©The Stone and the Plot

Senhora Ogin, em análise

A celebração da carreira de Kinuyo Tanaka continua, agora com a exibição de “Senhora Ogin” no ciclo dedicado a honrar a realizadora!

O SINAL DA CRUZ…!

Produzido por companhias independentes, mas distribuído por uma das mais sólidas e importantes majors japonesas, a SHOCHIKU, a derradeira longa-metragem da actriz e realizadora Kinuyo Tanaka, um gidai-geki (filme de época) intitulado OGIN-SAMA (SENHORA OGIN), 1962, situa a acção no final do Século XVI, numa altura em que no Japão os cristãos começaram a ser perseguidos e discriminados. Trata-se igualmente de uma época que assistiu a grandes conflitos internos que alteraram de forma drástica o xadrez político e económico, impondo novas áreas de influência e uma nova ordem de valores (para além das clivagens religiosas) onde sobressaíram personalidades das áreas civis e militares num vendaval de permanentes disputas nos meandros do poder material e espiritual. Para uma visão mais precisa, consideremos esta breve cronologia, em que Portugal desempenhou um papel com alguma importância: 1543 – Mercadores portugueses chegam a Tanegashima. Introdução das armas de fogo. São Francisco Xavier chega a Kyuchu e propaga o Cristianismo. 1571 – O porto de Nagasaki abre-se ao comércio dos portugueses. 1573 – Fim do Shogunato de Ashikaga. Tentativa de reunificação do país por Nobunaga Oda. 1582 – Nobunaga é assassinado. São enviados embaixadores a países europeus e ao Vaticano. Chegada de espanhóis, ingleses e holandeses. 1586 – Hideyoshi Toyotomy arrebata o poder e proíbe o Cristianismo. Rikyu Sen codifica a Cha no yu, a cerimónia do chá. 1590 – Hideyoshi unifica o Japão.

Lê Também:   IndieLisboa ’23 | Crónicas Curtas #5

Senhora Ogin
©The Stone and the Plot

Deste modo, correspondendo ao enquadramento histórico da Era de Azuchi Monoyama, SENHORA OGIN, de forma muito económica mas eficaz, logo no seu plano de abertura mostra uma cena de batalha com armamento moderno, as ditas armas de fogo, e nesse único plano fixo a realizadora dá-nos a ver a matéria necessária e suficiente para contextualizar a atmosfera conturbada que irá servir de pano de fundo próximo ou remoto do que veremos a seguir. Todo o filme será concebido sob uma sólida base histórica mas com a deliciosa artificialidade que marca os cenários construídos em estúdio, promovendo assim a visão de um universo de geometrias rigorosas e fechado sobre si próprio, onde as personagens que se movimentam nos multifacetados espaços de interiores, mundanos ou palacianos, apenas saem para o exterior numa situação limite ou quando as convulsões da acção a isso as obriga. Nesta dialéctica de décors naturais e exteriores naturais, não obstante cenografados, iremos acompanhar o percurso da filha adoptiva de Rikyu Sen (o referido mestre da ritualizada cerimónia do chá) a senhora Ogin (Ineko Arima), e daremos conta da sua dissimulada paixão, durante anos nunca consumada, por um homem casado, Takayama Ukon (Tatsuya Nakadai), guerreiro samurai, quase fanático na afirmação muito pessoal da fé cristã que decidiu abraçar. Para Ogin não se apresenta fácil o caminho para o coração daquele que ama, sempre que procura passar dos sentimentos aos actos, revelando nas suas palavras a disposição de ampliar esta relação para um plano mais material do que espiritual. Na verdade, o seu interlocutor não parece disposto a quebrar as convicções inerentes ao seu perfil feito de fervor religioso, barreira pessoal que o impele a rejeitar os avanços de Ogin. Numa sequência decisiva veremos como os dois voltam a falar deste assunto. Mas, quando isso acontece, de forma muito inteligente fora introduzido no argumento um importante e decisivo conflito dramático que irá ser determinante no futuro, quer do senhor Ukon, quer da senhora Ogin. De facto, sabemos que Ogin foi compelida a casar com um rico mercador, Muneyasu. E Ukon, questionado por Ogin a esse respeito, não se opõe. Mas obviamente os espectadores nesta altura sabem que essa não passa de uma evasiva que o homem, atormentado pela ideia do pecado, já não consegue lançar pela boca fora sem o peso da má consciência a devorar-lhe a alma. No fundo, por causa do que sabe e não sabe a propósito do planeado casamento. De algum modo ele fora e continuava a ser cúmplice de uma situação que acabaria por se concretizar. Depois de consumada a “separação” de uma união que nunca fora mais que um fogo que arde sem se ver concretizado numa mais carnal intervenção, o círculo deveria fechar-se sobre Ogin que, uma vez casada, estaria condenada para sempre a um falsa aparência de estabilidade matrimonial. Mas não, a senhora Ogin, no papel de mulher do arrogante Muneyasu, não esqueceu o seu verdadeiro amor e isso faz com que seja literalmente oferecida pelo marido (que sabe muito bem da prolongada e até diríamos desalmada e sublimada paixão) ao general Hideyoshi, o homem forte do momento que não gosta de ser contrariado nos seus caprichos, nomeadamente de natureza lúdica e lúbrica.

