April, a Crítica | O IndieLisboa exibe a obra-prima de Dea Kulumbegashvili
Galardoado em Veneza e aclamado pela crítica internacional, “April” de Dea Kulumbegashvili é uma verdadeira obra-prima. O drama georgiano integra a secção Rizoma do 22º IndieLisboa.
Quem vemos quando miramos o espelho não é um simples reflexo da realidade física. Afinal, quem vemos somos nós e há muitos nós que são invisíveis, segregados e secretos do espectro ótico. Só existem num contexto mais interno. Para cada um, a conceção do “eu” varia e vai além do que o resto do mundo consegue ver, ora pessoa ou superfície vítrea, sendo que a verdade e o real não são sinónimas. Pelo menos, assim é no âmago, na alma, na intimidade secreta do pensamento a que só nós temos acesso. Na sua segunda longa-metragem, em seguimento de “Beginning,” a realizadora Dea Kulumbegashvili matuta esta ideia e manifesta-a como a imagem mais misteriosa num filme cheio de quadros inesquecíveis.
Com pele enrugada sem feições distintas, um monstro de aparência feminina e degradação plena aparece em momentos inusitados. Seu surgimento, em jeito de apontamento errático, propõe enigmas numa narrativa que, por regra geral, evita evasões e considera a ação com um olhar direto, feroz, sem mercê e ainda menos gentileza. Essa sinceridade não implica, contudo, a crueldade. Mas estas visões de imaterialidades psíquicas ou simbolismos maternos, são, de facto, cruéis. Afirmamos isso porque, em última análise, revelam-nos aquilo que poderá ser a imagem própria de uma mulher cujos crimes são justos. Só que a justiça não elimina a culpa, nem apaga o juízo alheio que contamina o âmago de uma heroína com sangue nas mãos.
Um cinema franco, cruel, impecável.
Nina é uma médica obstetra numa zona isolada da Geórgia e começa a história de “April” num dos piores dias da sua vida. Durante um parto que se pensaria rotineiro, algo corre mal e o bebé morre antes de conhecer os braços da mãe. Numa abordagem chocante, Kulumbegashvili encena isto num só take, um parto natural não-simulado a servir de sujeito para a câmara, sempre a impedir o espetador de desviar o olhar. Muitas cenas em “April” são assim concebidas, em planos sequência onde a ausência de cortes serve para prender a audiência e lhe cortar a respiração. Não se trata de uma tentativa de espetáculo técnico, mas um modo de imergir o observador no universo narrativo cuja visceralidade ultrapassa todas as expetativas.
O incidente despoleta uma investigação complicada pelas ações de Nina fora do horário de trabalho. Num país em que o aborto ainda é ilegal, a obstetra ajuda as mulheres grávidas no ambiente rural, fazendo o ofício que, tradicionalmente, é feito por enfermeiras ou até pessoas sem treino médico. Para a cirurgiã que nada cobra pelos abortos, há um dever incontornável a guiar-lhe a mão, mas isso não interessa para os seus acusadores. Perante a contradição de Nina, que ajuda bebés a nascer como profissão e põe fim a gravidezes indesejadas na calada da noite. Em meras horas, ela pode ajudar uma nova vida a chegar ao mundo e negar a geração de algo que ainda não é vida, mas poderia vir a ser. Kulumbegashvili tudo mostra sem moralismo, deixando que as reticências se metamorfoseiem e sugiram aquilo que o texto não esclarece.
A própria Nina sente pressão destes gestos aparentemente opostos em conjugação com a agressividade latente de uma patriarquia hegemónica. Ou melhor, ela sente a culpa do sucedido na primeira cena sem, no entanto, crer que houve qualquer negligência da sua parte. Pouco a pouco, a cineasta desvenda a intimidade da figura central sem resolver os mistérios subjacentes. Até há passagens filmadas diretamente da sua perspetiva, como uma viagem de carro ao anoitecer, rumo a mais um aborto ou talvez só um encontro sexual anónimo. Outras passagens são sublimadas pelo procedimento cirúrgico e a formalidade de uma interrogação, sempre impondo máscaras na face da mulher. Sempre impondo barreiras entre o espectador e “April,” até mesmo quando o drama humano dá lugar a algo mais próximo do thriller.
