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A Voz das Mulheres, em análise

“A Voz das Mulheres”, protagonizado por Frances McDormand e Claire Foy, é um dos candidatos favoritos ao Óscar de Melhor Filme!

Nem sempre acontece no circuito comercial português, mas este ano os dez candidatos ao Óscar de Melhor Filme ainda podem ser vistos ou revistos antes da entrega das cobiçadas estatuetas no próximo dia 12 de Março, no Dolby Theatre de Los Angeles. Ritual que será visto por uma larga maioria através do pequeno ecrã e, em certos fusos horários como o nosso, na madrugada do dia 13. Seja como for, não há melhor maneira de assistir ao quadro anual das grandes linhas de orientação e valorização da produção cinematográfica ditadas pela Academy of Motion Pictures Arts and Sciences do que a emissão da cerimónia em directo. Porque, em diferido, as partes menos vibrantes, quase sempre acabam por nos dar aquela comichão nos dedos que nos convida a carregar no botão do fast forward.

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NO SILÊNCIO, O ECO DAS PALAVRAS NÃO DITAS!

Dito isto, saudemos a estreia em sala de WOMEN TALKING (A VOZ DAS MULHERES), 2021, realizado pela canadiana Sarah Polley. Para os devidos efeitos, concorre ao Óscar de Melhor Filme, prémio atribuído aos chamados valores de produção, conceito que não se refere apenas aos valores pecuniários, mas sim a um conjunto de factores que fazem parte da estrutura de uma obra cinematográfica e que, em grande medida, podem beneficiar do maior ou menor investimento financeiro. Por isso quem sai premiado aqui são os produtores no sentido preciso e no sentido lato da palavra. Numa categoria relacionada mais de perto com a componente artística, WOMEN TALKING concorre igualmente ao Óscar de Melhor Argumento Adaptado. Foi a própria Sarah Polley que se encarregou da adaptação a partir do romance homónimo de Miriam Toews, compatriota da realizadora. Trata-se de uma obra que se refere aos graves acontecimentos registados na Manitoba Colony, ofensas sexuais sob a forma continuada de violação de mulheres no seio de uma comunidade cristã evangélica, fundada na Bolívia por um grupo de Mennonites (Menonitas ou Mennonitas), movimento ultra-conservador que segue o pensamento de Menno Simons (1496-1561) e que deriva do movimento anabatista que surgiu na Europa no Século XVI, no mesmo período da Reforma Protestante. Os seus membros estão espalhados por diversas regiões do globo, mas com alguma e significativa presença na América Central e do Sul. E a propósito, sobretudo para os mais cinéfilos, deixem-me aqui convocar a memória do filme STELLET LICHT (LUZ SILENCIOSA), 2007, realizado por Carlos Reygadas. Recordo ainda que este filme contou com a participação da escritora Miriam Toews no papel de uma mulher integrada numa comunidade Menonita, desta vez localizada no México.

