A Jane Austen Tramou a Minha Vida – Análise
“A Jane Austen Tramou a Minha Vida,” também conhecido como “Jane Austen a gâché ma vie” e “Jane Austen Wrecked My Life,” é uma comédia romântica com um gosto literário e Camille Rutherford no papel principal. O filme marca a estreia da realizadora Laura Piani e teve a sua primeira apresentação no Festival de Toronto do ano passado.
A relação do público com a arte pode ir muito além daquelas primeiras impressões que tanto produzem êxtase quanto desilusão. O entretenimento dá prazer, mas o que perdura normalmente é mais profundo que a simples fonte de regozijo temporário. Fora os deleites efémeros, há arte que mexe connosco em jeitos tão pessoais que faltam palavras para descrever o fenómeno. A arte pode mudar-nos muito, a mentalidade e a ideia tida sobre nós mesmos e o mundo em redor. A arte pode ser amiga e paixão, companheira para a vida, abalo e reconforto. Tudo depende de cada um, tanto do objeto artístico como daquele que o aprecia.
Para Agathe, a arte que a marcou será a palavra de Jane Austen, essa autora inglesa do final do século XVIII e princípios do XIX cuja prosa se imortalizou em títulos como “Sensibilidade e Bom Senso,” “Orgulho e Preconceito,” “Emma” e “Persuasão.” Depois de os pais morrerem num acidente de carro, foram os livros que lhe ficaram, como que perpetuando a presença paterna sob a forma de estantes bem recheadas. Mas Austen foi sempre o principal ponto de obsessão e instrução pessoal, definindo as espectativas da mulher perante o romance, do carnal, da relação entre os sexos num mundo moderno que não será assim tão diferente do antigo.
Oxalá a vida fosse um livro de Jane Austen.
Foi Austen quem lhe inspirou o amor à literatura, que a levou a trabalhar na famosa livraria Shakespeare and Company de Paris e a escrever histórias de amor nos tempos livres. Um desses contos parte do pensamento fugaz que teve ao contemplar um copo de aguardente num restaurante chinês, refeição solitária que se tornou na terra fértil de onde novas narrativas germinam. Félix, seu amigo, colega e ocasional amante, pega nessas mesmas páginas e candidata Agathe a uma residência artística organizada pelos descendentes distantes de Austen. Ela ganha lugar e, surpreendida com o convite, parte rumo a Inglaterra, onde deverá tentar desenvolver a escrita.
Mas é evidente que isso não acontecerá. Porque a vida de Agathe nesta história se rege em função da bibliografia Austeniana e aí há contos sobre leitoras, mas não sobre escritoras. Os reflexos entre a ficção dentro da ficção e a realidade ficcionada da ação principal recordam estudos de clássicos ressonantes à la “Vale Abraão” ou “As Horas.” Contudo, complicam mais a coisa pelo conflito entre os valores do passado e as neuroses de quem tenta namorar no século XXI. Assim, “Jane Austen Tramou a Minha Vida” emerge como uma comédia romântica em reflexão quase académica ao mesmo tempo que canta o amor sincero pelo trabalho da autora titular.
Fãs desses livros reconhecerão muitas referências, ecos, na estrutura e nas personagens deste filme que marca a estreia de Laura Piani enquanto realizadora e argumentista de longas-metragens. Agathe relembra Lizzie Bennet, mas também se afigura enquanto herdeira sentimental de Catherine Morland. Félix é um Sr. Knightley repensado, com rasgos de Wickham de vez em quando. No que se refere a Oliver, um dos anfitriões da residência artística, fica a dúvida se é mais Darcy ou Willoughby. A conclusão da comédia romântica dependerá dessa distinção, mesmo que Agathe se veja mais refletida na “Persuasão” que nos outros trabalhos de Austen.
Digo isto sem querer dar a passar a ideia de que quem não está familiarizado com esses livros centenários não terá como entender a fita. “Jane Austen Tramou a Minha Vida” é um filme perfeitamente acessível e uma comédia bem persuasiva também. Os colegas de Agathe na residência, por exemplo, são caricaturas esboçadas com poucas linhas, figuras simples de impacto forte e manias risíveis. Na sua abrasão interpessoal, surge não só a piada, mas ainda uma tese contra a intelectualização da literatura quando a relação com o leitor pode ser tão mais primordial que a razão. Há ainda um velhote que declama poemas de rabo ao léu se for preciso um gesto cómico mais declarado.
Pub
Uma carta de amor à literatura que nos comove.
Muita desta alquimia tonal depende do elenco, especialmente os atores secundários que orbitam em torno de Camille Rutherford como Agathe. Pablo Pauly e Charlie Anson são esplendorosos como os seus pretendentes, enquanto Alan Fairbairn dá forma às excentricidades do senhor da residência Austen. Até Frederick Wiseman, esse célebre mestre do documentário, se afirma como um grande ator, aparecendo para a última cena do filme, onde lê um poema no seu jeito seco, mas não, por isso, menos sentido. Verdade seja dita, Rutherford é a atriz menos superlativa da equipa, em parte porque Agathe é a personagem mais complicada de todas.
Se a atriz tem dificuldade em articular tudo o que vai dentro da alma desta heroína romântica, a mise-en-scène de Laura Piani compensa quaisquer insuficiências. O modo como a realizadora negoceia as relações entre personagens e seus espaços merece grande aclamação. Já se denota essa qualidade quando o filme se perde nas ruas de Paris, mas ganha nova pujança na chegada a Inglaterra. Entre jardins de desenho oitocentista e papel de parede em padrões do início do século XX, transmite-se uma ideia de bolha fora de tempo e da História com “h” maiúsculo. Não é bem um espaço liminar, mas quase. Pelo menos, em termos narrativos.
Isto chega ao seu auge em dois momentos específicos. Primeiro, há um baile em trajado de época, como se “A Jane Austen Tramou a Minha Vida” se tivesse transfigurado numa adaptação direta da autora. Até o engenho de uma dança onde a gente ao redor desaparece e só os amantes ficam à vista da câmara remete para o “Orgulho e Preconceito” de Joe Wright. Noutra cena, mais perto do fim, o movimento dos corpos através da composição marca a diferença entre o desgosto amoroso e a euforia, o desvendar de um final feliz quando a melancolia já parecia assegurada. A elegância de Piani no ecrã quase rima com a elegância de Austen na página. Perante esta obra, não haverá maior elogio que esse.
Pub
A Jane Austen Tramou a Minha Vida
Conclusão:
Pub
- “A Jane Austen Tramou a Minha Vida” é uma carta de amor à sua autora titular e também a todos aqueles que se apaixonam por obras de arte e as deixam transformar a vida. Laura Piani tem grande estreia na realização, provando que é possível abordar a comédia romântica com disciplina formal e a elegância classicista de outros tempos. O trabalho com cenografias e figurinos, contrastes de cor e a relação do ator no espaço, merece especial elogio.
- Camille Rutherford faz o que pode no papel principal, mas é sempre ofuscada pelo elenco secundário, incluindo os dois homens que orbitam em torno da sua Agathe como luas dançando em torno da Terra. Outros nomes como Alan Fairbairn e Lola Peploe humanizam as excentricidades das figuras mais periféricas, enquanto Frederick Wiseman remata a história com uma coda poética.