Pack Blu-ray com 8 filmes de Fassbinder já à venda!.©Leopardo Filmes

Rainer W. Fassbinder | 8 Filmes em DVD Para Encontrar o Seu Próprio Inferno Pessoal

Os 80 anos de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) são celebrados numa caixa de Blu-ray, entre 8 cópias restauradas em 4K e a mercearia sentimental do Novo Cinema Alemão, com edição da Leopardo Filmes. Uma bela prenda de Natal.

No ano em que Rainer Werner Fassbinder faria 80 anos (40 anos sobre a sua morte), a Leopardo Filmes decide dar-nos aquilo que o streaming ainda não sabe dar: um objeto, um peso, uma coisa que se pousa na mão. Uma caixa Blu-ray com oito filmes restaurados de um dos tipos mais incómodos, brilhantes e auto-destrutivos do cinema europeu. Não é a “obra completa”, longe disso, mas é um retrato bastante cruel – portanto fiel – do homem que passou 13 anos a filmar como se tivesse uma bomba-relógio dentro do peito.

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O Medo Devora a Alma.
O Medo Devora a Alma. ©Leopardo Filmes/Divulgação

O homem que filmava como quem se incendeia

Entre finais dos anos 60 e o início dos 80, Fassbinder realizou 37 longas-metragens, séries de televisão, escreveu e encenou teatro, fez rádio, apareceu como actor em filmes seus e alheios, montou, produziu, compôs. Era um homem-esquadra de filmagem: realizador, actor, produtor, montador e pirómano emocional em serviço permanente. Esta caixa condensa uma parte dessa avalanche criativa em oito títulos decisivos, todos em cópias digitais restauradas e legendados em português, para que não haja desculpa de “não percebi bem o alemão”.

VÊ TRAILER DE “QUERELLE”

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A caixa e o fantasma de Querelle

A edição em si é quase uma anedota fassbinderiana: uma embalagem cuidada, com ar de fetiche cinéfilo, a tentar impor ordem a um universo de filmes onde tudo é desordem, mágoa, álcool, culpa e desejo. E, para apimentar, há uma ausência que pesa: “Querelle” não faz parte do pacote. Falta o epitáfio mais febril, o delírio marítimo-erótico que muitos descobriram em VHS manhoso ou sessões tardias de cinemateca. Talvez seja melhor assim: o fantasma fica de fora da caixa, a assombrar o resto.

VÊ TRAILER DE “AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT”

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O laboratório das emoções: oito filmes, oito feridas

Dentro, a coisa é séria. Comecemos por “Cuidado com Essa Puta Sagrada”, em que a tal “puta” é, na verdade, a câmara de filmar. Uma equipa alemã perdida em Itália à espera de dinheiro para rodar um filme: alcoolismo, ressentimentos, pequenas tiranias e um jogo de espelhos em que Fassbinder acerta contas com o seu próprio método e com a ideia romântica de “rodagem”. Segue-se O Mercador das Quatro Estações, talvez o seu primeiro grande murro no estômago da Alemanha do pós-guerra. Um melodrama operário que desmente a ideia confortável de “milagre económico”: o país cresce, a alma afunda. Em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, Fassbinder fecha a porta do apartamento e deixa-nos trancados com três mulheres, um tapete com cara de leopardo e um ego do tamanho da Alemanha. É teatro filmado, sim, mas com um requinte venenoso. “O Medo Come a Alma” é o filme que melhor dialoga com o nosso presente. Uma mulher alemã, já avó, apaixona-se por um imigrante marroquino.

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VÊ TRAILER DE “FOCUS ON FASSEBINDER”

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Quem estranha não é o público é a sociedade inteira. O medo aqui é o racismo quotidiano, o fascismo manso que se disfarça de normalidade. Em “Amor e Preconceito” (Effi Briest), o realizador adapta Theodor Fontane e desmonta, plano a plano, a máquina social que esmaga uma mulher “bem educada”. Um filme elegante, cortante e perversamente moral. “Mamã Küsters Vai para o Céu” atira-se ao circo mediático: o operário que mata o patrão, a imprensa que devora a tragédia, e a mãe que se torna carne para as ideologias alheias. Parece um filme dos anos 70, mas podia ser de hoje. Com “Roleta Chinesa”, voltamos ao jogo psicológico e cruel entre amantes e mentirosos num fim-de-semana burguês. A roleta aqui não é russa, é alemã: em vez de balas, palavras. Finalmente, “O Casamento de Maria Braun”, o mais “popular” deste conjunto de filmes. Hanna Schygulla é a noiva do milagre económico, ambiciosa, moralmente flexível, sobrevivente nata. O sucesso tem um preço e, na Alemanha de Fassbinder, o lucro é sempre pago com um cadáver.

VÊ TRAILER DE “O CASAMENTO DE MARIA BRAUN”

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Restauração em 4K: não é maquilhagem, é arqueologia

Tudo isto chega agora em cópias restauradas em alta definição, com som limpo e imagem reconstituída. A restauração não é cosmética: é devolver-nos a ferocidade dos enquadramentos e a dureza daquela luz que nunca é confortável. É também um gesto político: pôr em circulação filmes que nunca foram pensados para agradar, muito menos a quem “gostou disto, vai gostar daquilo”.

VÊ TRAILER DE “O MEDO COME A ALMA”

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Ver Fassbinder hoje: um pacto de risco

Para quê, então, ver (ou comprar) esta caixa? Porque é uma forma de medir a distância entre o cinema-domínio-excesso e o cinema como confronto. Fassbinder não explica tudo, não oferece conforto, não dá personagens doces para amar sem culpas. Há sempre um resto de culpa, de desejo, de poder mal resolvido  e é isso que ainda o torna necessário. A ausência de “Querelle” lembra-nos que nenhuma caixa é total. Falta sempre algo, um filme, uma história, um corpo. E Fassbinder viveu precisamente nessas margens: da sexualidade, da moral, da própria indústria que o financiava enquanto ele a insultava nos filmes.

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VÊ TRAILER DE “A ROLETA CHINESA”

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O cinema que ainda sangra

Ter estes oito discos, esta caixa é assumir um pacto. Um pacto com um cinema que não se vê em piloto automático. É sentar, carregar no play e aceitar que, durante duas horas (de cada vez), alguém nos vai esfregar na cara tudo o que preferíamos manter debaixo do tapete: a culpa histórica, a violência doméstica, o racismo, o poder, o desejo. Se o cinema fosse um concerto de vozes desconfortáveis, Fassbinder seria o barítono que grita no fim, quando já todos queriam sair de cena. Esta caixa é o microfone que o traz de volta. Cabe-nos a nós decidir se ficamos para ouvi-lo – e levar com o eco – ou se voltamos para a almofada do costume. Mas depois não digam que o cinema é que morreu. Nós é que, muitas vezes, deixámos de ter coragem para o ver.

BLU-RAY (8 DISCOS) 50,00€; Língua original: Alemão, Inglês, Italiano, Francês; Legendas: Português e Inglês

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