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A Voz das Mulheres
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No actual A VOZ DAS MULHERES, ao início vemos o plano de uma jovem que acorda pela manhã. Está deitada na cama e aquilo que logo pensamos, ao vê-la numa posição e num desalinho de panos que denuncia sinais de violência na sequência de um qualquer acto sexual não consentido, será confirmado pouco depois pelo que se ouve da boca de um grupo de mulheres apostadas em confrontar um sistemático conjunto de prepotências levadas a cabo ao longo de vários anos por homens que de uma forma constante delas abusavam. Para melhor as dominarem, os prevaricadores usavam um líquido sob a forma de spray, destinado a anestesiar animais de grande porte, que espalhavam nos quartos das suas mulheres e filhas. Durante anos, mulheres casadas, assim como as suas filhas e mães, foram violadas por machos acomodados e escudados em preconceitos de superioridade de género, ideologia reforçada pelo facto de nestas comunidades se atribuírem privilégios ao mundo masculino, negados ao universo feminino como, por exemplo, o acesso a uma educação e a uma escolaridade digna desse nome, enfim, ao simples e natural exercício de saber ler e escrever. Para ocultar a verdade das suas incursões criminosas, os brutamontes diziam que não eram eles que as violavam, mas sim uns fantasmas e, claro está, acusavam igualmente o Diabo, retratado mais uma vez como o mal absoluto e invisível. Por fim não podia faltar o lançar de culpas sobre as vítimas com base na clássica acusação de sofrerem de histeria, que supostamente alimentava as mais diversas fantasias emanadas das fracas mentes das suas companheiras. Mulheres com aptidões “naturais” para o serviço do lar, e “naturalmente” para a procriação, mas frágeis quando comparadas com a pujança física e mental (leia-se, autoritária e falocrática) do dono da casa, aquele que no fundo procurava na sua “natural” arrogância saciar os desejos mais hirsutos e até, quem sabe, as frustrações de que ninguém falava ou ousava falar. De facto, de forma irónica e provocadora, uma frase inserida nos primeiros minutos do filme refere os acontecimentos a que iremos assistir como: What follows is an act of female imagination” (O que se segue é fruto da imaginação feminina). Na verdade, pode ser múltipla a leitura que se faz dessa pseudo-confissão, mas pessoalmente creio que ela se pode interpretar como uma palavra de ordem a favor do poder pessoal que a voz das mulheres representa no contexto objectivo da discussão subjectiva que as leva a vislumbrar, ou imaginar, um outro projecto de vida, uma solução para alterar o seu destino. Facto que será sublinhado nos depoimentos e na força da sua expressão livre, na afirmação da sua personalidade individual e colectiva, no poder de decisão que experimentam através da votação num plano que se irá concentrar sobretudo nas alternativas: Opção 1 – Ficar e aceitar o destino com a mesma passividade e atitude de outrora. Opção 2- Ficar e enfrentar os homens responsáveis pelas atrocidades cometidas logo que eles regressassem da quarentena a que foram forçados, resultado da prisão a que alguns foram sujeitos e que outros homens, igualmente ausentes, procuravam resgatar com o pagamento das respectivas fianças. Opção 3 – Partir e abandoná-los, levando consigo apenas os filhos e filhas, crianças e adolescentes. Nesta roda de mulheres reunidas para julgar as vicissitudes passadas e presentes, maioritariamente dispostas a questionar a falsa redoma e o falso Jardim do Paraíso onde era suposto viverem imunes aos pecados do exterior, encontramos vozes contraditórias, discordantes umas vezes, confluentes outras. Todas de uma maneira ou de outra perfilavam esta discussão num momento em que a ausência dos homens abrira uma janela de oportunidade para elas assumirem opiniões antes reprimidas. Não seria expectável um fácil e rápido consenso. Tinham sido muitos anos de lavagem ao cérebro, e algumas chegam mesmo a agitar o medo de serem excomungadas e excluídas da colónia caso não perdoassem os homens, incluindo os que as haviam ofendido. Será neste ambiente e nesta atmosfera lúgubre e cinzenta (que a Direcção de Fotografia de Luc Montpellier acentua, diminuindo a saturação das cores) que cada ideia, cada frase, cada olhar ganha um peso pouco comum, consequência do assumir de responsabilidades que as protagonistas não estavam habituadas a gerir. Pouco a pouco, o espaço onde se reúnem passa a ser o local onde se confrontam as diferentes personalidades e se distinguem as diferentes opções. Desde a mais radical, que defende a luta numa base bíblica do olho por olho, dente por dente, até ao grupo maioritário que apresenta posições mais moderadas, mas nem sempre reveladoras de bom senso ou de uma perspectiva segura, minimamente viável, sobre o caminho alternativo a seguir. Os seus pareceres são antes um difícil exercício de angústias e dúvidas existenciais, visões contraditórias sobre a condição humana e a complexidade da sua posição no interior de um círculo espiritualmente muito apertado. Muitas receavam perder a batalha pela dignidade, que fora ameaçada e ofendida, por irem contra a sua fé. E as actrizes que dão voz a estes dilemas são sobretudo Claire Foy, Rooney Mara, Jessie Buckley, Sheila McCarthy, Judith Ivey e Michelle McLeod. Representam as peças soltas de um mosaico que se desenha passo a passo, minuto a minuto e que, a partir de certa altura, nos leva a ser cúmplices ou críticos do que por ali se diz e acontece. No campo oposto, Frances McDormand representa aquela que nada quer mudar e que, por isso, se afasta gradualmente da discussão. Mas o filme não a deixa sozinha, como uma carta fora do baralho de um jogo que ninguém, nem ela, quis jogar. No seu rosto vemos uma cicatriz que nos revela, sem revelar, ou seja, sem necessidade de verbalizar seja o que for, que aquele estigma será porventura a causa do seu silêncio, da sua visão imobilista. Da persistência do seu pensamento que ficou enterrado num passado mais ou menos distante. Trata-se de uma personagem até certo ponto negativa, porque a sua pacificação moral está em contramão com a que as outras mulheres pior ou melhor defendem. Mas a realização não retira a importância que a sua atitude reaccionária contempla, a de podermos reflectir sobre o que leva alguém a contrariar a procura de uma solução que ponha fim a um inqualificável estado de coisas. Ou, em última análise, sobre a incapacidade de exteriorizar a condenação dos crimes de abuso sexual que ninguém, nem ela, deviam ignorar, quanto mais aceitar.

