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O Mercador das Quatro Estações, em análise

O ciclo dedicado à carreira de Rainer Werner Fassbinder continua, desta vez com a exibição de “O Mercador das Quatro Estações”!

MERCADOR DAS QUATRO ESTAÇÕES, MAS NÃO DOS QUATRO COSTADOS…!

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Em HANDLER DER VIER JAHRESZEITEN (O MERCADOR DAS QUATRO ESTAÇÕES), 1971, de Rainer Werner Fassbinder, que muitos consideram um ponto de viragem na obra do realizador, o protagonista de quem se fala não passa de um homem comum, embrulhado num novelo existencial que podemos considerar comum, apesar de se apresentar num quadro familiar relativamente pouco comum, diria mesmo, agreste e singular. Senão, vejamos: depois de chegar a casa da mãe, após uma ausência, que adivinhamos forçada, na Legião Estrangeira Francesa, a gélida recepção que a progenitora lhe reserva pode ser classificada como um verdadeiro insulto e uma autêntica praga soprada aos sete ventos do destino para contaminar o futuro “mercador das quatro estações”, conceito que faz lembrar a expressão gaulesa marchand des quatre-saisons, que significa vendedor ambulante.

O Mercador das Quatro Estações
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Mas, para já, leiam o que se diz e ouve nessa sequência inicial:

Mãe (Gusti Kreissl): Quem é?

Filho (Hans Hirschmüller): Eu, o Hans.

Mãe: Só mesmo tu, para chegares a meio da noite.

Filho: Estive fora durante mais de um ano, mãe.

Mãe: Que tenhas ido para a Legião, é assunto teu, mas arrastar contigo o Manfred Wagner, que é tão simpático…

Os problemas que tive com os pais dele! Tratam-me como se a culpa fosse minha. Ele também voltou?

Filho: O Manfred morreu.

Mãe: Sempre a mesma coisa. Os melhores ficam por lá e aqueles como tu voltam.

Filho: Eu mudei, mãe.

Mãe (olhando com raiva o filho): O que nasceu torto, morre torto.

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O Mercador das Quatro Estações
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Digamos que a partir desta entrada de leão, ao som do rugido verbalizado de uma leoa sem escrúpulos, o espectador fica na expectativa para ver o que o ainda jovem Hans irá fazer. No fundo, para melhor perceber quem será na verdade aquela pessoa que se sujeita a uma humilhação daquelas. Pois bem, a possível revelação não podia ser mais despojada de mistério, porque logo a seguir ao que vimos e ouvimos seremos introduzidos de rompante no pequeno e vulgaríssimo universo mercantil de um vendedor que deambula pelos quatro cantos dos pátios e ruelas que ligam os prédios pequeno-burgueses de Munique, local de encontros e desencontros com as manifestações rotineiras do quotidiano, consubstanciadas pela estranha presença da mulher de Hans, Irmgard (Irm Hermann), que ajusta caprichosamente as meias de nylon ao cinto de ligas como se fosse uma sedutora ao ataque de um macho disponível. Depois surge o passado, representado aqui pela aparição de uma outra mulher, que do alto de uma janela convida Hans a subir ao seu apartamento com um pacote de peras, aquela que iremos saber posteriormente ser o grande amor da vida de Hans. Ele lida mal com a pressão do passado, não escapa aos ciúmes de Irmgard e ao desprezo que muitos parecem querer despejar sobre o seu já de si vazio existencial. Por isso, não resiste e dirige-se ao bar mais próximo onde bebe, bebe para afogar a memória daquilo que foi e daquilo que não quer voltar a ser. Mas, chegado a casa, os demónios do álcool fazem-no verter sobre a mulher a violência das suas frustrações pessoais. Bate-lhe com desmesurada força, e a esta cena canalha assiste a filha, Renate (Andrea Schober), impotente, não obstante parecer bem mais adulta do que os pais, bem mais consciente do mal que invade aquele lar. Mas, na sua idade e dependência paternas, não pode assumir mais do que uma resignação forçada e incómoda, sem vislumbrar soluções de conciliação capazes de recuperar a frágil paz familiar. Devido ao sucedido, Hans será posto de lado pelo núcleo duro dos seus irmãos e pelo cunhado, será condenado sem surpresa pela mãe, e só Anna (Hanna Schygulla) o defende face aos seus interlocutores. Com inegável coragem, acusa-os de serem eles os seres verdadeiramente desprezíveis. Na verdade, o ponto fulcral desta ficção, no que diz respeito aos conflitos entre personagens, não se fica apenas pela constatação do óbvio. Pelo contrário, desde cedo que percebemos ser Hans o saco de pancada preferido de uma família cujas aspirações burguesas e de classe não encontram correspondência na vida modesta e demasiado simples de Hans, que outrora não seguira o desejo da mãe, o de ser um estudante aplicado de modo a obter um emprego digno da sua posição social, como se ouve a certa altura, e onde não fosse necessário sujar as mãos. Hans, que fora polícia sem grande sucesso por se meter em sarilhos com uma prostituta, sabe que não pode escapar ao destino que lhe reservaram os abutres que o preferiam ver arrumado a um canto, ou mesmo morto. No confronto verbal e físico com os familiares que protegiam a sua mulher, perde a cabeça e, ao usar a força de forma exaltada, cai redondo no chão, vítima de um ataque cardíaco. Procurava resgatar a mulher para o seu lado usando métodos pouco ortodoxos, mas o feitiço voltou-se contra o feiticeiro. Seja como for, algo de surpreendente acontece posteriormente, enquanto recupera no hospital. De facto, Irmgard parece querer recuperar a relação com Hans. Dá-se então uma inversão no modo como o passa a ver e acompanhar. Durante um breve período voltam mesmo a recordar o passado, onde ecoam a melodia e os versos singelos de uma canção, “Buona , buonna notte, podes ficar com o que quiseres”, um 45 rpm que Hans faz rodar no gira-discos e que lhes lembra dias felizes, os dias que antes pareciam irremediavelmente perdidos. Mas, felizmente, o realizador e argumentista não gostava de narrativas lineares e, mesmo antes de Hans regressar a casa, Irmgard engata um homem na rua e vai para a cama com ele, num frenesim sexual que contrasta com o modo quase casto da sua posterior relação com o legítimo. Digo eu que R. W. Fassbinder não gosta dos filmes em que as situações são desenhadas a preto e branco, mas ao entrar nas derradeiras sequências de O MERCADOR DAS QUATRO ESTAÇÕES, em vez de limar algumas das arestas que feriam as personagens no contexto mais vasto dos seus percursos narrativos, preferiu apostar numa caleidoscópica sucessão de imagens e sons de cores saturadas, rivalizando com a Direcção de Fotografia de Dietrich Lohmann, como saturada passou a ficar a própria acção com a invasão consentida de personagens, sobretudo masculinas, que espoletam um jogo de sombras e mentiras, em grande parte provocado pela perversa capacidade manipuladora de Irmgard. Num caso, a coincidência parece forçada. Hans, que depois do problema com o seu coração abandonou a vida de vendedor ambulante, contrata para o substituir, nem mais nem menos, o fogoso amante que fora para a cama com a mulher. Tudo bem, as coisas até pareciam correr de feição, até ao dia em que descobre que algo se passou na sua ausência. Num outro caso, um camarada da Legião Estrangeira opta por ficar ao serviço de Hans, e mais uma vez a sonsa Irmgard não se faz rogada e dirige-lhe olhares comprometedores. Seja como for, o status quo familiar, mesmo pairando ali a sombra da infidelidade, volta ao habitual e precário equilíbrio, só interrompido pelo crescente desespero de Hans que, não encontrando respaldo nos poucos que o apoiaram e incapaz de reatar a antiga e secreta paixão com a mulher das peras, perde o gosto de viver e vai lenta e progressivamente caminhar para a morte através do consumo excessivo de bebidas alcoólicas, que lhe estavam interditas. Nesta fase final, a realização não hesita sequer em inserir uma sequência supostamente rodada em Marrocos, com música a condizer, e que pessoalmente considero desnecessária, algo ridícula e mal dirigida, pouco ou nada credível, a não ser que se queira ler nas entrelinhas uma qualquer forma satírica de representação martirológica, sob a forma de flagelação, praticada por um guerrilheiro magrebino e negro que, ameaçador e de chicote em punho, lança o dito contra as costas do pobre Hans, salvo in extremis por dois legionários que, sinceramente, eu nunca recrutaria para a minha companhia militar, por se revelarem lentos e mais do que incompetentes no exercício de apontar ao alvo.