Senhora Ogin
©The Stone and the Plot

Nas derradeiras sequências de SENHORA OGIN, a mulher que desejara o sexo e nunca o substituíra por qualquer consolação abstracta de carácter religioso, indo mesmo ao ponto de abandonar o uso do rosário e a cruz que o seu amado lhe dera e que na prática correspondia a um símbolo material de abstinência, veste-se de luto e para os devidos efeitos assume o sacrifício ritual e supremo que a sua consciência lhe dita para evitar ser um mero objecto de prazer nas mãos de um autocrata que ela naturalmente despreza.

Lê Também:   IndieLisboa ’23 | Crónicas Curtas #2

Kinuyo Tanaka estava aqui a propor mais uma vez uma reflexão muito séria e acutilante sobre a condição feminina, sem no entanto a dissociar das diferentes faces da condição humana. Fê-lo com o apoio de uma Direcção de Fotografia perfeitamente compatível com o jogo da mise-en-scéne, que muito deve aos métodos de encenação do Teatro. Mesmo nas sequências em que sai para o exterior sente-se que a realização procura na Natureza os locais que se levantem como pano de fundo, um ciclorama natural de cores fortes, para destacar o muito burilado jogo de interpretação dos actores. Magnífico o momento em que Ogin vê, primeiro ao longe e depois mais perto, uma fila de soldados em procissão que vigiam uma mulher condenada porque ousara rejeitar as manhas sedutoras de um nobre. Está ali, perante os olhares dos que passam, atada ao dorso de um cavalo. Logo atrás, um desgraçado carrega a pesada cruz onde ela vai ser executada. Esses planos iluminados por uma luz crepuscular são o ponto de viragem na percepção da vida futura que Ogin passa a defender para si na relação com os outros e os homens em particular, a sua verdadeira profissão de fé, ou seja, a de que uma mulher pode mas não se deve render perante os ataques a uma das mais preciosas marcas identitárias, a dignidade e a liberdade de escolhermos o nosso próprio destino.

Senhora Ogin
©The Stone and the Plot



Senhora Ogin, em análise

Movie title: Ogin-sama

Director(s): Kinuyo Tanaka

Actor(s): Ineko Arima, Tatsuya Nakadai, Ganjirô Nakamura

Genre: Drama, 1962, 102min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Tudo o que apontei. Mais o que propositadamente aqui não disse e deixo aos potenciais espectadores para descobrir. Não percam este e os restantes filmes da INTEGRAL KINUYO TANAKA, um ciclo de seis filmes que merece a nossa melhor atenção e cuja organização mais do que justifica o nosso apoio solidário.

CONTRA: Nada.

Sending
User Review
0 (0 votes)

Leave a Reply