Astrakan 79, em análise | Martim no país dos sovietes
O filme “Astrakan 79” realizado por Catarina Mourão estreia nas salas de cinema nesta quinta, 11 de julho, juntamente com a sua curta-metragem “O Mar Enrola na Areia” (2019). Dois filmes sobre as memórias que de alguma forma se completam. “Astrakan 79”, e a curta, são duas obras profundamente evocativas que entrelaçam memórias pessoais e coletivas, oferecendo uma janela íntima para o passado de uma geração.
“Astrakan 79” apresenta-nos Martim (Santa Rita), de 15 anos, quando ainda sonhava construir uma nova sociedade sem classes, folheando as páginas cheias de fotografias de uma revista soviética, de 1979. Os seus pais, na altura ‘comunistas radicais’ enviaram-no para estudar na cidade de Astrakhan, na URSS, durante cerca de um ano.
Curiosamente, nasci e cresci em Campolide e tenho uma vaga ideia desta família que morava perto de mim, mas não me lembro do Martim que era na altura quatro anos mais novo. Adolescentes, uns mais ou menos que outros e conforme as influências familiares de cada um, vivíamos nessa altura, essa euforia e essas ideias revolucionárias de transformar o mundo.
Daí que me tenha identificado bastante com este filme, que oscila entre a realidade e a reconstituição de uma época, mas que retrata de uma forma bastante eficaz e tocante uns tempos que marcaram uma geração do pós-25 de Abril; quando as coisas mesmo que em diferentes contextos sociais, se passavam muito mais devagar do que agora.
O jovem pioneiro comunista
Neste filme “Astrakan 79”, Martim recorda hoje, aos 58 anos, essa sua estadia de um ano e meio na União Soviética em 1979. Era um miúdo inocente e os seus pais, achavam que ele iria viver num lugar seguro e numa sociedade que cumpria com todos os seus ideais comunistas.
Martim viajou para Moscovo, atravessou de comboio o delta do Volga até Astrakan, quase numa espécie de viagem de iniciação. Apaixonou-se várias vezes, largou os estudos, tornou-se clandestino. Pelo caminho foi perdendo, o ideal comunista incutido pelos pais.
Quarenta anos depois, Martim decidiu contar pela primeira vez a sua história ao seu filho (e através dele), algo que foi sempre uma espécie de tabu familiar. O então adolescente português chegou à URSS, mentiu sobre a sua idade (disse que tinha 18 anos), portanto que era já maior. Descobriu o sexo e o álcool e apaixonou-se profundamente por uma mulher, um pouco mais velha. As coisas, porém, não correram como esperava. Regressou a Portugal mais cedo do que deveria, com cicatrizes psicológicas que não sararam facilmente.
Os tabus do PREC
No seu documentário anterior, “A Toca do Lobo” (2015), a realizadora já tinha analisado de bem perto alguns segredos no seio da sua própria família: uma história muito inserida no contexto da ditadura política portuguesa, que trata igualmente de certos tabus familiares.
Depois da Revolução dos Cravos permaneceram muitos tabus familiares ligados sobretudo ao processo revolucionário em curso, que se seguiu ao 25 de Abril. Tabus esse que mexam com a nossa sociedade ainda muito conservadora e fechada, mas também com as bases de muitas famílias burguesas.
Em tempos de pandemia quando preparava um documentário sobre o seu próprio tio comunista, um verdadeiro filho da classe média-alta do Estado Novo, mas um rebelde no contexto familiar pós-25 de Abril, Catarina Mourão decidiu antes virar-se para a interessante história de Martim (Santa-Rita), um ceramista, com oficina em Janas, Sintra, que conhecia através de uma ligação familiar — cunhado da irmã da realizadora — e com quem mantinha uma certa convivência social.
A realizadora ouviu alguns relatos familiares, bastante vagos, que eram quase segredos familiares, pois não se falava abertamente sobre os tempos em que o Martim passou pela URSS, numa experiência adolescente quase inédita. Tenho ideia de ouvir que outros jovens fizeram o mesmo na altura, que aproveitaram essa oportunidade através do PCP, mas não foram muitos.
