TIFF ’24 | Life of Chuck, O Robot Selvagem e as despedidas de Toronto
“The Life of Chuck” ganhou o Prémio do Público no TIFF, desestabilizando a corrida para os Óscares. Também “O Robot Selvagem” se revela favorito, um possível campeão na categoria de Melhor Filme de Animação.
É impossível exagerar o impacto que as audiências do TIFF têm na temporada dos prémios. Há cerca de uma década que o Prémio do Público (People’s Choice Award) resulta quase sempre em sucesso na corrida para os Óscares, com múltiplos nomeados a Melhor Filme entre os honrados. Por isso mesmo, os resultados desta edição vieram surpreender os peritos e desconjuntar as previsões de muitos. “The Life of Chuck,” uma adaptação de Stephen King com assinatura de Mike Flanagan, foi o grande vencedor, derrotando vários concorrentes de peso. Trata-se de uma biografia ficcional em trajetória contrária, começando no fim da vida e terminando na sua génesis.
Só há uma questão – o filme ganhou o festival sem ter distribuidora, nem a nível mundial, nem nos EUA. Com grandes nomes atrás das câmaras e uma estrela como Tom Hiddleston no papel principal, presumimos que a obra tenha sido logo posta no centro de uma guerra de compradores, todos a licitarem pelos direitos de distribuição. Confirmou-se esta semana que NEON fechou o negócio, mas só o irá estrear para o ano que vem. Logo veremos o que acontece. Em segundo e terceiro lugar ficaram os campeões de Cannes, “Anora” e “Emilia Pérez,” confirmando o seu estatuto como grandes favoritos para a temporada que se avizinha. De facto, a última vez que um filme ganhou a Palma de Ouro e ficou entre o top três do TIFF, foi “Parasitas.” Será que a História se vai repetir?
Mas é claro que muito mais se viu em Toronto que candidatos aos grandes prémios. Muito do melhor cinema jamais se aproximará da glória do Óscar e não é por isso que merece ser esquecido.
Payal Kapadia faz milagres.
Por exemplo, uma das maiores polémicas do cinema mundial centra-se em torno de “All We Imagine as Light” da indiana Payal Kapadia. Depois de ganhar o Grande Prémio em Cannes – equivalente ao segundo lugar, ficando só atrás da Palma – o filme tem vindo a apaixonar audiências pelo circuito festivaleiro. Diríamos mesmo que se trata de um dos grandes feitos cinematográficos do ano, uma sinfonia para a cidade de Mumbai e epopeia mundana da mulher na Índia moderna. Em cinquenta sombras de azul, safira e céu celeste, Kapadia explora a existência pacata de três enfermeiras e confronta temas complicados com a gentileza de uma carícia.
A figura de uma mulher tradicionalista, presa ao matrimónio com um homem emigrado na Alemanha, é especialmente forte, levando a um final precioso, tão emocional como subtil, a transbordar generosidade e até algum humor. Enfim, é daqueles filmes que exige uma ovação de pé. Infelizmente, nenhum dos países que o podia candidatar aos Óscares se manifestaram. Entre as nações europeias que financiaram o projeto, a França escolheu o musical de Jacques Audiard e o Luxemburgo decidiu não distinguir qualquer candidato. A Índia, por seu lado, está a castigar Kapadia, cujas ações políticas vão contra o regime presente, sua supremacia Hindu e desprezo pelos direitos das mulheres.
Esperamos que a qualidade do trabalho supere a falta do prestígio e projeção do Óscar. Com sorte, as distribuidoras internacionais não se deixarão descativar. “All We Imagine as Light,” este milagre cinematográfico, merece ser visto pelo mundo todo.
O cinema moribundo de Cronenberg e Schrader.
Enquanto Kapadia esboça o futuro do cinema, David Cronenberg e Paul Schrader são ecos do passado, aproximando-se do fim do seu percurso artístico com comoventes lamentos sobre a inevitabilidade da morte. No caso do Canadiano, grande mestre do ‘body horror,’ seu trabalho mais recente vem em resposta ao luto pela perda da esposa de quase quarenta anos. “The Shrouds” considera tal assunto através de uma personagem em jeito de alter-ego, um produtor de vídeos industriais virado empreendedor do negócio fúnebre. Em reação à morte da mulher, essa personagem concebe uma tecnologia para poder observar a decomposição gradual do seu corpo.
