Festa do Cinema Francês ’25 | Love Me Tender – Análise
Depois de quatro décadas de vida, Constance Debré deixou a carreira como advogada, separou-se do marido e partiu à descoberta da sua sexualidade. Na terra natal, o apelido da escritora é bem sonante, carregando consigo o legado de uma das mais marcantes famílias da política francesa no século XX. Talvez por isso, a rebeldia da meia-idade pareça tão estranha, manifestando-se à revelia de todos os valores burgueses que, até então, pareciam definir a vida de Debré. Não que a juventude tivesse sido um cliché de estabilidade, pois, apesar de heranças aristocráticas, os pais eram instáveis, debatendo-se com a toxicodependência. Quando tinha somente 16 anos, Debré perdeu a mãe.
Um fado semelhante abateu-se sobre o seu filho. Aos oito anos, o menino também perdeu a mãe, só que, no seu caso, ela estava viva. Aconteceu em 2015, depois de Debré assumir a sua identidade queer para com o marido com quem já não vivia. Enfurecido, ele usou todos os conservadorismos inerentes à lei civil para acusá-la de ser má mãe, sua nova carreira e comportamento sexual tornados em pretextos para lhe cortar contacto com a criança. Durante dois anos, Debré não viu o filho e, mesmo depois do tribunal lhe dar razão, a luta continuou, com o marido a fazer tudo para lhe castigar as supostas transgressões e lhe roubar a chance de ver o filho crescer.
Esses anos difíceis serviram de base para uma trilogia de romances na primeira pessoa que, segundo a autora, não são autobiografias. Em todo o caso, são autoficções, nomes mudados ou não, detalhes alterados aparte. “Play Boy”, o primeiro livro dos três, considera a libertinagem da mulher em busca de prazer, relatando muitos encontros casuais e contos de engate. “Nom” fecha a trilogia, olhando para a relação da escritora com a História da família Debré, especialmente com o pai. No meio dos dois, “Love Me Tender” é o retrato mais direto dessa luta entre marido e mulher, o suplício da mãe longe do filho e sua justaposição com uma existência errante, quase hedonista.
Foi precisamente “Love Me Tender” que a realizadora Anna Cazenave Cambet decidiu adaptar para cinema, dramatizando a autoficção de Debré com Vicky Krieps no papel principal. Ela é Clémence Delcourt, o alter ego da autora, e encontramo-la na piscina onde se exercita segundo uma rotina bem definida e disciplinada. A câmara foca-se no corpo, sua expressividade quando quebra a superfície da água que, vista de tão perto, parece uma massa de vidro liquefeito sobre a pele. Muitas vezes se exaltam estas qualidades hápticas da imagem, chamando a atenção do espetador para a materialidade da carne, sua robustez e fragilidade, seu potencial para dor e prazer.
Um marco do cinema LGBT+ em 2025.
De facto, essa possibilidade carnal não demora muito a manifestar-se, sendo que esta sequência inicial se encerra com o suspiro do orgasmo partilhado entre Clémence e outra nadadora. Bem, na verdade, o fim da introdução ocorre fora da piscina, quando a protagonista faz uma videochamada com o filho e lhe mostra o céu com uma câmara rodopiante. Trata-se de um instante de euforia materna, um contraste deliberado entre a libertinagem do sexo casual e a figura da progenitora. A maioria das narrativas retrataria estas noções como realidades antagónicas, mas “Love Me Tender” reivindica que a mulher não tem que ser uma entidade dessexualizada para ser boa mãe.
Nem todos concordam. Clémence separou-se há pouco tempo do marido com quem esteve durante duas décadas e, não só mudou de carreira, de advogada a escritora, como também começou a explorar o seu desejo. Quando a conhecemos, ela já vive enquanto mulher queer com um círculo social a condizer, mas ainda não revelou isso a Laurent, seu ex. A conversa acontece sob o olhar da câmara e, para todos os efeitos, parece ser uma interação amistosa. Dito isso, Cambet e o ator Antoine Reinartz são mais perspicazes que Clémence, denotando a amargura no sorriso, o modo como a felicidade da esposa é sofrida como um ataque pessoal por este homem.
