"A Ilha dos Silvos" | © LEFFEST

LEFFEST ’19 | A Ilha dos Silvos, em análise

Corneliu Porumboiu esteve em destaque nesta edição do Lisbon & Sintra Film Festival. Além de uma retrospetiva, o cineasta romeno veio apresentar a antestreia do seu mais recente filme. Depois de competir em Cannes, “A Ilha dos Silvos” assim chega a Portugal.

No contexto do Novo Cinema Romeno, Corneliu Porumboiu sempre se destacou como o mais adepto à comédia. Por entre observações realistas de uma nação corrompida por complicados passados históricos, os filmes deste cineasta sempre conseguem encontrar ora farrapos de otimismo ou epítetos de absurdo. No seu mais recente trabalho, Porumboiu não se deixou levar tanto pelo otimismo como pelo absurdo, usando o modelo do noir e do policial para tecer uma tapeçaria de enganos e performances sobrepostas, um circo de falsidade que frustra e entretém em igual medida. É um poema de corrupção e uma dança de engodo, um metafilme com um pé na tragédia e outro na paródia.

À moda de tantos clássicos de outros tempos, tudo começa com uma viagem a uma localização remota e misteriosa. Cristi é um detetive romeno de chegada à ilha atlântica de La Gomera, onde se diz ter nascido um idioma à base de assobios e silvos codificados. Essa é a razão da viagem, mas Cristi está longe de ser algum entusiasta da linguística. De facto, ele é um homem corrupto que foi enviado para Gomera como um menino em visita de estudo. Acontece que um esquema de lavagem de dinheiro foi interrompido pela infiltração da polícia e denúncias anónimas e agora uma pessoa chave no esquema internacional encontra-se atrás das grades.

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Como há escutas por todo o lado e câmaras a filmar os movimentos de todos, é necessário arranjar uma forma de comunicação completamente indecifrável. É aí que entram os silvos de La Gomera. Durante umas semanas solarengas, Cristi viverá na companhia de Gilda, sua cúmplice criminosa, e vai aprender com os mafiosos latinos a assobiar mensagens encriptadas. Se tudo correr bem, ele receberá um milhão conseguirá escapar às suspeitas dos colegas intrometidos das forças policiais. Se tudo correr mal, há uma alta probabilidade de a história vir a terminar com umas quantas balas na cabeça e valas comuns.

Trata-se de um clássico enredo noir polvilhado com absurdismos na forma dos assobios titulares. Porumboiu, no entanto, não se deixa ficar pela mistura de neo noir com a comédia dos silvos. O filme divide-se em capítulos, fragmentando a história por vários protagonistas, sendo que só Cristi serve de cola para manter tudo coerente. Ao longo desses capítulos, a ação vai dançando entre as complicações do presente e as revelações dramáticas do passado, sendo que flashbacks são quase tão comuns como a ação principal. O que é realmente fascinante é o modo como esta dança vai resultando num enredo bizantino, cheio de confusas traições e alianças precárias.

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Se alguém tentasse fundir a loucura incompreensível de “À Beira do Abismo” com a ação retorcida de “The Departed”, o resultado final era capaz de ser alguma coisa parecida com “A Ilha dos Silvos”. É claro que ao cocktail fica a faltar o tipo de humor seco que o realizador traz aos procedimentos narrativos e que os seus atores são tão exímios a sugerir. De facto, este elenco é feito de alguns dos melhores e maiores nomes do cinema romeno, com Vlad Ivanov a encabeçar a equipa com a sua interpretação penosa de Cristi. Ele tanto é um palhaço de expressão taciturna como um anti-herói com aspirações a ídolo romântico. A incomutabilidade de tais figuras só contribui para a estranha alquimia tonal do exercício, mas Porumboiu e Ivanov de algum modo conseguem que tudo resulte.

É claro que até o mais exímio dos engenhos tem os seus limites. Por muito que “A Ilha dos Silvos” se divirta com reviravoltas atrás de reviravoltas e constantes desconstruções, há sempre a ideia de que o filme seria mais proveitoso se abandonasse a vontade de tudo subverter pelo prisma da ironia autoral. Veja-se, por exemplo, as constantes referências a clássicos do noir e do filme criminal. Podemos esboçar sorrisos ao entender como Porumboiu evoca a femme fatalle de “Gilda” ou como ele parodia o assassínio icónico de “Psico”, mas é difícil não achar que tudo seria mais proveitoso se estivéssemos a ver uma homenagem mais direta e sincera. Adoraríamos ver este realizador confrontar um noir sem a necessidade de o cobrir com uma pátina de distanciação sardónica.

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Outro problema devém dos arquétipos desse cinema de género que “A Ilha dos Silvos” não tenta sequer transformar. A misoginia latente a muito do cinema criminal clássico é algo bem-sabido, pelo que é triste ver como Porumboiu não tenta subverter esse aspeto do projeto. Pelo contrário, o cineasta entrega-se totalmente aos impulsos mais lascivos que o argumento sugere e filma a nudez da sua sedutora com uma languidez perversa. Porventura isto poderia funcionar se a história não insistisse tanto em tombar para conclusões românticas à medida que o final de aproxima. Quando chegamos ao clímax emocional de “A Ilha dos Silvos”, é difícil interessarmo-nos totalmente pelo fado das personagens, quando uma delas é tão gritantemente um adereço sexual durante a maioria do filme.

Enfim, no esquema geral de prodígio cinematográfico, “A Ilha dos Silvos” é uma joia brilhante, mesmo que haja muitas falhas na sua superfície cristalina. A sua dimensão mais metatextual, onde a presença constante de câmaras faz de todas as personagens atores num filme para monitores de vigilância, tanto apimenta a proposta concetual como dilui os prazeres do cinema de género. Se estivéssemos a julgar o filme no contexto da obra de um realizador menos fantástico que Porumboiu, talvez víssemos mais mérito no trabalho. Só que, avaliando o filme face às outras obras-primas do cineasta, há algo de menor e insignificante no feito. Todos os realizadores têm os seus trabalhos menos sonantes e “A Ilha dos Silvos” é quem reclama tal desonra na carreira deste intrépido autor romeno.

A Ilha dos Silvos, em análise
a ilha dos silvos critica leffest

Movie title: La Gomera

Date published: 24 de November de 2019

Director(s): Corneliu Porumboiu

Actor(s): Vlad Ivanov, Catrinel Marlon, Rodica Lazar, Agustí Villaronga, Sabin Tambrea, István Teglas, Cristóbal Pinto, Antonio Buíl, George Pistereanu

Genre: Comédia, Crime, 2019, 97 min

  • Cláudio Alves - 72
72

CONCLUSÃO:

“A Ilha dos Silvos” é um noir desconstruído e entrecortado pelo humor seco do Novo Cinema Romeno. Há muito primor formal e atuações afinadas às demandas mais estranhas do argumento, mas o resultado final deixa um pouco a desejar. É prodigioso, mas empolga pouco, produz mais admiração respeitosa que o fervor de um verdadeiro fã.

O MELHOR: O engenho estrutural e a teia bizantina de engodos e trapaças.

O PIOR: O tratamento da figura de Gilda e a secura intransigente com que o argumento trata o seu protagonista. Falta a Cristi a afabilidade carismática dos melhores protagonistas de Porumbiu.

CA

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