Este voyeurismo para dentro da campa é uma forma de tentar tomar posse da morte, controlar o incontrolável e assim dominar esta cruel lei da natureza. Também é uma distração, forma de fugir à realidade da perda. De facto, todo o filme é uma evasão estudada, apelando à paranoia e mania da conspiração para retratar o modo como o ser humano lida com as mágoas com escapismo. Paul Schrader escolhe uma via mais fabulista, adaptando o livro “Foregone” de Russell Banks, onde um realizador com cancro terminal se sujeita a ser o sujeito de documentário para outro cineasta. Só que, no momento da reflexão, é difícil distinguir o facto da ficção.
Cronenberg estuda a evasão do luto na forma total da sua obra, mas Schrader fá-lo com um estudo de personagem. O próprio título do filme, “Oh, Canada,” aponta para esse apelo à fuga da dor e do lado sombrio da vida. Afinal, o protagonista, enquanto jovem, escapuliu-se aos deveres familiares, profissionais e militares que tinha nos EUA ao passar a fronteira a norte. Mais do que uma história de emigração, este é um conto de transformação constante, uma metamorfose escorregadia que dura até ao momento do fim. E no meio de tudo, Richard Gere arrebata-nos, um espectro do “American Gigolo” com que Schrader nos agraciou há tantos anos. O peso do tempo sente-se em cada ruga, cada pausa, cada fotograma do filme solene e solipsístico.
“O Brutalista” é monumental.
Desde que os primeiros críticos o viram em Veneza que “The Brutalist” de Brady Corbet tem causado histeria entre cinéfilos. No TIFF, os jornalistas começaram a fazer fila para o visionamento de imprensa com duas horas de antecedência e alguns nem conseguiram entrada. As sessões públicas foram mais do mesmo, com lotação esgotada e expetativas tão altas quanto os arranha-céus de Toronto. Perante isto, há sempre o risco da desilusão, mas o épico histórico que ganhou o Prémio de Melhor Realizador na Bienal não deixou o público ficar mal. Trata-se de um verdadeiro exemplo de cinema monumental que é, em parte, sobre a criação de monumentos.
O filme conta a história de um arquiteto húngaro, perseguido na Europa dos anos 40 por ser judeu. Em fuga do flagelo do Holocausto, ele atravessa o Atlântico, recomeçando do zero como tantos outros refugiados, tanto nesse passado distante como nos dias que correm. Desse ponto de partida toda uma saga se desenrola, um desmantelar sistémico do sonho Americano com traços de desenho e tom brutalistas, assim como uma vertente política inesperada. Esse último elemento vai causar muito discurso quando o filme finalmente estrear comercialmente, mas, até lá, ficam as garantias que se trata de um título imprescindível para qualquer amante do cinema.
Daniel Craig e Guadagnino na sombra de Burroughs.
Através de filmes como “Eu Sou o Amor” e “Chama-me Pelo Teu Nome,” Luca Guadagnino tem-se assumido como o rei do cinema epicúrio na esfera mainstream. Sua expressão audiovisual é demarcada pela exultação do desejo, prazeres da carne e dos outros sentidos também. Por isso mesmo, muitos esperavam mais um assombro sensualista quando o cineasta italiano anunciou suas intenções de trazer “Queer” ao grande ecrã. Esqueceram-se é que o livro de William S. Burroughs não é tanto sobre desejo ou enamoramentos, quanto é uma autoficção obcecada com todo um ciclo de toxicodependência, desmame e recaída.
Situado no México do pós-guerra, a história segue um escritor americano perdido de amores por outro expatriado, um jovem belo e distante, cujo magnetismo traz prazer, mas também despoleta a autodestruição. E como Ícaro perante a majestade do sol, o protagonista não consegue resistir à beldade. O homoerotismo vive tanto enquanto espelho do desejo carnal como alegoria do vício, e assim se delineia uma perda do controle e da dignidade. No papel principal, Daniel Craig é uma revelação, patético até mais não, enquanto Drew Starkey permanece um enigma enquanto o objeto das muitas fantasias. Nas mãos deles e de Guadagnino, “Queer” é experiência agonizante, pronto a celebrar o anacronismo e o artifício na busca de um cinema capaz de traduzir a prosa de Burroughs, seu génio e sua loucura.
Do rio ao mar, o cinema pela Palestina.
Como já foi dito noutras crónica, as ruas de Toronto e seus cinemas foram palco para muito protesto político. Entre os manifestantes, ouviram-se exigências do cessar-fogo, o fim da agressão genocida de Israel sobre a Palestina. Essa revolta refletiu-se também na programação, tendo o TIFF mostrado duas obras fortes para a sensibilização do público em relação às realidades vividas pelo povo palestiniano. As pressões políticas sentiram-se bem nas sessões públicas das fitas, com segurança intensificada, malas revistadas e toda uma tensão de cortar à faca. Mesmo assim, diríamos que estes são dos filmes mais essenciais do festival – todos deviam ver.