Fica-nos o calafrio, a antecipação de uma catástrofe iminente que, finalmente, ocorre quando Clémence vai buscar o filho para passarem o fim-de-semana juntos e o menino não a quer ver. A cena é um pequeno milagre de encenação angustiante, dando início a uma estratégia em que a face do menino Paul nos é negada da mesma forma que a mãe vê o acesso ao filho recusado. Também a astúcia de Cambet está em evidência, sem, no entanto, saltar à vista ou chamar a atenção para o seu virtuosismo, com muito do momento capturado em takes compridos e planos sequência estáticos para acentuar a experiência da protagonista.
Sem cortes, não há oportunidade para o espetador respirar, ficamos presos à realidade em cena sem a benesse de um artifício fílmico. Trata-se de princípios Bazinianos aplicados ao melodrama doméstico, forçando o público a partilhar o tempo real destes instantes que colapsam a vida da personagem. A partir dessa rejeição, “Love me Tender” toma a forma de uma luta judicial em jeito sisífio, mais próximo de uma evisceração das hipocrisias da lei francesa do que um pesadelo de burocracias demoníacas à la Kafka. Só uns anos após a legalização do casamento gay em França, Laurent ainda consegue contestar a aptidão parental de Clémence pela sua sexualidade.
As acusações são ultrajantes, usando os livros que a mulher lê na privacidade da sua casa como indício de incesto – “Fou de Vincent” de Hervé Guibert – e uma fotografia de mãe e filho na marcha do Orgulho de Paris enquanto prova da exposição a assédios pedófilos. Passam os meses e Clémence parece sujeitar-se às crueldades do marido, mudando de casa, livrando-se de objetos queer indesejados, mas há limites. Quando já há um ano ela não vê o filho e, por fim, um psicólogo designado legitima a sua sanidade e inocência, a escritora troca as voltas à tragédia. Ela finaliza uma obra que, apesar de título diferente, é “Play Boy” e continua a procurar sexo casual.
Isso não implica uma desistência dos seus direitos enquanto mãe. Muito pelo contrário, a afirmação da sua existência enquanto mulher queer em rebeldia contra os padrões da família burguesa parece dar-lhe mais força para ir à guerra da custódia. Numa das muitas passagens em que a narração em voz off se sobrepõe à imagem, Clémence até afirma preferir a verdade da guerra à hipocrisia da paz. Certamente, é mais fácil engolir a maldade sem estribeiras de Laurent do que aquelas cenas em que o desgraçado se tenta armar em vítima e faz de tudo, até um toque no braço ou silêncio, mais razões para massacrar a mãe do seu filho e a chamar de monstro.
Tal narração ajuda a modular estes momentos aflitivos, pondo a perspetiva de Clémence no pedestal, sempre acima de quaisquer mentiras que o marido possa contar. Normalmente, criticaria tal recurso pela negativa, mas, aqui, esta preponderância da palavra estabelece o impulso artístico da personagem e revela-a enquanto criativa. Krieps é sublime no modo como comunica a interioridade da personagem, só que ainda é necessária a narração para entender a articulação literária de uma escritora cujo pensamento ainda se rege pela linguagem seca, desflorida e direta de uma vida a argumentar com juízes.
Sem flashbacks ou outros mecanismos tais, “Love Me Tender” consegue insinuar a existência completa desta pessoa, traçando-lhe a biografia, a viagem sentimental e a verdade mais secreta, através do engenho dramático. Krieps surge em estado de graça, quiçá na melhor prestação de uma carreira cheia de milagres dramáticos, enquanto Cambet vai muito além do que a premissa da fita presume. Ao invés de se ficar por estratégias formais displicentes ou investir tudo naqueles takes compridos, a realizadora aposta numa série de variações. Veja-se, por exemplo, a sensação de afogamento conseguida pela combinação da sonoplastia e de uma série de dissolves.