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A Voz das Mulheres
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Neste filme de muitas palavras, onde a voz das mulheres se impõe dominante no processo narrativo, encontramos a vontade de fazer prevalecer a força e o poder de um grito de revolta feminino, não necessariamente feminista, capaz de romper o silêncio sobre uma realidade específica do ponto de vista social e religioso. Mas, se analisarmos com rigor algumas das vertentes seculares das sociedades ditas abertas nas quais vivemos, esse grito não se resume ao eco de um mero confronto de homens e mulheres no interior de uma micro-sociedade fechada. Estamos aqui perante uma luta que importa destacar entre civilização e barbárie. Infelizmente, a voz das mulheres, por si só, não pode sair vencedora, seja em que contexto for, sem a presença da voz dos homens que a complemente. Nesta ficção existe uma dicotomia homem mau/mulher vítima demasiado patente, que diminui a eficácia da denúncia e consequente luta contra as agressões que as vozes femininas amplificam. Por isso mesmo, a única personagem masculina relevante, um membro da comunidade que estudou no exterior e que regressou para dar aulas aos futuros homens fortes da colónia, figura interpretada por Ben Whishaw, podia e devia ter uma presença mais activa, ainda que a sua missão fosse apenas a de registar em acta a vontade expressa das mulheres (porque elas não sabiam ler nem escrever) sobre se deviam sair, lutar ou ficar. Podia e devia, para não ficar isolado como vai ficar no final, não obstante ser compreensível a sua aparente sujeição ao status quo dominante. Um pouco mais de subversão das regras da dialéctica entre géneros não ficava nada mal a este filme denso e corajoso que, por outro lado e sem qualquer hesitação, merece um visionamento atento e solidário.




A Voz das Mulheres, em análise
A Voz das Mulheres

Movie title: Women Talking

Director(s): Sarah Polley

Actor(s): Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Frances McDormand, Judith Ivey

Genre: Drama, 2022, 104min

  • João Garção Borges - 65
65

Conclusão:

PRÓS: Inspirado em factos reais. Trata-se de um filme de actores, neste caso sobretudo de actrizes, que carregam aos ombros a responsabilidade de dar corpo e alma ao que a realizadora Sarah Polley delineou na planificação e no argumento, escrito e adaptado a partir do romance homónimo de Miriam Toews.

CONTRA: Nada de essencial. Direi apenas que podia ir muito mais longe na subversão das regras existenciais que impunham a sua lei no interior da visada comunidade Menonita, no seu modelo de comportamento sectário, onde os valores impostos são os de uma sociedade que se quer imune às convulsões da História com H grande. Só que, ao contrário do que pregam os seus mentores, aqui o pecado não mora ao lado nem vem necessariamente do exterior. Na verdade, circula desvairado no seio e no círculo íntimo daqueles que insistem em perpetuar a segregação entre homens e mulheres, um autêntico paraíso infernal onde assumem em segredo actos de violência sexual. Modo de ser que encontra raízes na mais grotesca distorção dos preceitos e sobretudo preconceitos da sua opção ideológica e religiosa, a matriz que formata os dias cinzentos e as negras noites do seu peculiar estilo de vida.

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