O Quarto ao Lado, a Crítica | Pedro Almodóvar abriu o LEFFEST
Após ganhar o Leão de Ouro em Veneza, o novo filme de Pedro Almodóvar vai chegar às salas portuguesas. “O Quarto ao Lado,” também conhecido como “The Room Next Door” e “La Habitácion del Al Lado,” teve antestreia no LEFFEST, sendo um de dois filmes de abertura.
Na conjetura do cinema internacional, quando algum artista atinge certo renome, levantam-se sempre questões da sua potencial estreia num registo anglófono. Há muitos anos que Pedro Almodóvar andava a falar desse mesmo salto, saindo da segurança da sua língua materna para ir experimentar a língua que domina em Hollywood. Esse enfant terrible do cinema Espanhol com um gosto irreverente e sensibilidade queer mencionou vários projetos ao longo do tempo, mas acabavam sempre por ser abandonados. Recentemente, a realização de curtas-metragens construiu uma ponte entre o universo de Almodóvar e a anglofonia Americana.
Em “A Voz Humana,” o realizador repensou um texto de Cocteau com Tilda Swinton no papel central. Este primeiro contacto com a atriz viria a desenvolver a vontade de fazer “O Quarto ao Lado,” outra adaptação literária. Desta vez seria “What Are You Going Through” de Sigrid Nunez, escritos sobre escritoras em confronto com a mortalidade que nos é comum a todos. Mas, antes disso, viria a oportunidade de saborear o inglês em modo western, uma miniatura estilizada com produção e figurinos da Saint Laurent. “Estranha Forma de Vida” é um dos projetos menos bem conseguidos nesta fase da carreira do realizador, preservando alguns valores importantes e anunciando algumas fragilidades que se acentuariam no “Quarto ao Lado.”
Barreiras linguísticas ou estilização deliberada?
A imprensa internacional, sobretudo a Americana, tem-se mostrado resistente aos méritos de “O Quarto ao Lado,” em parte devido ao seu diálogo. O cinema de Pedro Almodóvar sempre se desenrolou em conversa musicada, um melodrama executado com tamanha precisão rítmica que a fala se torna dança. Em “Abraços Desfeitos,” ele até chamou atenção a isso mesmo, usando a remontagem de um filme dentro do filme para refletir sobre as características mecânicas do seu trabalho. Só que, para quem não domina o espanhol ou se acostumou aos ritmos do discurso madrileno, será possível supor que Almodóvar almeja o realismo. Nunca foi esse o caso e nunca será.
O problema destas considerações é que, quando o espetador e o crítico são confrontados com o mesmo estilo de cinema numa língua que lhes é mais familiar, o artifício da oratória revela-se como jamais se havia revelado. Nas ondas de choque que a surpresa irradia, há muito fã de Almodóvar em rejeição deste seu novo cinema Anglófono, como que na ignorância de uma continuidade estilística com os outros filmes que tanto amam. De facto, “O Quarto ao Lado” segue muito na onda dos trabalhos mais recentes do realizador, títulos como “Julieta,” “Dor e Glória” e “Mães Paralelas.” São narrativas que promovem uma confrontação com o passado, memória e história nacional e pessoal, com a sombra da mortalidade no horizonte.
Neste caso, trata-se da história de duas escritoras, amigas de longa data que já há alguns anos não se viam quando, certo dia, se reencontram. Ingrid, uma autora com considerável sucesso, acabou de publicar um livro sobre o medo da morte. Martha, uma antiga correspondente de guerra, está a morrer. Entre visitas e conversas, a mulher no precipício do fim perde-se em histórias do passado e o filme perde-se com ela, mergulhando numa piscina de memórias em forma de flashback. Lembram-se romances em zonas de conflito, amantes enlouquecidos, e faz-se a homenagem à arte Americana. Desde Edward Hopper a Andrew Wyeth, de Buster Keaton a John Huston e sua versão da moribunda “Gente de Dublin,” adaptada de James Joyce.