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O Mercador das Quatro Estações
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Dizem que, antes de rodar este filme, Rainer Werner Fassbinder viajou até Lugano, na Suíça, para se encontrar com um dos seus realizadores favoritos, o grande Douglas Sirk. Este filme, O MERCADOR DAS QUATRO ESTAÇÕES, seria o resultado desse encontro, associado ao visionamento de algumas das obras-primas do mestre, nascido Hans Detlef Sierck, em Hamburgo, no ano de 1897, cuja carreira nos Estados Unidos ficou marcada pela excelência dos seus melodramas, quase sempre de cinco estrelas. Mas, caros leitores, para além do nome Hans, quem sabe uma memória ou uma homenagem dessa relação entre os dois cineastas, neste filme e no seu final aparentemente feliz vejo mais o cinismo de um Luis Buñuel, e sobretudo o modo de ser e estar alemão que Douglas Sirk conhecia muito bem, mas a que deu a volta sem abandonar algumas das suas grandes componentes quando adaptou e inseriu a alma germânica nos valores defendidos pelo American way of life e, naturalmente, pela indústria de Hollywood. Enfim, vejo ainda a predominância das cores fortes do Eastmancolor, e algo que ainda fica mais claro: os filmes sobre pessoas comuns podem muito bem contar com personagens e situações que, no final das contas, se apresentam maiores do que a vida. Se calhar, foi isso mesmo que entusiasmou Rainer Werner Fassbinder, a quem a MEDEIA FILMES e a LEOPARDO FILMES, em boa hora, dedicaram um ciclo, subintitulado A FÚRIA DE VIVER.

O Mercador das Quatro Estações, em análise

Movie title: Händler der vier Jahreszeiten

Director(s): Rainer Werner Fassbinder

Actor(s): Hans Hirschmüller, Irm Hermann, Hanna Schygulla, Kurt Raab

Genre: Drama, 1971, 89min

  • João Garção Borges - 65
65

Conclusão:

PRÓS: De uma forma geral, o pulsar das emoções geradas por situações onde as diferentes facetas da solidariedade e da pulhice humana se conjugam com a vida cinzenta e pequenina de um homem pequeno, casado com uma mulher maior do que ele, mas só na estatura.

Magnífica cópia digital restaurada.

CONTRA: Há uma opção muito visível na direcção de actores, cuja consequência nos faz deter o olhar sobre o rosto dos actores em momentos chave da acção. Parece que o plano paralisa a realidade circundante, da mesma maneira que o corpo e o olhar das personagens. Não há montagem que resista a uma especulação visual assim, para o melhor e para o pior, e se por vezes o efeito obtido funciona, outras vezes essa espécie de freeze frame dinâmico desespera quem visiona, porque se perde algum do impacto e do ritmo subjacente ao processo de desenvolvimento da narrativa.

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