Confissões do pai para filho
Um dia a realizadora perguntou-lhe se queria falar mais sobre esse tempo na URSS. Martim concordou em partilhar as suas memórias diante das câmeras e a realizadora conseguiu reconstruir esse passado bastante agitado, utilizando a figura do seu filho mais velho (que também se chama Martim), em quem tinha encontrado pelas fotografias da adolescência, muitas semelhanças físicas com o pai.
Martim, dispôs-se a ser entrevistado, num espaço que não fosse a sua moradia e o filme começa numa casa quase vazia, em que ficamos com uma sensação estranha e algo fantasmagórica. A certa altura, a realizadora Catarina Mourão pensou mesmo em ir para a Rússia para filmar nos locais, mas com a Guerra na Ucrânia, tornou-se impossível. ‘Achei muito mais interessante manter esse tipo de fantasia dessa época’.
Martim é assim mostrado diante das câmeras falando sobre suas experiências em Astrakan, mais em conversa com o seu filho, sendo essa a primeira vez que o pai lhe conta toda a história. Em “Astrakan 79”, há ainda uma camada extra de mistério, porque o filho tem também um importante segredo para partilhar, com o pai. Esse segredo é revelado mais para o final do filme.
Memórias de uma paixão perdida
“Astrakan 79” torna-se assim um filme-ensaio de como pai e filho têm realmente de aceitar a sua própria identidade, o seu passado, a sua vida e também de desafiarem os seus tabus, já que o documentário inclui também material muito pessoal sobre o filho: ‘Pai e filho encontram-se neste estranho mundo criado pelo filme’, dizia a realizadora.
Catarina Mourão recorreu a um assinalável acervo de fotografias de arquivo, postais e cartas familiares que retratam essa época de Martim na Rússia, além dessa reconstituição histórica desse percurso pessoal, filmado principalmente em 16mm, para dar a ideia de antigo e da época, em que era talvez o formato mais usado.
É curioso também que ao escutarmos Martim sente-se nele uma certa inquietação. Não propriamente de uma pessoa torturada ou magoada com o passado, mas sente-se que há ainda uma espécie de trauma que o marca. Enquanto conta a sua história, várias vezes fica muito emocionado.
Há igualmente como que uma espécie de ambiguidade em ter deixado a tal mulher para trás (na URSS), a sua grande paixão e, ao mesmo tempo que, parece continuar a culpar os seus pais por terem deixá-lo ir tão jovem para o ‘país dos soviéticos’.
Um novo olhar sobre a masculinidade
Martim de facto parece ter escolhido levar uma vida tranquila como ceramista e viver no campo, como uma forma de lidar com as complexidades da sua vida privada. A atual mulher aparece brevemente no filme, segurando a escada enquanto Martim tranquilamente poda uma árvore. Essa imagem parece bastante simbólica, quase como de certa forma sustentando-o e apoiando-o. E isto, torna-se interessante porque os filmes anteriores de Catarina Mourão tiveram geralmente como protagonistas mulheres fortes e desafiadoras.
Em “Astrakan 79”, parece estar lidando agora mais com as questões dos homens, de género e da mudança das ideias sobre a masculinidade: se por um lado o filho de Martim tem um lado feminino, também o pai Martim fala da sua sensibilidade, das suas emoções e de como ainda não é muito bem aceite um homem chorar.
A vida dá muitas voltas
Relacionada com este filme, há uma história paralela que mostra bastante algo sobre a sua actualidade e sobre a evolução pessoal do personagem real: fazer este filme encorajou Martim a procurar a mulher por quem se apaixonou perdidamente naqueles tempos na URSS.
A vida é curiosamente cheia de ironias. Encontrou-a a viver em França. Conversaram por vídeo-chamada e em fundo na parede da casa da mulher estava um cartaz de Marine Le Pen (a líder francesa da Frente Nacional de extrema-direita).
