Anora, a Crítica | Mikey Madison é a grande heroína da classe trabalhadora
Mikey Madison é uma força da natureza em “Anora”, a Palma de Ouro entregue em 2024 pelo Júri presidido por Greta Gerwig no Festival de Cannes. Sean Baker apresenta-nos uma insana odisseia onde a classe trabalhadora está uma vez mais na linha da frente.
Com escolhas mais seguras entre o leque de filmes que estrearam e competiram em Cannes no mês de maio deste ano, “Anora”, de Sean Baker (“Red Rocket”, “The Florida Project”), uma comédia dramática epopeica que atravessa uma Nova Iorque feita de contrastes no espaço de um dia, singrou-se vencedor e a partir daí desenhou para si um trajeto com dezenas de festivais, de Telluride a San Sebastián, do TIFF ao Festival de Nova Iorque e bem mais além.
A obra é meritória do seu lugar ao sol, recuperando de forma eficaz temáticas já exploradas por Baker, nomeadamente em “Tangerine” (2015), a sua comédia criminal em que também dignifica as trabalhadoras do sexo.
Anora | Uma força da natureza desde os primeiros planos
Nesta longa-metragem que agora chega à distribuição comercial em Portugal, com estreia a 31 de outubro, Sean Baker apresenta-nos a tumultuosa, vibrante e irresistível Anora, uma dançarina exótica de 23 anos.
Conhecemo-la numa cena longa de cinco minutos, no clube de strip onde trabalha, uma sequência inicial desde logo hipnotizante e ironicamente musicada ao som de “Greatest Day” dos Take That. O arranque continua a tradição de escolhas musicais inesperadas e complementares por parte de Baker e da sua equipa (ao fim de contas “Bye Bye Bye” dos N*Sync foi usado em “Red Rocket” e “All the Things She Said” figura também em”Anora”).
Eis que a música, o ambiente colorido do clube de strip, e a beleza e atractividade da protagonista são apenas os primeiros elementos a chamar-nos para esta comédia que recupera elementos da progressão Screwball (embora não nos temas ou paradigmas sociais, onde herdeiras se apaixonam por homens ‘working class’) num ambiente negro, para nos trazer primeiro uma semana louca, e posteriormente o espaço de um dia, onde a vertigem de eventos é cada vez mais intoxicante, perigosa e hilariante ao mesmo tempo que verdadeiramente tenebrosa.
E embora o prémio de melhor representação em Cannes tenha sido entregue, de forma coletiva, ao elenco de “Emilia Pérez”, Mikey Madison (“Era Uma Vez em Hollywood”, “Scream”), a intérprete heroína da classe trabalhadora deste filme, é uma força motriz absolutamente indispensável e memorável, com a capacidade para se poder distinguir nas premiações mais independentes da próxima temporada que agora vai entrando.
Sean Baker no reino (des)encantado de uma Cinderella de Brooklyn
Mas quem é a protagonista desta aventura trágico-cómica? Anora, que rejeita o seu nome russo, utiliza a alcunha Ani, é uma jovem dançarina exótica que um dia tem o seu “melhor dia” e conhece o filho de um oligarca russo no estabelecimento noturno onde dança. Depois de uma noite com várias lap dances e após algumas visitas à impressionante mansão do jovem de 20 anos, Ivan, o herdeiro (Mark Eidelstein como uma verdadeira revelação) decide propor a Ani uma semana de excessos, sexo e deboche em troca de 10 mil dólares, a qual a nossa protagonista abraça entusiasticamente.
Numa viagem espontânea a Las Vegas, o caótico, mimado e infantil Ivan propõe casar-se com Anora, que vê desenhar-se uma hipótese para uma nova e melhor vida, longe de Brooklyn e na gigante mansão que na realidade pertence aos pais de Ivan e não ao próprio. Uma vez que a notícia do casamento se espalha pelo jet set russo, o seu conto de fadas deturpado começa a despedaçar-se, à medida que os capangas dos pais fazem de tudo para que o casamento seja anulado.