“No Other Land” foi rodado antes do 7 de Outubro de 2023, demonstrando só pela sua existência como a agressão sionista e violência colonial de Israel precede a sua resposta ao ataque do Hamas no ano passado. Trata-se de um filme-diário e de um testemunho, assim como uma mostra de solidariedade entre dois amigos, um israelita e outro palestiniano, de olhos abertos para as atrocidades a acontecer. Esse documentário premiado em Berlim foca-se na Cisjordânia, mas “From Ground Zero” levou as câmaras para a Gaza do tempo presente. Como esforço coletivo, constrói-se através de 22 curtas-metragens, desde a ficção ao documentário, à animação e tanto mais. A pluralidade da expressão reflete a heterogenia das vidas sob ataque do IDF.
Talvez por ser uma resposta direta à situação atual, “From Ground Zero” foi escolhido ao invés de “No Other Land” para representar o país na corrida aos Óscares. Duvidamos que chegue à lista de finalistas, mas, como já se viu, não são precisos prémios para reconhecer excelência cinematográfica, arte política e convicta.
“Dahomey” e a reflexão pós-colonial.
Outro candidato para o Óscar de Melhor Filme Internacional com forte carga política é o representante do Senegal. Vencedor do Urso de Ouro na Berlinale deste ano, “Dahomey” é uma espécie de ensaio em jeito de documentário, trazendo o lirismo que Mati Diop desenvolveu na ficção para uma vertente algures entre o jornalismo e o estudo académico. Nuns parcos 68 minutos, a realizadora traça o retorno de 26 objetos históricos à República de Benin, onde em tempos existiu o Reino do Daomé. Há mais de um século que esses tesouros estavam sequestrados em Paris, apesar de muitos pedidos da sua devolução ao longo das décadas.
O saque colonial é imenso e vai muito além destas 26 peças, chegando aos múltiplos milhares. Por isso mesmo, há quem veja este gesto como oco, mais um insulto que uma resposta sincera aos movimentos anticoloniais que lutam para trazer justiça às nações afetadas pelo projeto colonial Europeu. “Dahomey” explora tudo isto e mais, incluindo observações serenas do trabalho museológico e discussão acesa na praça pública. Também faz particular uso da narração para dar uma voz ancestral aos artefactos. Nesse aspeto, o filme está quase que em diálogo com “Pepe,” outra criação cinematográfica que trouxe ao TIFF o debate colonial.
Já se fala em Óscar para “O Robot Selvagem.”
Começámos esta reflexão final com conversa de Óscar e terminamos da mesma maneira. Depois da sua receção jubilante no TIFF, “O Robot Selvagem” emergiu como o grande favorito para ganhar o próximo galardão para Melhor Filme de Animação. E talvez ainda saia vitorioso noutras corridas, tão majestoso foi o amor que o público mostrou pela nova aventura animada do realizador Chris Sanders. Uma coisa é certa – esta história de um robot perdido em ilha deserta, aprendendo a ser mãe para um pequeno ganso orfão, será dos trabalhos mais deslumbrantes do ano. Nas palavras da equipa da Dreamworks, é uma pintura de Monet sobre as florestas de Miyazaki.
Apesar do modelo 3-D definir as volumetrias da animação, a câmara move-se com impossível liberdade e tudo o resto, desde a textura à expressividade da luz se rege pela plasticidade do pincel. Até os efeitos da água se manifestam em massas de cor em movimento, um assombro ilustrativo que expande os limites da animação por computador e recupera alguma da beleza esquecida do cartoon Americano. A tradição 2-D transfigura-se para um novo contexto, mas “O Robot Selvagem” não é só um espetáculo formal, uma qualquer montra para avanços tecnológicos. Também é daquelas fitas que faz chorar as pedras da calçada.
A banda-sonora de Kris Bowers muito ajuda, mas é a sensibilidade de Sanders e companhia que se assume como a chave para o sucesso. Há uma gentileza profunda no modo como as personagens são abordadas, a amoralidade impiedosa do mundo natural em contraste com o despertar da humanidade numa máquina que não foi programada para tais façanhas. As sequências de despedida, ora final ou ilusória, são o auge da película, e também servem para exemplificar o papel central do elenco vocal. Lupita Nyong’o, em particular, está em estado de graça como a figura robótica à volta da qual todo o conto revolve. “O Robot Selvagem” estreia em cinemas portugueses este Outubro.
As coberturas de festivais continuam na MHD, mesmo depois desta desventura Canadiana. Há San Sebastián e o Queer Lisboa em simultâneo, e depois virão a Festa do Cinema Francês e o DocLisboa. Não percas!