'Anatomy of a Fall' © Les Films

Anatomia de uma Queda, a Crítica | Drama de Justine Triet é dos mais empolgantes da memória recente

Com “Anatomia de uma Queda” a cineasta francesa Justine Triet tornou-se, em 2023 e na 76.ª edição Festival de Cannes, a terceira mulher a vencer a notável Palma de Ouro. Na temporada de prémios norte-americana, segue com louvores notáveis e cinco nomeações aos Óscares para o seu filme, incluindo duas a título próprio – Melhor Realização e Melhor Argumento Original. 

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A verdade não é objectiva, mas antes uma construção meticulosamente criada a partir de vários pontos de vista. Não existe um absoluto, nem tão pouco existem certezas. Em “Anatomie d’une Chute”, Justine Triet e Arthur Harari co-escrevem um argumento astuto e provocador, que examina o género “true crime” à luz de uma lupa que nada perdoa. Denso e dramático, mas também povoado por momentos de profundo humor e ironia, “Anatomia de uma Queda” é uma tragédia do mais alto nível. Mordaz e subtil, sabe colocar o holofote sobre as instituições de justiça criminal sem as desacreditar e julgar veemente o circo público que comumente se gera em torno de casos de homicídio polémicos.

Festival de Cannes 2023
‘Anatomie d’une Chute’, © Justine Triet

Em “Anatomy of a Fall”, Sandra Voyter (Sandra Hüller) é acusada do homicídio do seu marido Samuel Maleski (Samuel Theis) depois de este ser encontrado morto na neve em frente à residência de ambos. Sendo o seu lar um chalet isolado nos Alpes Franceses, ninguém testemunhou a queda aparatosa desde o topo da janela de sótão. O filho do casal, Daniel (Milo Machado Graner), de 11 anos de idade, invisual, regressava a casa e encontrou o corpo. Como “prova”, ficaram apenas três insidiosas gotas de sangue, o rasto na neve e um sem fim de provas circunstanciais. As circunstâncias da morte levantam suspeitas, mas sendo a autópsia inclusiva, o julgamento que se segue encontra no escrutínio compulsivo da vida familiar de Sandra, Samuel e Daniel a única fórmula para determinar o veredicto.


Onde o enfado poderia reinar, como é aliás habitual em dramas de procedimento judicial, Triet e a sua equipa constroem antes um thriller criminal tenso, numa experiência que vai muito além da mera definição da culpa ou inocência da figura central interpretada por Sandra Hüller. Com uma utilização da música com uma função narrativa inegável e uma criação de atmosfera igualmente assinalável, “Anatomia de Uma Queda” mergulha-nos num espectáculo de tribunal veloz, dinâmico e muito inteligente.

A dúvida é a única constante à medida que a história se desenrola, com elementos a serem revelados apenas na sala de tribunal, e nunca antes. Tal como a defesa e a acusação, quem vê “Anatomie D’une Chute” vai lentamente inteirando-se de todos os dados e informações que irão levar à decisão final. A progressão da obra é um dos seus trunfos mais notórios, pois o factor surpresa é utilizado com conta e medida, de forma económica e pausada, sim, mas sempre rumo à destabilização de quaisquer certezas.

Festival de Cannes 2023 - Anatomia de uma Queda
‘Anatomie d’une Chute’, ©Justine Triet

Nesta obra não se discutem absolutos, mas antes as pequenas idiossincrasias que determinam uma vida em conjunto, uma vida familiar. Precisamente aquelas que deviam pertencer à esfera privada e não ao palco selvático da tribuna. Sandra Voyter, interpretada na perfeição por Sandra Hüller, que em 2023 também deixou um legado fortíssimo com “A Zona de Interesse”, e que está naturalmente nomeada ao Óscar de Melhor Atriz, é uma personagem completamente formada. Tal como o são o pequeno Daniel e até o falecido Samuel, que embora apareça apenas esporadicamente e da devida forma económica em flashbacks, assombra toda a fita com o seu contagiante desespero. Caramba, até o pequeno Border Collie Messi, que venceu a Palma Canina em Cannes pelo seu papel como Snoop, é irrepreensível. E quem não ficou encantado que se manifeste!