Martim ficou obviamente chocado, dando ideia de facto, que a vida dá muitas voltas. Em parte o documentário funciona também como uma história de amor. “Astrakan 79”, é um filme sobre as escolhas, os encontros que temos na vida e como estes nos formam e ajudam a crescer como seres humanos.
O homem do apito
Quanto a “O Mar Enrola na Areia” é uma curta-metragem experimental de Catarina Mourão de 2019, feita através do processo de finding footage e a filmagem de um texto escrito sobre papel, sobre um estranho personagem que vagueava pelas praias portuguesas durante o Estado Novo: ‘O Homem do Apito’, era um homem alto e forte bronzeado de cabelo, barbas e fato-branco (ou preto), que vivia da caridade dos banhistas.
Era um misterioso personagem, que muitos especularam sobre as suas verdadeiras intenções, motivações ou passado, que atraía as crianças com o seu apito ao pescoço e contava-lhes histórias. A partir de vários filmes de família, a realizadora Catarina Mourão reconstruiu um retrato ficcional deste personagem misterioso, explorando ao mesmo tempo o espaço sensorial das férias na praia, dos banhistas e das muitas crianças que brincavam em liberdade, não sem alguns perigos, nos meados do século XX.
Curioso para ver este filme nos cinemas portugueses?
Astrakan, 79 - em análise
Movie title: Astrakan, 79
Movie description: Em “Astrakan 79” de Catarina Mourão acompanhamos Martim Santa Rita, que depois do 25 de Abril de 1974, foi, como alguns jovens portugueses, estudar para a URSS, uma sociedade que, aos olhos de muitos militantes comunistas portugueses, cumpria com todos os seus ideais. Hoje, aos 58 anos, Martim confessa que deixou de acreditar no ideal comunista e que isso não foi um processo fácil. O filme ganhou o Prémio de Melhor Realização no IndieLisboa 2023, e trata-se de uma obra documental, sobre a educação ideológica, a sua falência e sobre a forma como as convicções dos pais são incutidas nos filhos. COM Martim Santa Rita, Masari, Mateus M Santa Rita REALIZAÇÃO Catarina Mourão DIRECÇÃO DE FOTOGRAFIA E CORRECÇÃO DE COR Paulo Menezes aip SOM Armanda Carvalho MONTAGEM Pedro Mateus Duarte DIRECÇÃO DE PRODUÇÃO João Gusmão ASSISTÊNCIA DE REALIZAÇÃO Vasco Costa, Francisca Alarcão CHEFE DE PRODUÇÃO Anastassia Kortsinskaja MONTAGEM DE SOM E MISTURA Hugo Leitão DESIGN Francisca Alarcão
Country: Portugal
Director(s): Catarina Mourão
Actor(s): Martim Santa Rita, Masari, Mateus M Santa Rita
Genre: Documentário
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José Vieira Mendes - 75
Astrakan, 79 - em análise
Conclusão: ‘Fui à União Soviética com fervor revolucionário e voltei com um ícone religioso’, é uma das frases-chave ditas por Martim (Santa Rita) e que ilustra de certa maneira o objetivo deste “Astrakan 79” de Catarina Mourão (“A Toca do Lobo”). A realizadora portuguesa neste seu novo filme, tenta captar com uma enorme precisão e sensibilidade, o momento em que um homem de meia-idade conta a sua história da adolescência ao seu filho, tentando libertar-se dessa sua experiência inefável, de algo que o marcou para toda a vida, mas que se transforma numa numa partilha de segredos mútuos. Por outro lado, “Astrakan 79” é uma bela história de amadurecimento e iniciação juvenil, que funciona ora como um relato bastante comovente sobre as memórias e a saudade, mas também por vezes bastante engraçado e louco sobre as desvairadas aventuras de um adolescente lisboeta no ‘país dos soviéticos’, tudo isto passado num momento formativo da sua vida.