"Cloud" | © Nikkatsu

Cloud, a Crítica | O IndieLisboa rende-se ao génio de Kiyoshi Kurosawa

“Cloud,” também conhecido como “Kuraudo,” é o primeiro de dois filmes do mestre japonês Kiyoshi Kurosawa a passar na 22ª edição do IndieLisboa. Esta bizarra criação, algures entre o drama paranoico e o terror de ação e a comédia negra, integra a secção Silvestre do festival.

Não deve ser fácil começar carreira de realizador com um nome como Kurosawa. Quando Kiyoshi Kurosawa saltou dos filmes tese para os eróticos de baixo orçamento nos anos 80, ainda Akira Kurosawa estreava novas obras-primas como “Ran” e “Sonhos.” Felizmente, a comparação nunca perseguiu o cineasta mais jovem, em parte porque os seus interesses eram tão distintos, tão seus e em nada que ver com esse outro mestre da sétima. Sim, outro mestre, pois Kiyoshi Kurosawa também já se provou superestrela atrás das câmaras, tornando-se num dos grandes nomes do cinema japonês ao virar do milénio e até aos dias de hoje.

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Sem fidelidades restritivas a géneros, apesar de um afeto sentido pelo terror, Kurosawa construiu uma carreira multifacetada onde se destaca um desrespeito pelas convenções narrativas em consonância com o classicismo formal. As suas imagens são poderosas e suas histórias sintéticas, sem detalhes supérfluos, sem mácula ou trejeito estilístico feito somente em nome do fausto. Há grande disciplina nesta arte, assim como uma certa curiosidade pelos aspetos mais tenebrosos da natureza humana. Quer seja num thriller de espionagem ou algum conto sobrenatural, o que Kurosawa revela sobre o modo como as pessoas se comportam é sempre chocante. O seu tríptico de 2024 não foge à regra.

Imaginem um mundo em que todos vos odeiam.

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© Nikkatsu

No ano passado, Kyoshi Kurosawa estreou três filmes no circuito dos festivais. “Chime,” no limiar da curta-metragem considerou a desrealização violenta que um som misterioso provoca naqueles desafortunados que o ouvem. “Serpent’s Path,” por seu lado, propôs a estranha ideia de refazer um filme antigo do realizador em versão francesa. Por fim, temos “Cloud,” o mais aclamado dos três e talvez também o mais difícil de categorizar. Se os outros trabalhos se poderiam categorizar como permutações do terror tão amado pelo cineasta, esta última longa-metragem foge a tais rótulos. No entanto, partilha muito com “Chime” e obras anteriores como “Cure” e “Pulse.” Nomeadamente, repetem-se ideias de irracionalidade, a permeabilidade de loucuras virtuais no mundo real e a violência contagiosa.

A premissa narrativa é estranhamente simples. Yoshii é um jovem insatisfeito como tantos outros no Japão contemporâneo, que recorre à revenda online para fazer uns trocos a mais. Só que o dinheiro vicia e a adrenalina também. Sem escrúpulos que lhe mitiguem a vigarice, ele acaba por sustentar toda a vida com esses negócios virtuais e até se muda para uma casa no campo com a namorada. Infelizmente, os muitos clientes que Yoshii aldrabou e outras tantas vítimas do seu mau comportamento decidem vingar-se do capitalista internauta. Primeiro, aterrorizam-lhe o lar. Depois, dão início à caça aberta com o intuito de o matarem em live stream para faturar às custas do seu sofrimento. Faz-se justiça pela injustiça ou, pelo menos, esse é o plano.


Em certa medida, “Cloud” um conto moral com uma costela vingativa que não estaria fora de lugar no Antigo Testamento. Por outro lado, há uma precipitação de hostilidades manifestas em violência física que fazem mais sentido numa seção de comentários online que na nossa materialidade quotidiana. Ou seja, ninguém se comporta como pessoas comuns, a não ser Yoshii cuja mesquinhez é bem reconhecível e cujo espanto se replica no próprio espectador. Desta dinâmica surge um sentimento sufocante, quase como um ataque de ansiedade refeito em filme. Imaginem um mundo em que todos vos odeiam e, de um dia para o outro, conspiram para vos matar. É um pesadelo autêntico e é, sumariamente, a essência de “Cloud.”

