “Ressaca Bailada” ser um concerto fílmico, ele tenta trespassar o mesmo sentimento. Deita-se fogo à casa de bonecas e pondera-se a morte que vem à nora com as ondas. Reflete-se sobre a perda e fecha-se um capítulo. Só nos resta ficar de ressaca depois do bailarico. Isso e aplaudir o Expresso Transatlântico.
Ressaca Bailada, a Crítica
Movie title: Ressaca Bailada - Filme Concerto
Date published: 26 de March de 2025
Duration: 54 min.
Director(s): Sebastião Varela
Actor(s): Miro Bersi, Rita Blanco, João Cachola, Zé Cruz, Laura Dutra, Vicente Gil, André Ivo, Rodolfo Major, Tiago Martins, Afonso Matos, Inês Matos, Nuno Nolasco, Iuri Oliveira, Conan Osiris, Catarina Rabaça, André Ramos, Constança Villaverde Rosado, Inês Pires Tavares, Gaspar Varela, Sebastião Varela, Vicente Wallenstein
Genre: Documentário, Música, Filme Concerto, 2024
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Cláudio Alves - 80
CONCLUSÃO:
O filme concerto é sempre uma proposta arriscada que tende a emparelhar um som transcendente com imagens incapazes de transmitir o mesmo deslumbramento. “Ressaca Bailada” foge à norma e alcança algo especial, uma experiência eletrizante que se faz mais interessante por todas as ideias que propõe. Mesmo o passo em falso tem o seu lugar. Em brincadeira com a tradição portuguesa, o filme e o Expresso Transatlântico proporcionam um grande espetáculo.
O MELHOR: A fotografia em conjunção com a montagem, com a música, especialmente naquela passagem inicial com a guitarra e as ondas brilhantes.
O PIOR: O advento do diálogo e, em certa medida, a curta duração da fita. Há aqui pano para mangas e saímos do cinema com a ideia de que os 54 minutos foram insuficientes para explorar tudo o que o Expresso Transatlântico aqui propõe.
CA