Sim, este é o filme americano de Almodóvar em toda sua potencial interpretação, assemelhando-se às odisseias que outros cineastas fizeram à terra e ao mito de onde Hollywood nasceu. Nesse aspeto, “O Quarto al Lado” faz lembrar o “Paris, Texas” de Wim Wenders, ou até talvez as “My Blueberry Nights” de Wong Kar-wai. Em todo o caso, no meio deste esplendor, o fruto da vida está a apodrecer na ramagem e não tarda cairá por terra. Só que Martha não quer chegar ao fim em epítetos de dor e insanidade, a cognição já a escapar-lhe como o fumo evade as mãos que o tentam conter. Por isso, ela faz uma proposta radical à amiga. É mais um pedido de auxílio, de companhia e conforto. Martha quer ir de férias a uma casa esplendorosa onde irá cometer suicídio. Ela só não quer estar sozinha. Quer ter alguém no quarto ao lado.
Julianne Moore e Tilda Swinton brilhantes!
Desta premissa simples, Nunez e Almodóvar desenvolvem um melodrama em negação de si mesmo e simultânea exultação. O sentimento está sempre ao rubro, mas é filtrado por um registo teatral e linguagem literária, exigindo um balanço precário às atrizes que têm de encontrar o ponto perfeito entre a entrega ao papel e a alienação estilística em efeito. Como Ingrid, Julianne Moore prova mais uma vez como é das melhores intérpretes do melodrama contemporâneo, trazendo muita da mesma astúcia das suas colaborações com Todd Haynes ao “Quarto ao Lado.” Mas Tilda Swinton é a maior estrela desta façanha, interpretando dois papéis e arriscando o transtorno do espetador através de uma prestação que confronta em sussurro e caricia cadavérica.
“O Quarto ao Lado” não irá agradar a todos os fãs de Almodóvar ou mesmo aos devotos seguidores das suas atrizes. Contudo, trata-se de um trabalho notável, uma autorreflexão que contradiz o niilismo que tantas vezes vem de mãos dadas com a dor e a miséria. Além disso, o filme é mais uma obra-prima audiovisual do cineasta espanhol, criação imaculada desde a banda-sonora de Alberto Iglesias aos décors de Inbal Weinberg. Esse último aspeto é especialmente pelo modo como prolonga uma obsessão cenográfica de Almodóvar, cujas personagens parecem sempre viver em ecos do seu próprio lar. Talvez por isso, “O Quarto ao Lado” se sinta tão pessoal. Aos 75 anos, este realizador pondera a questão do seu mesmo adeus, debatendo-se entre o medo e a rendição, entre Ingrid e Martha, seus reflexos, suas musas.
A 18ª edição do Lisbon Film Festival decorre de 8 a 17 de Novembro em vários cinemas da capital. Não percas, nem a festa nem a nossa cobertura.
LEFFEST '24 | O Quarto ao Lado, a Crítica
Movie title: The Room Next Door
Date published: 12 de November de 2024
Country: Espanha, EUA
Duration: 107 min.
Director(s): Pedro Almodóvar
Actor(s): Julianne Moore, Tilda Swinton, John Turturro, Alessandro Nivola, Juan Diego Botto, Raúl Arévalo, Victoria Luengo, Alex Høgh Andersen, Esther McGregor, Alvise Rigo
Genre: Drama, 2024
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Cláudio Alves - 80
CONCLUSÃO:
No contexto da carreira total de Pedro Almodóvar, “O Quarto Lado” pode parecer um trabalho menor. Contudo, esse fado só se verifica pelo contexto extraordinário em que se encontra. Para muitos outros cineastas, esta ponderação estilizada sobre a mortalidade seria o melhor filme já feito. Entre Julianne Moore e Tilda Swinton, seus colaboradores de longa data e novos nomes na equipa, o mestre espanhol oferece-nos mais uma joia cinematográfica em cores vivas – azul e amarelo, o vermelho do costume, o rosa da neve tóxica que cai do céu como um sonho.
O MELHOR: A cenografia é o ponto alto desta obra, mas Iglesias e Swinton merecem muitos aplausos também. Se o filme não tivesse ganho o Leão de Ouro em Veneza, a atriz poderia ter sido uma boa candidata à Taça Volpi.
O PIOR: A qualidade literária do texto por vezes tira qualidade ao filme enquanto objeto de cinema. Questiona-se a necessidade do flashback ou a estrutura bizarra que tanto impõe um amigo e antigo amante das duas escritoras a uma história que lhes deveria pertencer só a elas.
CA