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As Oito Montanhas, em análise

Outsider Films dá a conhecer “As Oito Montanhas”, a mais recente obra dos cineastas Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch.

Pietro (Luca Marinelli) e Bruno (Cristiano Sassella) são amigos e companheiros de muitas horas passadas nas fragas e no alto das montanhas que se erguem imponentes no Valle d’Aosta, região autónoma situada nos Alpes e no Noroeste de Itália, onde se fala o francês e o italiano, para além de dialectos locais. Está cercada por quatro das maiores montanhas da Europa, o Matterhorne ou Monte Cervino, e os Maciços do Mont Blanc, do Mont Rose e do Grand Paradiso. Pietro aprendeu a gostar da montanha desde que os pais alugaram uma casa numa simpática aldeia para onde se deslocavam num exercício de puro lazer, motivado pelo desejo de revitalizar o corpo e a alma num ambiente que fosse a antítese da urbana e poluída atmosfera da cidade onde habitualmente residiam, Torino. Nesta fuga para uma liberdade feita de grandes horizontes, penhascos e glaciares, porta de entrada para um almejado renascimento físico e espiritual, era sobretudo o pai que o levava a percorrer os arriscados e difíceis caminhos até aos pontos mais altos das formações alpinas, algumas das quais sinalizadas nos locais mais ou menos acessíveis com singelas cruzes de ferro, pontos escolhidos por muitas gerações de aventureiros e alpinistas, onde podiam admirar a deslumbrante paisagem circundante com o chamado olhar de Deus. Bruno, antes pelo contrário, nunca vivera na cidade e o seu espaço natural e vital era a montanha. Não conhecia outras rotinas que não fossem as do labor diário associado aos aspectos mais comuns da economia regional, nomeadamente a criação de gado e a produção de queijo.

NO ALTO DAS MONTANHAS, ONDE SE RESPIRA O AR PURO…!

As Oito Montanhas
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Pietro e Bruno conheceram-se ainda na pré-adolescência, seguramente na sequência de infâncias marcadas por desenvolvimentos desiguais, mas cujas diferenças sociais não impediram o surgir de uma bela amizade, que se iria prolongar por muitos anos, períodos intermitentes recheados de momentos felizes de paz interior e por outros mais duros onde irão explodir as contradições inerentes ao simples e complexo acto de viver e as grandes linhas de força do argumento proposto no filme LE OTTO MONTAGNE (AS OITO MONTANHAS), 2022, realizado pela dupla de cineastas belgas, Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch. Bruno e Pietro são os pilares incontestados desta ficção, e a sua perene relação funciona como um polo magnético que atrai outras figuras, mais ou menos secundárias mas nunca descartáveis, que com eles se cruzam no círculo íntimo formado pelos protagonistas. Núcleo existencial que se perfila como o fruto de uma vibrante e sólida partilha de vontades próprias, sejam elas divergentes ou complementares, num plano muito superior ao mero sentimento de amizade fugaz, que por uma qualquer ausência de justificação ou sustentação, quer objectiva quer subjectiva, nem sequer de passageira poderíamos apelidar. Por isso não nos custa acreditar no que vemos quando, no final de uma longa noite durante a qual Pietro celebrara com Bruno e amigos o reencontro com o companheiro que o apoiara na reconstrução da casa alpina que o pai lhe deixara como herança num sítio isolado mas de magnífica localização, o agora adulto convertido ao espírito das gentes da montanha abre um caderno de apontamentos onde desenha um círculo. Depois divide o círculo em partes iguais, a saber, oito segmentos, como se eles fossem parte de uma antiga representação gráfica do mapa de uma antiga geografia cósmica. Por fim, Pietro dirigindo-se a Bruno explica-lhe que aqueles oito segmentos representavam as oito montanhas e os oito mares que na cultura nepalesa e budista indicavam as oito grandes referências do mundo, os pontos cardeais de uma singular rosa-dos-ventos. No centro estaria uma enorme montanha, o Monte Sumeru. E, na posse desta sabedoria oriental, Pietro formula então uma pergunta como se fosse um desafio para desvendar um enigma: “Quem aprendeu mais? O que viu as oito montanhas e os oito mares, ou o que chegou ao cume do Monte Sumeru?” E Bruno responde, com ironia polvilhada de convicção: “Eu sou aquele que chegou ao cume do Monte Sumeru”. Mas, apesar de ficar com os louros, indica o amigo como o vencedor, porque fora Pietro quem dera a volta ao mundo, pelo menos o que ali estava desenhado de forma esquemática. Fora o amigo quem ousara ir mais longe. Os dois riem e parecem concordar, mesmo que a embriaguez de ambos nos leve a pensar na extrema ambiguidade das suas palavras.