Os fundamentos da fita também passam por uma visão crítica dos mundos digitais e seu uso enquanto alicerces de um capitalismo tardio levado aos extremos da desumanidade. Se Yoshii se vê vítima de uma urbe sanguinária cujas ações fogem à norma e ao contrato social, isso acontece-lhe depois de ter feito o mesmo a nível económico. De facto, a personagem quase se poderia fazer passar pela personificação de um sistema voraz, onde nem o amor da namorada ou o respeito incondicional do patrão são suficientes para saciar a fome. Há um vazio no âmago do homem do mesmo modo que há um buraco negro no centro da nossa sociedade. E daí, Kurosawa extrapola uma história onde o mundano vira mortífero.

Kurosawa revela um reflexo distorcido de nós mesmos.

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© Nikkatsu

Tratar bizarria como normalidade para melhor ilustrar o lado sinistro daquilo que consideramos normal é uma das estratégias preferidas do cineasta e chega à sua apoteose em “Cloud.” Dito isso, o filme vai sofrendo metamorfoses à medida que os tons se extremam e a insanidade toma poder. Ao início, poderíamos descrever a fita como um drama contemporâneo com toques de comédia negra, mas os ataques à casa de campo precipitam-nos no abismo da paranóia, algo saído diretamente dos thrillers da Nova Hollywood. Chegado o terceiro ato, há um excesso de carnificina tão grande que o pandemónio vira cómico outra vez, mesmo na medida que os preceitos de género transcendem o terror para a ação, com muito tiro à mistura.

É difícil descrever como Kurosawa realiza estas transições sem perder controlo sobre o filme, mas “Cloud” nunca é incoerente. Nem quando introduz um anjo salvador que, na verdade, é mais um emissário do inferno, um Mefistófeles da yakuza que, numa coda sonhadora, literalmente conduz Yoshii e sua audiência rumo ao Hades. A ousadia desse gesto dá vontade de aplaudir de pé, mas poder-se-ia dizer o mesmo de tantas outras passagens ao longo de “Cloud.” Estranho e agressivo, este é o tipo de cinema que só podia sair da imaginação iconoclasta de Kiyoshi Kurosawa, tão estranho e incomparável no contexto geral. O Japão está de parabéns por ter selecionado tamanha loucura para o representar nos Óscares e a Academia devia ter vergonha por não terem sequer votado “Cloud” no top 15 da sua categoria.

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Depois de “Cloud,” que terá segunda exibição no dia 9 de maio, o IndieLisboa também apresentará “The Serpent’s Path” de Kiyoshi Kurosawa. Esse remake francófono passa a 10 de maio no Cinema São Jorge.

Cloud, a Crítica

Movie title: Kuraudo

Country: Japão

Duration: 124 min.

Director(s): Kiyoshi Kurosawa

Actor(s): Masaki Suda, Kotone Furukawa, Daiken Okudaira, Amane Okayama, Yoshiyoshi Arakawa, Masakata Kubota, Masaaki Akahori, Mutsuo Yoshioka, Yoshiyuki Morishita, Testsuya Chiba

Genre: Drama, Thriller, Ação, Terror, 2024

  • Cláudio Alves - 90

CONCLUSÃO:

Sem desrespeito a Akira, mas o cinema japonês tem novo rei com o nome de Kurosawa. Assim é desde os anos 90, quando Kiyoshi Kurosawa primeiro alcançou renome internacional. Sua mestria só se tem intensificado com o passar dos anos e “Cloud” é mais um triunfo, dissecando os vícios do capitalismo na era da internet ao mesmo tempo que propõe um pesadelo lúcido onde o ódio e a violência são um contágio mental, capaz de por todo o mundo contra o mesmo homem.

O MELHOR: A alquimia tonal que torna “Cloud” numa autêntica balbúrdia de ação nas suas passagens finais, tecendo moralismos críticos através da completa amoralidade narrativa. Mais nenhum realizador senão Kurosawa conseguiria tal façanha.

O PIOR: O materialismo ferrenho que a namorada de Yoshii personifica pode ter conotações desconfortavelmente misóginas, especialmente porque ela é a única mulher num elenco cheio de homens.

CA

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