Entre humanismos e erotismos, dor de mãe.
O seu trabalho rítmico é extremamente importante, pois momentos como aquele descrito ajudam a estabelecer a passagem do tempo e fazem do desamparo de Clémence algo visceral, sentido no âmago. A estrutura faz-se em reticências e saltos cronológicos, acelerando e desacelerando consoante o estado da escritora, seu foco no filho ou no sexo ou na fúria ou na resignação. Também os amores de Clémence afetam esses fluxos temporais e Cambet está sempre disposta a pôr a ação principal em pausa para contemplar alguma figura secundária ou mesmo terciária. Por vezes é um amigo, uma desconhecida, o patriarca doente, uma amante, uma namorada.
Tal generosidade narrativa só funciona porque Cambet reuniu um elenco excelente muito além da tour de force titânica de Krieps – todo um filme passado na tensão entre reprimir a raiva e liberar o desejo – e da perfídia oleosa de Reinartz. O pequeno Viggo Ferreira-Redier é excelente como Paul, reentrando na fita passada uma hora e quase dois anos na vida das personagens. Monia Chokri entrega-se às contradições de uma jornalista apaixonada por Clémence, mas incapaz de aceitar as circunstâncias da sua vida, e Park Ji-min acrescenta mais um papel a um rico, se curto, repertório em constante expansão desde a sua estreia em “Retour à Séoul”.
Poderia gastar parágrafos sem fim a traçar o elogio destes atores e muitos outros, desde Féodor Atkine a Aurélia Petit, desde a comédia atrevida de Julien De Saint Jean ao desespero sentido de Malou Khebizi. “Love Me Tender” é daqueles feitos de cinema humanista em que todos têm direito a brilhar, pois cada pessoa na história merece tanto respeito como a protagonista em volta da qual tudo orbita. Essa natureza expansiva enriquece o trabalho de todos e o retrato de Clémence também, assim como a autorreflexão de Debré. Indo mais longe ainda, o filme termina sem catarse e sem as conclusões mais ou menos felizes da vida real.
“Love Me Tender” esteve em competição na 26ª Festa do Cinema Francês, sendo exibido em Lisboa e no Porto. Não ganhou nenhum prémio, mas ficamos à espera de uma estreia comercial para que possa chegar a mais público português. Entretanto, a Festa continua noutras partes do país – Cascais, Coimbra, Lagos, Almada, Beja e Setúbal. Não percas!
Love Me Tender
Conclusão:
- Ser-se queer e uma figura parental na nossa sociedade parece sempre envolver uma capitulação pessoal perante as convenções da família heteronormativa. Questões de sexo e desejo e rebeldia contra o sistema são postas de lado em nome da respeitabilidade exigida. Na sua vida e na sua obra, a escritora Constance Debré tem enfrentado e desmentido essas presunções falaciosas, e também o faz em “Love me Tender”, primeira adaptação dos livros desta escritora ao cinema.
- Trata-se de um marco do cinema LGBT+ em 2025, com estreia mundial no Festival de Cannes antes de, agora, fazer o circuito festivaleiro pelo resto do mundo, incluindo Portugal. Também é um trabalho radical nas suas negociações entre convenção e luta acesa contra a mesma, capturando a realidade invulgar de Debré, aqui ficcionalizada como a Clémence de Vicky Krieps.
- Entre um trabalho notável da atriz principal e a direção surpreendentemente elegante de Anna Cazenave Cambet, o filme eleva-se acima de projetos semelhantes. O elenco secundário de luxo também merece aplausos, assim como o argumento adaptado, montagens, música e sonoplastia. “Love Me Tender” é uma preciosidade do cinema humanista europeu.