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Deste modo, sentimos como afinal podia ser frágil a relação de forças entre os dois, mas igualmente como se manifesta o poder e determinação daqueles parceiros de longa data quando expõem de modo franco e sincero as suas razões individuais, aquilo que no fundo impediu e impede o fim dessa mesma relação. De facto, quem estaria ou não preparado para sustentar a íngreme escalada necessária para alcançar o ponto nevrálgico daquele universo estilizado e mítico ou de qualquer outro em que fosse necessário mudar de rumo para atingir a altura ideal onde melhor se respira o ar puro? Elemento primeiro que os fizesse querer voltar uma e outra vez ao lugar onde foram, são ou ainda querem ser felizes? Neste filme que evita as dicotomias esquemáticas, a risível noção do bom e do mau, a falaciosa ilusão do vencedor e do vencido, os realizadores e argumentistas não permitem que a narrativa seja invadida por relacionamentos superficiais, diria mesmo, artificiais, que reduzissem esta ficção a uma história de ressonâncias, por exemplo, de natureza gay. E os dados para cair nessa armadilha estavam lá, se fossem lançados pela mão de mentores da mediocridade que, com essa opção, nada acrescentariam ao que podemos sentir, isso sim, como uma poderosa dinâmica subjacente a uma genuína amizade masculina. Felizmente, no filme prevalece e sobressai a extrema e incisiva capacidade da realização em nos fazer sentir as contradições e o fulgor inerentes a uma relação fiel e verdadeira. Finalmente, a par da contextualização do eixo central da narrativa, damos igualmente conta do verdadeiro significado de LE OTTO MONTAGNE (AS OITO MONTANHAS), designação que se refere a um espaço distante da cultura e geografia europeias, os Himalaias, para onde Pietro se dirigiu em busca da sua outra montanha, numa demanda do ponto cardeal que orientasse a sua vida interior, presente e futura. Para encontrar um caminho que Bruno já alcançara e que o pai de Pietro gostaria de saber que ele, o seu filho, podia igualmente alcançar, mesmo que para isso tivesse de partir para outro continente de modo a perder o elo de ligação com o lugar onde nasceu e virar costas ao ambiente onde aprendeu a maior lição de vida, a partir do momento em que passou ainda muito jovem a contar com a companhia do “filho” protegido e de certa forma adoptado pelo pai, o seu improvável “irmão” Bruno. E mais não digo, porque saborear as circunvoluções de filigrana emocional deste filme constitui um prazer, a que a fotografia de Ruben Impens, a montagem de Nico Leunen e a música de Daniel Norgren conferem a necessária consistência no plano material da arte cinematográfica.

As Oito Montanhas
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As Oito Montanhas, em análise
As Oito Montanhas

Movie title: Le otto montagne

Director(s): Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch

Actor(s): Luca Marinelli, Alessandro Borghi, Lupo Barbiero, Cristiano Sassella, Elisabetta Mazzullo, , Andrea Palma

Genre: Drama, 2022, 147 min

  • João Garção Borges - 80
80

Conclusão:

PRÓS: Excelentes prestações dos actores, protagonistas e secundários, entre os quais se destacam Luca Marinelli e Cristiano Sassella no papel de dois amigos que irão viver uma amizade iluminada pelo espírito de quem vê nas montanhas e na vasta liberdade que nelas se experimenta a sua morada primordial.

Direcção de Fotografia que joga com frequência na articulação visual, no interior de certos planos e enquadramentos, das potencialidades dramáticas da maior ou menor utilização da profundidade de campo, gerando efeitos de manipulação e convergência do olhar muito interessantes. Para além do mais, o ratio proposto, sem deixar de nos oferecer deslumbrantes imagens das paisagens naturais, permite no seu classicismo de academia evitar que AS OITO MONTANHAS resvalem para o campo pueril do decorativo, para o chamado bilhete-postal, que aqui seria pura e simplesmente uma opção desastrosa e, seguramente, iria anular o que se apresenta desde sempre como essencial, a relação entre dois seres oriundos de mundos algo distantes mas unidos por uma amizade comum, que se irá manter fulgurante e verdadeira até ao fim.

Em 2022, recebeu o Prémio do Júri no Festival de Cannes.

CONTRA: Nada.

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