Um elenco fora de série
Subvertendo expectativas com um argumento inteligente, absolutamente hilariante em certos momentos e dilacerante noutros, Sean Baker (que mantém um enorme controlo criativo, como o artista indie que é – escrevendo, realizando, editando e fazendo casting da sua obra) propõe uma abordagem distinta de mafiosos e figuras maléficas que podemos encontrar em filmes afins. Tudo isto é personificado através da mais impactante personagem secundária, o capanga arménio Igor (Yura Borisov).
Esta é uma personagem que nos é introduzida como uma ameaça, que surge para “capturar” Anora e para recuperar, a qualquer custo, mediante potencial ameaça física para terceiros, um Ivan que infantilmente fugiu dos seus problemas e que deve ser encontrado numa viagem contra o tempo. Igor acaba por ser um contraponto para toda a falta de apoio e desilusão que obrigaram a que Ani se torne a gigante guerreira que é.
A dinâmica essencial entre Ani e Ivan é subtilmente representada desde a primeira cena em que contracenam, de forma a que a recompensa emocional se faça sentir, bem forte, quando chegamos à cena final onde a comédia dá lugar a uma dor perfurante e que, na realidade, sempre esteve lá ao longo de todo o filme. É aqui, com a personagem interpretada por Yura Borisov que a crueldade encontra um pouco de bondade e onde se desenha um inesperado porto seguro que enriquece a história.
A trágica comédia de Sean Baker
Com um desenlace emotivo e um elenco fortíssimo, “Anora” caracteriza-se como uma comédia verdadeiramente trágica. Se encararmos o filme como um drama, sobre uma mulher da classe trabalhadora brutalmente enganada e violentada, então corremos o risco de não nos rir uma única vez. Mesmo perante um argumento tão bem montado, e com tantas tiradas cómicas, especialmente proferidas pelo divertido Ivan de Mark Eidelshtein. Esta ambivalência está sempre presente, com o riso a confundir-se com um frio na barriga que tanto dirá, por exemplo, às mulheres que vejam “Anora”.
Mikey Madison encarna a mais resiliente das protagonistas, e ao longo do filme, a sua Ani torna-se cada vez mais completa enquanto personagem. As suas motivações, a sua força, mas também a sua fragilidade. Tudo isto fará com que fique connosco, marcando o ano cinematográfico e elevando o próprio material original de Baker, por si só astuto antes de ser povoado por três forças vibrantes na interpretação – Madison, Eidelshtein e Borisov.
“Anora”, Palma de Ouro em 2024, chega aos cinemas no dia 31 de outubro. Como filme mais nomeado aos já anunciados Prémios Gotham, vemos também um enorme potencial para que este seja um dos filmes da próxima temporada de prémios!
Anora, a Crítica
Movie title: Anora
Movie description: Anora, uma jovem trabalhadora do sexo em Brooklyn, tem a oportunidade de viver uma história de Cinderela quando conhece e casa impulsivamente com o filho de um oligarca. Quando a notícia chega à Rússia, o seu conto de fadas é ameaçado quando os pais do noivo partem para Nova Iorque para anular o casamento.
Date published: 30 de October de 2024
Country: EUA
Duration: 129'
Author: Sean Baker
Director(s): Sean Baker
Actor(s): Mikey Madison, Mark Eidelshtein,
Genre: Comédia, Drama
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Maggie Silva - 80
Conclusão
“Anora” é uma comédia trágica que nos levará a rir e a sentir calafrios num mesmo take. É uma vez mais uma dignificação da classe trabalhadora operada por Sean Baker, onde a figura feminina central não verga nunca perante as mais inconcebíveis provações. Mikey Madison é esplêndida.
Pros
- As prestações do elenco central, de Madison às figuras que orbitam em seu torno;
- A progressão da narrativa e o seu catártico final;
- Uma forte identidade e coesão com as temáticas que Baker tem vindo a acentuar na sua obra.
- Argumento abençoado, com tiradas cómicas infalíveis umas atrás das outras.
Cons
- Anora, ou Ani, é atormentada ao longo de todo o filme e rimo-nos das suas provações nesta comédia particularmente dramática. A certa altura, quando chegamos ao clímax emocional, é inevitável sentir um certo desconforto que parece inibir a experiência de quem vê e de quem a acompanhou ao longo de toda esta jornada.