Isso deixa a atriz Ia Sukhitashvili numa posição difícil, tendo que estabelecer a personagem sem o benefício de uma dramaturgia esclarecedora ou uma câmara que prioriza o trabalho de ator. Mas entre a intérprete e sua realizadora, entre a metáfora do monstro e a história da culpa, Nina emerge como uma figura que, pelo fim da fita, sentimos conhecer tão bem como nos conhecemos a nós mesmos. “April” é exemplo de cinema imersivo na sua vertente mais severa e confrontacional. Jamais se deixa a audiência à vontade, puxando por ela com violência, sem dó bem hesitação. A certa altura, parece que o ecrã quer castigar aqueles que o ousam ver. Ou talvez seja a realizadora a fonte da fúria.
O filme tão pronto ao ataque como à poesia.
Estas dimensões emocionais fazem sentido no contexto de uma obra em clara defesa do direito ao aborto, não obstante os pesadelos retratados. Quem não entende a fúria quando as leis dos homens se impõem às mulheres sem sentido, quando descriminação corrói e os corpos femininos são tratados pior que o gado? Por detrás da sonoplastia imaculada de “April,” conseguem ouvir outro som se estiverem atentos. É um rugido revoltado, quiçá o grito de guerra a reivindicar aquilo que já deveria ser direito dado. O mais interessante é que isso não se manifesta como reflexo de Nina cuja ambivalência prevalece até ao fim da narrativa. As ideias nascem da relação de imagens, das relações estabelecidas, por vezes em oposição aos acontecimentos em cena e as tragédias nelas manifestas.
Dea Kulumbegashvili entende o cinema no seu estado mais puro, onde a força do engenho audiovisual se eleva acima de tudo o resto e ilumina o caminho para a transcendência. A máxima expressão desta qualidade é a beleza de “April” que deverá ser simplesmente traduzido para “Abril” quando chegar às salas portuguesas. Cru e cruel, o filme não descura a possibilidade do deslumbre ou a sua habilidade para comunicar aquilo que outros meios não conseguem transmitir. Pensemos na aparição que expõe a tempestade interior de Nina ou nas tempestades exteriores que se abatem sobre a paisagem primaveril, cheia de flores e um céu azul elétrico. O provérbio “Abril, águas mil” comprova-se numa fita em que a tormenta sugere ciclos de destruição e renascimento, a morte e a vida as duas faces da mesma moeda quer no drama humano e no mundo natural. No final, as contradições de Nina não são, de todo, contraditórias. Se ao menos ela conseguisse perceber isso. Se ao menos o mundo dominado por homens ignorantes deixa-se de a punir. Não admira que “April” tenha recebido o Prémio Especial do Júri em Veneza. Até lhe daríamos o Leão de Ouro, mil perdões ao grande Almodóvar.
April, a Crítica
Movie title: April
Date published: 5 de May de 2025
Country: Geórgia
Duration: 134 min.
Director(s): Dea Kulumbegashvili
Actor(s): Ia Sukhitashvili, Kakha Kintsurashvili, Merab Ninidze, Roza Kancheishvili, Ana Nikolava, David Beradze, Sandro Kalandadze, Tosia Doloiani, Beka Songhulashvili
Genre: Drama, 2024
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Cláudio Alves - 92
CONCLUSÃO:
Dea Kulumbegashvili é mestra do cinema e “April” é a sua mais recente obra-prima. Só com duas longas no cartório, a realizadora demonstra uma ousadia formal de cortar a respiração, aliada à vontade de chocar e dar uma bofetada na cara da sociedade injusta. Do trabalho obstetra ao aborto ilícito, passando pela vitalidade da paisagem primaveril e o estrondo da tempestade, o filme é experiência imersiva, na vertigem do sufoco. Uma salva de palmas para cinema na sua forma mais pura, mais estonteante, mais assombrosa.
O MELHOR: Os planos sequência são impressionantes e nunca meros feitos de arrogância formalista. A certa altura, sem cortes ou artifícios, a câmara testemunha uma tempestade, capturando o instante em que o relâmpago rasga os céus. Trememos só de pensar nessa imagem, um prelúdio para o momento mais horripilante da fita, quando, encurralada entre a espada e a parede, Nina teme a raiva de um homem vingativo.
O PIOR: O assombro de “April” devém de uma crueldade fundamental que vai desorientar muitos e levar tantos outros a desdenhar o filme como um objeto lúgubre, mais desumano que humanista na sua abordagem.
CA