Infelizmente, não é assim tão frequente depararmo-nos com personagens tão corpulentas e reais, palpáveis, quanto as encontradas em “Anatomia de Uma Queda”. Cremos nas suas palavras, na sua ambiguidade, nos seus arrependimentos e nos seus rancores. Na natureza hiperbólica e distorcida das suas discussões, um espelho do real identificável e tenebroso. O estudo de personagem ilustre é apenas a ponta do icebergue de um filme executado na perfeição, quer estejamos a falar dos seus planos elegantes, da coesão narrativa, da fotografia deslumbrante ou até da utilização inesperada e cáustica da banda sonora.

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Psicologicamente eficaz e elevado, o filme de Justine Triet explora temáticas como as fronteiras ténues entre ficção e realidade, os papéis de género e as expectativas da mulher na vida familiar, a subjectividade do real e da “verdade”, o processo de inspiração e construção de mundos por parte de autores, ou ainda as tensões de viver perpetuamente “lost in translation”. Todas elas com igual poderio e nunca perdendo o fio narrativo principal de vista.

Anatomy of a Fall
Os flashes de memória da relação de Sandra e Samuel são tão breves quanto pujantes | ©NOS Audiovisuais

Ideias abundam neste argumento, sem que a longa-metragem se entregue a divagações cíclicas como um filme desta natureza poderia correr o risco de fazer. Na marca das 2h30 de duração, há quem pudesse considerar, à priori, “Anatomy of a Fall” demasiado longo. Discordamos de tal acepção, pois a obra de Justine Triet sabe onde se entregar muito pontualmente à reflexão e onde, na esmagadora maioria da sua duração, comprometer-se com uma cadência notável e uma sucessão de ideias críticas bem moldadas. Volvido este tempo, retirámos a melhor das conclusões: conhecemos uma personagem plena e a sua vida interior, mais do que uma mera sentença de tribunal!

Desde 1 de fevereiro, “Anatomia de Uma Queda” encontra-se em exibição nas salas de cinema nacionais com distribuição pela NOS Audiovisuais.

ANATOMIA DE UMA QUEDA | PALMA DE OURO INDICADA A 5 ÓSCARES JÁ EM EXIBIÇÃO

Anatomia de uma Queda, a Crítica
Justine Triet - Anatomia de uma Queda poster

Movie title: Anatomia de uma Queda

Movie description: Sandra (Sandra Hüller), uma escritora alemã, o seu marido francês Samuel (Samuel Theis) e o filho Daniel (Milo Machado Graner), de onze anos, vivem um ano de forma isolada numa cidade remota dos Alpes franceses. Quando Samuel é encontrado morto na neve, caído do chalé, a polícia questiona se terá cometido suicídio ou se foi assassinado. Perante a tese de homicídio, Sandra torna-se a principal suspeita. Pouco a pouco, o julgamento irá revelar- se não apenas uma investigação das circunstâncias da morte de Samuel, mas uma inquietante viagem psicológica às profundezas da relação conflituosa do casal.

Date published: 8 de February de 2024

Country: França

Duration: 150'

Author: Justine Triet, Arthur Harari

Director(s): Justine Triet

Actor(s): Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado Graner

Genre: Drama, Crime

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  • Maggie Silva - 90
90

Conclusão

“Anatomia de uma Queda” é tão mais do que a simples reconstrução de um crime em cenário de tribunal. Justine Triet e Arthur Harari escrevem uma vida familiar repleta de especificidade e nuance, para depois a submeterem ao mais insano dos escrutínios. Preservar a verdade, ou a objectividade, não é o objectivo central. Estamos no fértil reino da imaginação, da ficção e da representação falível do real. Não obstante, a palpável caracterização de Sandra, Daniel e Samuel reflete a natureza humana com perspicácia para lá de todo o circo mediático e judicial.

Pros

  • Na veia dos melhores dramas sobre desencanto romântico como “Kramer Vs. Kramer”, mas também seguindo a liderança de filmes como “Anatomia de um Crime” (1959), “Anatomie d’une Chute” ecoa influências vastas sem perder a sua singularidade e ponto de vista particular.
  • Dos momentos de introspecção às linhas de diálogo entregues com vincado e efusivo desespero, Sandra Hüller oscila entre o teatral e o comedido e entrega aquela que é, sem margem para dúvidas, uma das prestações mais justamente aclamadas da temporada de 2023/2024.
  • A banda sonora, tão poderosa que a sua mera menção nos traz à memória cada nota musical que assombra (da melhor forma) este autêntico thriller de tribunal.

Cons

  • Ora, nada a apontar.
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